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“As pessoas à minha volta estavam todas no chão ou cobertas de sangue”

O jornalista libanês Philippe Yacoub conta como viveu as explosões provocadas por nitrato de amónio em Beirute, no Líbano, e relata detalhes de uma cidade “resiliente, mas que nunca mais será a mesma”.

Beirute-explosões
Beirute-explosões Foto: Getty Images
06 de agosto de 2020 às 17:25 Rosário Mello e Castro

Philippe Yacoub tem 33 anos e passou boa parte da vida a imaginar um cenário como o da última terça-feira, em Beirute, capital do Líbano. Mas nunca achou que aconteceria assim. Quase 140 mortos, mais de cinco mil feridos e 300 mil desalojados são o resultado de uma tragédia comparável à Segunda Guerra Mundial. A carga de um navio com 2750 toneladas de nitrato de amónio explodiu depois de anos de negligência, varrendo a cidade sem critério nem misericórdia. É uma das maiores explosões não nucleares de sempre ou uma "bomba-relógio deixada assim por um governo incompetente atrás do outro à espera de a vender pelo melhor preço" como descreve Yacoub, jornalista que já passou pela televisão e trabalha para um grupo de media nacional.

"Estava na rua perto de casa, ia levar uma amiga ao carro quando o nosso mundo desabou. A nossa primeira reação foi agarrar-nos um ao outro e encostar-nos a uma parede, depois corremos freneticamente para minha casa", conta. "Eu gritava-lhe: ‘fecha os olhos’ para evitar que os fragmentos de vidro nos pudessem magoar." Os primeiros momentos pareceram tirados de um filme daqueles de catástrofes, recorda "como se estivesse numa sala de cinema IMAX com o melhor sistema de som surround só que aquilo é real e está a acontecer-te a ti". Yacoub não se lembra do que se passou a seguir. "É impossível preparares-te para uma coisas destas," resume. Começou por pensar que tinham sido atingidos por uma avião de guerra israelita porque tinha ouvido aviões o dia todo, depois sentiu-se perdido. "Ainda na rua, olhava para as pessoas à minha volta e estavam todas no chão ou cobertas de sangue. Nós estávamos ilesos, nem um arranhão. Como? Não faço ideia", conta.

Em poucos segundos estava de volta a casa, que fica a cerca de dois quilómetros da enorme explosão que aconteceu em Mar Mikhael, uma rua vibrante com várias lojas, restaurantes e bares. "Encontrei os meus vizinhos a rezar, abri a porta do meu apartamento e vi vidros espalhados por todo o lado, uma das paredes tinha colapsado. Foi aí que me apercebi da dimensão disto." Nas horas seguintes, ambulâncias e pessoas corriam sem parar para os hospitais. "Vi pessoas que procuravam os seus entes queridos nos hospitais e nas ruas, quase toda a gente em Beirute e nos subúrbios precisava de assistência médica. As pessoas foram para hospitais no norte e no sul do Líbano."

Esta não é a primeira vez que se ouve ou sente uma explosão em Beirute, mas assim que aconteceu a capital paralisou. Trinta segundos depois, quase três mil toneladas de nitrato de amónio contaminaram o ar, "soltando os químicos sobre todos nós. Sentimos as ondulações passar pelo corpo." O ar é respirável, mas aguardam-se estudos sobre as consequências. "Quando uma coisa destas acontece somos reduzidos a zero. Não somos jornalistas, o instinto é procurar amigos e familiares, entramos em modo de sobrevivência. Para Yacoub, "a corrupção [que levou a esta catástrofe] está nas raízes do país e de quem o governa," afirma. "É triste, mas é verdade."

Beirute é agora uma cidade fantasma, "coberta de vidro e pedregulhos," e com uma comunidade em estilhaços, descreve Yacoub. "As pessoas ainda estão a apanhar os bocados das suas casas destruídas ou a procurar desaparecidos. Algumas estão de luto pela morte de familiares ou amigos," conta o jornalista. "Mas toda a gente espera por mais um recomeço. Se é que isso será possível no meio deste colapso económico e de uma pandemia. A vida nunca mais será a mesma na minha cidade, mas Beirute é resiliente."

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