Carlos do Carmo: "Se falar com qualquer pessoa que esteve a morrer, ela vai dizer-lhe que mudou. Todos nós mudamos."
Recordamos a entrevista que o fadista deu à edição de novembro de 2014 da Máxima, pouco tempo depois vencer o Grammy pela sua obra, no dia da sua morte. A conversa com Carlos do Carmo durou algumas horas, mas correu uma vida inteira.
É na sua sala de estar que nos recebe. A mesma sala onde, desde junho – altura em que a Latin Academy of Recording Arts and Sciences anunciou a atribuição do Lifetime Achievement Grammy, pela primeira vez atribuído a um português –, se sentaram jornalistas vindos de toda a parte. “Porquê ir para uma redação, uma esplanada ou um café? Aqui temos aqui esta tranquilidade”, explica, para logo de seguida acrescentar que aquela é a única divisão a que os jornalistas têm acesso. O resto é privado.
Já no discurso, os dois setores da sua vida misturam-se com toda a naturalidade. Faz sentido, não tivesse sido a sua mãe, Lucília do Carmo, um dos grandes nomes do fado nacional e a primeira referência do fadista, de 74 anos. “Como é que eu encaro este prémio? Como uma abertura de portas para a música popular portuguesa, não só para o fado. É bom para todos, não é mau para ninguém.”

Nos dias seguintes ao anúncio do Grammy, o ambiente naquela casa não era tão silencioso como naquela tarde. Num dia contou mais de 600 chamadas, já para não falar das cartas que viriam nos dias seguintes. “É comovente. Seria de uma grande falta de respeito não responder às pessoas. Vou respondendo devagarinho. ‘Peço desculpa, já devia ter respondido há mais tempo mas só agora...’” E as pessoas percebem isso perfeitamente. São cartas incríveis, lindíssimas.
Sente-se muito acarinhado.
Como artista sim, como homem sinto-me muito respeitado, o que não é mau nos dias que correm.

Entrou no liceu com nove anos e foi nessa altura que gravou a primeira música. A música era quase uma inevitabilidade?
Não era inevitavelmente uma inevitabilidade. Eu andava no Liceu Passos Manuel e a casa de fados dos meus pais era no Bairro Alto, na rua da Barroca. Ora, às quintas-feiras não tinha aulas da parte da tarde e ficava ali a assistir a sessões inesquecíveis. Havia fados de dia, à quinta-feira. Era o único dia da semana. E apareciam amigos dos meus pais, dos mais bizarros aos intelectuais, até um senhor que o meu pai muito estimava. Chamava-se Nobre e era um homem muito vanguardista, andava sempre com coisas novas e um dia apareceu com um gravador de acetatos. Portanto, gravou a sessão. O Carlos Ramos tocava, houve quem cantasse e depois chegou a um momento e puseram um miúdo a cantar. Era eu. O que é que eu sabia? Sabia cantar canções brasileiras que tinha aprendido na infância porque a minha mãe, nas idas ao Brasil, trazia-me discos de 78 rotações. Então, eu aprendia as canções do Luiz Gonzaga e do Dorival Caymmi. Gravei isso por graça numa cassete. Enquanto a minha mãe foi viva, no Natal costumávamos ouvi-la e a minha mãe chorava como uma Madalena porque tinha muita piada. Os meus filhos ouviram, os netos já ouviram e aí fica para eles. Foi apenas uma gracinha.
Nessa altura ainda não tinha ideia do que poderia vir a seguir?

Nada disso. Eu estudava e era um razoável estudante. Sempre gostei muito de música, fui sempre e sou ainda hoje um apaixonado da área.
Mais tarde acabou por ir estudar para fora, graças ao seu pai. Ele era um disciplinador?
O meu pai era um homem muito à frente no tempo. Foi livreiro e dedicou-se ao fado por paixão. Apaixonou-se por uma rapariga bem mais jovem do que ele e depois tiveram um filho, eu, e a vida dele mudou. Mas eles eram um casal muito desavindo e ele sofria muito com isso porque era profundamente apaixonado pela minha mãe. Morreu de repente, com 56 anos. Quando eu lhe disse que, terminado o liceu, gostava de ir para Direito, ele respondeu: “Não tenho tempo para isso. Sabes o que é que eu gostava? Que fosses para um colégio onde esteve o teu primo.” Era um colégio para milionários e o meu pai endividou-se até ao pescoço para que eu pudesse ir. Uma coisa é certa e segura: tirei um curso completo, com tudo o que era preciso. E um ano depois ele morreu.
Estava a deixar tudo encaminhado...
Exatamente.
E é nessa altura que toma conta da casa de fados?
A minha mãe era a estrela, mas não era gestora, longe disso. Então assim fiquei, com a minha mãe, durante vinte anos. Foi uma casa de fados brilhante, tivemos muito sucesso. Tínhamos uma equipa inesquecível. A grande maioria já morreu. Imagino o que era, para eles, ver um miúdo de vinte anos a mandar. Mas levaram isso naturalmente porque perceberam que eu vinha preparado. Tenho saudades dessas pessoas, desses colaboradores e de alguns clientes que passavam por ali. A nossa casa de fados era para eles uma segunda casa, gostavam de lá ir jantar ou só ouvir o fado. Ouvir a Lucília e, mais tarde, a mim também. Voltavam, guardavam saudades de um fado que tinham ouvido, de qualquer coisa. E é assim que se faz uma casa.
Frequenta alguma casa de fados hoje ou não? Cansou-se?
Não é bem cansar-me. Eu fui muito boémio. Comecei a sê-lo mal comecei a minha vida de fado, à noite, e nunca mais deixei de ser muito boémio. Até à altura em que estive a morrer. E aí as coisas complicaram-se muito. Passei a beber água. E eu adorava beber whisky... mas devo dizer que nunca fui bêbado profissional. Fumava compulsivamente. Mas tudo isso está para trás.
A mudança teve a ver com esse grande susto?
Não foi um susto. Foi mesmo a sério. Às vezes ligo para um amigo meu, da minha geração, e digo: “Vamos a tal sítio.” E do outro lado ouço: “Eu só bebo água. Já viste o que é, os dois a beber água? Achas que vou a um bar beber água?” A gente ri-se. Paciência. Realmente, já não faz muito sentido. O copo tinha um sentido de convívio, de tertúlia e sabia bem. Hoje, não faço isso. Recebo amigos, visito amigos.
As casas de fado, hoje, ainda têm esse ambiente de que fala?
Há duas ou três casas de fado que sim, têm. São muito bem dirigidas. Canta-se e toca-se muito bem. Não são muitas, mas quando tínhamos a nossa também não eram muitas. Havia uma diferença. Cada casa de fados tinha um nome de referência que era o dono: o Carlos Ramos, a Hermínia Silva, a Fernanda Maria, a Lucília do Carmo, o Machado... Portanto, a gente ia ao Mesquita, ao Machado, à Lucília, à Hermínia, ao Carlos Ramos. Quase não dizíamos o nome das casas. Isso era o público a falar. Hoje, há poucas. Até há pouco tempo tínhamos a Parreirinha de Alfama onde estava a grande Argentina Santos, que pela idade e pela saúde deixou de cantar e está na Casa do Artista onde é muito bem tratada. Falo com ela todas as semanas. Mas temos o Clube de Fado, que é muito bom. A minha companheira e amiga Maria da Fé, do Senhor Vinho, sabe o que está a fazer, tem paixão. Só tendo paixão, só gostando muito. Senão, não vale a pena.
Como é que recorda a sua mãe no palco nessa altura?
Era imponente. Tinha uma forma de cantar muito peculiar. Aliás, essas pessoas que marcaram o fado, cada uma de per si tinha uma forma muito própria de cantar. A minha mãe agarrava as pontas do xaile e ficava como uma duquesa. Uma grande concentração e um silêncio esmagador para a ouvir. E quem percebe de fado recorda-a como uma fadista que faz parte da história. São meia dúzia de fadistas que se destacam na história do fado. É uma delas.
Era uma mulher carinhosa?
A minha mãe nunca foi uma pessoa muito carinhosa. Foi sempre uma mulher talvez sofrida e isto tem a sua lógica. E, da minha parte, compreensão. Razão pela qual não me sinto traumatizado. Ela era filha de um operário fabril e a minha avó era uma pessoa maravilhosa. Dois avós maravilhosos. Tinham seis filhos. Um operário fabril e uma doméstica. Imagine o orçamento. Emigraram de Portalegre para Lisboa e, aos onze anos, ela já estava a trabalhar. Não é pouca coisa. Isto deixa marcas. Quando deixou de cantar, aos 60 anos, disse: “Nunca mais canto.” Estava esgotada. E eu percebi. Mas sei que tinha muito orgulho em mim.
Tem muita coisa deles, como pai?
Sou diferente, completamente. A vida surpreendeu-me com a morte do meu pai. Não tive as dificuldades que eles tiveram. E fui um pai ausente, sobretudo dos dois filhos mais velhos. Eu penso que eles me perdoam porque cada vez que falo nisso eles rejeitam a ideia. “Não, não. Não estejas com essas coisas”, dizem. Mas na realidade foi a Judite que fez o trabalho todo porque eu trabalhava como um louco.
Hoje, tem uma grande proximidade com eles...
Tenho, sobretudo, orgulho. São pessoas de bem e isso é uma coisa que me leva descansado para a cova. E somos uma família unida. Talvez isso resulte do seguinte facto: a Judite muito cedo marcou uma cadência, toda a liberdade com toda a responsabilidade. Hoje, somos doze naquela mesa da sala de jantar. Toda a gente fala. Eu faço um sinalinho, telemóveis desligados. Jantar é jantar, não há televisão. Conversa-se. Os meus netos ligam: “Avô gostava de jantar com vocês.” Desabafam connosco, contam tudo. E nós, dentro daquilo que chamamos a suposta sabedoria, dizemos o que sentimos e o que pensamos. Portanto, sim, posso dizer que somos uma família unida com um caráter muito independente. Cada um tem o seu espaço. Nós respeitamos muito o espaço uns dos outros. Depois, a figura pública sou eu e portanto eles lidam muito bem com isso. Porque são ferozes críticos. Não facilitam nada.
Criticam o quê?
Um concerto, um disco, o que for. Isso é tão bom.
Lida bem com isso?
Muito bem, muito bem. Aquilo é muito sincero. E depois a frio, pensando bem, raramente não estou de acordo. E com a Maria Judite é igual.
Fale-me um bocadinho da Maria Judite. Ela era uma fã...
Sim, ela aproximou-se e eu apaixonei-me por ela. Tínhamos 24 anos. É uma pessoa de uma grande vitalidade, de um grande caráter, de uma imensa solidariedade. E tem uma capacidade de fidelidade à amizade espantosa. E tem uma grande pachorra para me aturar. Eu realmente sou um homem apaixonado e creio que ela também. Senão não me aturava.
Costuma dizer que, quando teve aquele problema de saúde grave, só não morreu porque ela não deixou...
Isso é um facto. Está escrito no relatório dos médicos americanos que me acompanharam. Em dois meses fui operado três vezes. A primeira operação não correu bem. A segunda não correu nada bem. Estive à beira de uma embolia. Coisas tremendas. E a única coisa que eu tinha palpável era o peito do pé. De resto todo eu era tubos. E ela massajava-me os peitos dos pés. Era como se me transmitisse a vida. Até que chegou o dia em que lhe disse: “Estou farto, exausto, não quero mais. Tens tudo organizado, os teus filhos vão dar-se bem contigo e tu com eles. Vocês, graças a Deus, não ficam mal. Eu tenho de ir embora, não aguento mais isto.” E ela: “Nem penses.” Houve um momento em que desisti. E aí ela não deixou. Levou uma mala de livros e leu-os todos duas vezes porque estava ali sentada, sempre perto.
Passaram-se quinze anos.
Foi muito bom tê-los saboreado. Entretanto, aconteceram coisas bonitas na minha vida. Se falar com qualquer pessoa que esteve a morrer, ela vai dizer-lhe que mudou. Todos nós mudamos.
Canta de uma maneira diferente?
Canto de uma maneira mais intensa. Fui cantando menos por razões de saúde. Em 2014, ganhando um Grammy, o que eu poderia cantar... Faço doze concertos por ano. É o que o meu médico me pede para preservar a saúde. Quando vou fazer um concerto, vou como os touros nas pegas, levo tudo à frente. Vou com gana, com vontade... Tenho muito gosto em fazê-lo. Por ter o que eu acho indispensável, o calor do público. Porque sem isso...
E que público é esse?
Não faço ideia nenhuma. Eu conheço algumas pessoas fiéis que vêm ao camarim dar-me um beijo, mas a grande maioria das pessoas não sei quem são. Cruzo-me com elas na rua, umas falam, outras passam e eu percebo que olham com ternura e com respeito. Podia contar-lhe dúzias de coisas muito bonitas. Um dia, depois de ter saído do hospital, estava tão cansado de estar em casa que pedi à minha mulher para ir ao correio. Muito devagarinho, de braço dado, lá fomos. E passou por nós uma senhora muito bem-posta, com um ar finíssimo, que parou e disse: “Carlos do Carmo, é tão bom vê-lo. Rezei tanto por si.” Não a conhecia de lado algum. Estas coisas não têm a ver com o ego, mas com o sentimento humano. É como lhe digo: esta coisa do viver cada dia tornou-se uma coisa muito interessante na minha vida. Ensinou finitude.
