Birmânia: a era das mulheres modernas
Impulsionadas pela vitória de Aung San Suu Kyi nas eleições legislativas, as birmanesas abrem-se à transição democrática. Mulheres de negócios, artistas, ativistas – as atrizes da sociedade civil querem alterar as regras do jogo.

Rangum, domingo, 8 de novembro de 2015, noite das eleições legislativas. De lágrimas nos olhos mas com um sorriso nos lábios, um milhar de birmanesas celebram em frente da sede da Liga Nacional para a Democracia (LND), sob o retrato gigante de Aung San Suu Kyi. Algumas improvisam passos de dança, outras abraçam-se, como que aliviadas. "Estou tão feliz! Aung San Suu Kyi é o meu ídolo, até que enfim vamos poder viver livremente!", exclama uma delas. Nos bastidores, reina a prudência. Num apelo transmitido à multidão, a "Senhora" pede aos seus apoiantes que voltem para casa e aguardem pacientemente os resultados definitivos. Já em 1990 a LND tinha ganho as eleições legislativas, anuladas pouco depois pelos militares no poder...
1948 | Independência da Birmânia.
1962 | Golpe de Estado militar.
1988 | Movimento democrático é reprimido pelos militares. Criação da LND.
1989 | Aung San Suu Kyi é condenada a prisão domiciliária.
1990 | Vitória da LND nas eleições legislativas é anulada pela junta.
2010 | Libertação de Aung San Suu Kyi.
2011 | Autodissolução da junta; é formado um governo civil.
2012 | A "Senhora" torna-se deputada.
8 de novembro de 2015 | A LND vence as eleições legislativas com cerca de 80% dos votos.
Abril de 2016 Deverá tomar posse o novo governo.
Em janeiro de 2016, ou seja, dois meses depois deste escrutínio histórico, os militares e o presidente cessante reconheceram a vitória esmagadora da "Senhora de Rangum", com 80% dos votos. É certo que o exército mantém o controlo de instituições-chave, como os ministérios da Defesa, do Interior e das Fronteiras, bem como o direito de veto no parlamento. E Aung San Suu Kyi, cujas aparições públicas continuam a ser raras, multiplica-se em encontros com aqueles que, durante 20 anos, a mantiveram em prisão domiciliária e redigiram uma Constituição que a impediu de aceder à presidência do país, devido ao seu casamento com um estrangeiro. Apelando à reconciliação nacional, ela sabe que o seu país vive um momento crucial. O novo parlamento birmanês reuniu-se a 1 de fevereiro para eleger um novo presidente, num processo que concretizará uma transição democrática iniciada em 2011, com a queda da junta militar. As mulheres, durante muito tempo consideradas cidadãs de segunda, esperam contribuir para a mudança neste país com 51 milhões de habitantes. Esta vitória é também a sua, a das ativistas que trabalham na sombra para a emancipação. Ou a das mulheres de negócios que participam no desenvolvimento económico de uma das regiões mais pobres da Ásia, das artistas que desafiaram as proibições da junta ou das jovens que agora assumem a sua modernidade num país profundamente tradicionalista.
Desde a liberalização do país, as associações que defendem os direitos das mulheres multiplicaram-se às dezenas, sendo uma delas a Akhaya Women. Em 2012, esta associação conduziu ações contra o assédio sexual nos autocarros, invadindo estes meios de transporte para dialogar com a população. "Como 99% das birmanesas, fui assediada. Todos os dias são violadas duas mulheres, muitas não se queixam", lamenta Htar Htar, a fundadora. "Nas nossas instalações recebemos mulheres para as ajudar a respeitar o seu corpo. Aqui, o sexo das mulheres não tem nome. As menstruações são consideradas algo sujo e vergonhoso." Passados alguns meses, Htar Htar começou a iniciar pastores e monjas budistas em cursos de educação sexual. "Eles conseguiram compreender a nossa mensagem e modificar a sua forma de pensar", explica.
A mutação também é visível na maneira de ser das birmanesas. De há um ou dois anos para cá, as mulheres das classes mais altas vêm abandonando os tradicionais longyi e thanaka [o traje e a pintura facial tradicionais] e atrevem-se a usar saias acima do joelho e os olhos pintados à maneira ocidental. Na cave de um centro comercial, Tin Moe Lwin desfila numa manhã de janeiro sobre uma passerelle improvisada. A "mãe dos modelos", como gosta de chamar a si própria, dá cursos de desfile de moda. De sapatos compensados e calções justos, a juventude liberta-se. E a puritana Rangum acorda. Tin Moe Lwin fundou a sua escola de modelos em 1996. Dado o seu sucesso, lançou-se na comunicação, no marketing, na publicidade. "Ensino a estes jovens os novos códigos de uma sociedade moderna: deitar o lixo no sítio apropriado, pedir desculpa… É o básico mas, até agora, era desconhecido de uma grande parte da população. Também os quero pôr em guarda. A mudança é muito rápida. Estes jovens, designadamente as mulheres, devem construir alicerces sólidos, ir devagar, estudar." Nas margens do lago Kandawgyi, numa zona residencial abastada a norte de Rangum, a juventude dourada tem os seus hábitos. Após uma hora de corrida à volta do lago, um grupo de amigas almoça no terraço. Thin Thin, Hsu, Tazin Htet Htet e Kyawe Phyo Phyo têm entre 24 e 34 anos. Instruídas, independentes, dão o seu testemunho. "Desde 2011 que temos acesso à informação, por exemplo através da Internet. As infraestruturas evoluíram. Enquanto mulheres, temos mais liberdade e confiança", confidencia Tazin Htet Htet. As multinacionais também invadiram as principais artérias de Rangum, reavivando um mercado de trabalho há muito inerte. "Temos mais escolhas e melhores oportunidades de carreira graças aos investidores estrangeiros", sublinha Thin Thin, chefe de projeto da empresa sueca de telecomunicações Ericsson.
Nas margens do lago Kandawgyi, numa zona residencial abastada a norte de Rangum, a juventude dourada tem os seus hábitos. Após uma hora de corrida à volta do lago, um grupo de amigas almoça no terraço. Thin Thin, Hsu, Tazin Htet Htet e Kyawe Phyo Phyo têm entre 24 e 34 anos. Instruídas, independentes, dão o seu testemunho. "Desde 2011 que temos acesso à informação, por exemplo através da Internet. As infraestruturas evoluíram. Enquanto mulheres, temos mais liberdade e confiança", confidencia Tazin Htet Htet. As multinacionais também invadiram as principais artérias de Rangum, reavivando um mercado de trabalho há muito inerte. "Temos mais escolhas e melhores oportunidades de carreira graças aos investidores estrangeiros", sublinha Thin Thin, chefe de projeto da empresa sueca de telecomunicações Ericsson.
Phyu Phyu Kyaw Thein, cantora
"Os militares nunca conseguiram calar-me"
Começou a cantar ainda sob a junta. Era possível ser artista nessa época? Alguns dos meus discos foram proibidos. Diziam que a minha voz era estranha, criticavam a maneira como olhava para a câmara. Mas isso nunca me impediu de cantar… Os militares nunca conseguiram calar-me, embora eu tivesse de ser prudente.
É a cantora mais famosa do país. Chamam-lhe mesmo a "Lady Gaga birmanesa". Que mensagem quer transmitir aos jovens? Sempre persegui os meus sonhos sem ter medo. Em todas as entrevistas que dou dirijo-me às mulheres do meu país, dizendo-lhes que devem ganhar confiança e que é importante fazerem as suas próprias escolhas.
Na sua opinião, a vitória da LND pode mudar profundamente a Birmânia? Apoiei a LND na campanha eleitoral. Vai levar tempo, mas o nosso país vai transformar-se. Esta vitória é uma oportunidade incrível para o nosso povo e para as mulheres.
Esta abertura beneficia também as empresárias birmanesas, cujos negócios com o estrangeiro foram relançados após o levantamento das sanções económicas. A associação de empresárias agrupa hoje cerca de 1800 mulheres, entre as quais Su Su Tin, uma das empreendedoras mais famosas do país, à cabeça de uma dezena de empresas das áreas da restauração, importação-exportação e cosmética. Para ela, a transição passará sobretudo pelas mulheres. "Nas minhas empresas, 90% do pessoal são do sexo feminino. Disponibilizo programas de mentorado para terem mais confiança e desenvolverem as suas potencialidades."
Para Yin Myo Su, que recebeu em 2013 o Goldman Sachs-Fortune Global Women Leaders Award e, em 2015, o Global Leadership Award, o momento é decisivo para a Birmânia. Líder de um complexo hoteleiro florescente, Yin Myo Su trabalha para a evolução dos costumes. Diplomada pela escola técnica privada de hotelaria Dosnon, em Couvrelles, França, decidiu importar a sua experiência abrindo, no seu estabelecimento, uma formação profissional em hotelaria destinada a adolescentes. "Além dos cursos técnicos, procuro mudar as mentalidades. A maior parte dos birmaneses vivem como na Idade Média… mas com Facebook. É tempo de despertarmos e de deixarmos de ter medo. Por exemplo, estou separada do meu marido e muita gente acha que sou doida porque mantenho uma boa relação com ele. Quero provar que não há nada de anormal nisso", comenta. Doravante, estas mulheres enfrentam um grande desafio democrático. E todas aquelas com quem falámos asseguram, sem temor, que lutarão à sua maneira.
