Aritmética conjugal: "As coisas nunca ficam como ela quer. Mais vale não fazer."
Quando pensávamos que a igualdade de género estava no bom caminho, eis que somos confrontadas com a carga mental, esse trabalho invisível de planeamento e organização da casa que recai, culturalmente, na mulher. Afinal, quem faz o quê no casal? Guerra das rosas, versão 2.0? Fomos investigar.

Estamos sentados à mesa. Lá fora, o Chiado respira a sábado à noite, as luzes entram pelas janelas semi-abertas, o fumo dos cigarros toma conta da sala, a música segue o repertório habitual de rock and roll defunto. Há vinho, há pão, há entradas escandalosamente calóricas. Há tudo o que o bom senso sugere para conversas despreocupadas de fim-de-semana. Aproveito a deixa para introduzir um tema novo: a carga mental, essa tarefa (invisível) de planeamento e organização das tarefas domésticas. Explico que, em França, uma banda desenhada sobre o assunto se tornou viral e que reacendeu o debate sobre as desigualdades entre homens e mulheres. "Não me admira nada!", atira Marta, designer de produto, de 36 anos. "Sou eu que penso em tudo." Já o marido, Pedro, tem algumas dúvidas. Fotógrafo, também ele na casa dos 30, considera "suspeita essa conversa da divisão mental das tarefas". Estão juntos há uma década, não têm filhos, os seus testemunhos parecem-me um bom ponto de partida para a minha investigação.
Mas a entrevista não chega a acontecer. "As coisas nunca ficam como ela quer. Mais vale não fazer." A frase, aparentemente simples, acaba por ser o princípio de uma discussão entre os dois - e o final, antecipado, da nossa noite quase perfeita. É uma queixa que vou ouvir e ler, vezes sem conta: "A Marta queixa-se que faz tudo, mas quando sou eu a fazer, ela nunca gosta do resultado final." Saio para a rua e, por todo o lado, vejo casais de mão dada, felizes, alheios a este inimigo comum. A carga mental é o fantasma do nosso descontentamento. Não existe nos livros, não aparece nos votos de matrimónio, não se partilha em confissão. E, no entanto, está por todo o lado. De cada vez que uma mulher alerta para a necessidade de lavar a louça que o marido prontamente lava, após perceber que não há pratos, copos ou talheres, é colocado mais um prego no caixão do Feminismo. A diferença entre fazer e perceber que é preciso ser feito tem o nome pouco lisonjeiro de carga mental. Dá trabalho e, apesar de estarmos no século XXI, ainda é da responsabilidade das mulheres.

"Os meus filhos queriam saber como era ser mãe. Por isso, acordei-os às duas da manhã para lhes dizer que tinha perdido uma meia." O desabafo é de uma americana, mãe de quatro rapazes, que partilha numa conta de Twitter (sob o nome de Sarcastic Mummy) as desventuras da sua família. Ela, como tantas outras, preferiu recorrer ao humor para lidar com a pressão de dias cheios de tarefas-por-cumprir: refeições, banhos, listas de compras, trabalhos de casa, actividades extracurriculares, idas ao médico, birras… Exagero? Há cerca de um ano, foi publicado, em Portugal, o primeiro Inquérito Nacional aos Usos do Tempo de Homens e de Mulheres, promovido pela Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego. Os resultados não foram animadores. Em termos simples, concluía que "as famílias constituem, ainda, espaços de desigualdade". A investigação, feita pelo Centro de Estudos para a Intervenção Social, ouviu 10 mil portugueses e concluiu que as mulheres gastam por dia, em média, quatro horas e 17 minutos em tarefas domésticas ou a cuidar de alguém da família. Nos homens, essas ocupações ficam-se pelas duas horas e 37 minutos. A assimetria, sublinha o estudo, é transversal a todas as faixas etárias. E, se fora de casa elas trabalham "aparentemente" menos (30 minutos), esse valor é compensado com o tempo que dedicam ao trabalho doméstico não remunerado: tudo somado, dá uma média de 12 horas e 52 minutos para elas e 11 horas e 39 minutos para eles. A participação dos homens faz-se sentir, sobretudo, em actividades relacionadas com os filhos. Já as tarefas ditas "de rotina" (compras, lavar, passar, limpar…) são, normalmente, assumidas pela mulher.
Apesar da desigualdade, 71 por cento das mulheres ouvidas defendem que a parte das tarefas que realizam corresponde ao que é justo, número que sobe para 75,6 por cento entre os homens. De acordo com a coordenadora do estudo, Heloísa Perista, as próprias mulheres interiorizam que é normal trabalharem mais em casa do que os homens: "É claro que, aqui, temos de ter em conta processos de naturalização, quer por parte das mulheres, quer por parte dos homens, relativamente àquilo que é socialmente esperado, em termos dos seus papéis e responsabilidades no contexto das famílias. E, portanto, daí este resultado, de cerca de sete em cada dez mulheres terem esta opinião de que a parte das tarefas domésticas que realizam corresponde ao que é justo", afirmava, em entrevista, à TSF. Estes números, longe de serem perfeitos, podem ser sinónimo de progresso. Em 2002, por exemplo, "os homens portugueses gastavam sete horas por semana com as tarefas domésticas e as mulheres 26 horas", relembrava ao Público Karin Wall, investigadora do Instituto de Ciências Sociais (ICS), na Universidade de Lisboa.
Mas de onde vem a ideia de que são as mulheres que devem ficar responsáveis pela carga mental? Sandra Frey, de 49 anos, é especialista em questões de género e mestre em Ciência Política, na Universidade de Montpellier: "O processo de carga mental não é, por natureza, um processo inserido no cérebro humano das pessoas dotadas de um aparelho de reprodução feminino", sublinha. "Em França, foi preciso um desenho [a citada banda desenhada] numa rede social para que a chama se acendesse e que descobríssemos que as políticas públicas e a pesquisa de género estão 20 anos desactualizadas." A investigadora, que há muito se debate com esta questão, diz que a noção de carga mental surgiu, pela primeira vez, em 1988, numa investigação sobre o movimento social das enfermeiras e as suas condições de trabalho: "Elas diziam que enquanto trabalhavam, ou mesmo enquanto lutavam pelos seus direitos, continuavam ao comando do apoio logístico das suas famílias." Daí ser tão importante distinguir do que são as tarefas domésticas, do que é carga mental: "A distribuição das tarefas domésticas é visível. Ela mede-se no tempo gasto a fazer, fisicamente, alguma coisa, na manutenção da família. As tarefas são feitas porque são decididas, iniciadas, gravadas, não se fazem sozinhas. A carga mental é invisível, é uma operação mental contínua/descontínua que se encaixa no cérebro para organizar a logística da vida familiar durante e ao mesmo tempo que um emprego, uma tarefa, de que se ocupa fisicamente. As tarefas mentais começam sem um consentimento, ocorrem por conta própria, sem, por vezes, sermos capaz de parar esse processo mental. É possível estar-se ciente delas e descrevê-las através de um acto reflexivo." O que têm em comum, garante Sandra Frey, "é que em termos de divisão sexual do trabalho, numa sociedade patriarcal e sexista, a manutenção da família é, inevitavelmente, da responsabilidade das mulheres, pela sua ‘função natural’". Para Frey, esta é uma questão central na igualdade de géneros porque, regra geral, "os homens não praticam o processo de carga mental para a manutenção da família. Podem pensar noutras coisas enquanto estão nos seus empregos, mas não será nesse imperativo, nessa exigência diária de uma tarefa repetitiva que tem de ser organizada de forma recorrente". O resultado, segundo a especialista, é transversal a muitos casais. "Eles dizem coisas como ‘Posso ajudar’, ‘Precisas de ajuda?’, ‘Podias ter dito… Tinha-te ajudado!’" E nas relações homossexuais, perguntamos? Apesar de ainda não existirem dados, a investigadora mostra-se curiosa: "Seria interessante medir e estudar o que acontece em tais casais ou famílias: há uma reprodução e uma desigualdade de género ou há igualdade e distribuição das tarefas domésticas e mentais?"

Rita tem 36 anos, é ilustradora e uma das mentes criativas por detrás do blogue (e do livro) Amãezónia, onde se analisa a maternidade com doses maciças de sarcasmo e boa disposição. Sabe muito bem o que é a carga mental, não tanto por experiência própria mas pela partilha de histórias naquele espaço seguro. "Há mais ou menos um ano, escrevemos um texto que fala muito sobre isso", diz-me. Nem mais, nem menos. O desespero relatado no Amãezónia é o de todas nós: "Quando vivia com os meus pais, a minha mãe fazia questão de nos pôr a fazer coisas em casa. Um dia, ao ouvir o meu nome pela trigésima quinta vez, reparei no meu irmão. Estava sentado – refastelado – no sofá. De repente, passei-me. Ali estava o menino, descansado, com dois braços e duas pernas, tal como eu, perfeitamente capaz. Ele não tinha culpa, mas a minha mãe tinha. Quando ela abria a boca só lhe saía o meu nome. Até que lhe fiz notar isso e as coisas mudaram. E a minha mãe não é uma mãe à antiga que acha que os meninos não têm de ajudar nas tarefas domésticas (já a minha sogra, que foi criada de forma mais tradicional, nunca exigiu nada aos seus dois rapazes e, ainda hoje, passa a ferro a roupa do mais velho). Ela simplesmente não pensou nisso e deixou-se levar por séculos de hábitos enraizados no cérebro de todos." Porque é que nos acomodamos? Porque é que não lutamos? "Ainda existe a ideia de que o Feminismo é uma coisa de ‘machonas’. Mas, no fundo, o Feminismo aceita as nossas diferenças para chegar a uma certa igualdade", afirma Rita. A igualdade possível. "É nítido que somos seres diferentes. E há muitas coisas intrínsecas à nossa cultura que acabam por empurrar as meninas mais para um lado do que para o outro." O lado da vassoura, leia-se. Considera, porém, que as coisas estão a melhorar. O seu caso é um bom exemplo. A partilha de tarefas é feita de modo tão natural que soa a falso. Mas não é. Tanto ela como o namorado dividem a educação de Maria Rita, de quatro anos, e o quotidiano o mais harmoniosamente possível: "Se um cozinha, o outro dá banho, sempre." As excepções ocorrem, por exemplo, nas férias, quando é preciso fazer malas e pensar nos pormenores. "Isso sou eu que trato. Pensar naquelas coisas que podem acontecer – levar pensos para a Maria Rita, repelente de melgas, isso é comigo. Mas se o Manuel for acampar uns dias com ela, como aconteceu há bem pouco tempo, é ele que tem de gerir os horários, as refeições, tudo." E, depois, existe aquela linha muito ténue que divide (ou não) a noção de fazer e de fazer bem feito. Homens e mulheres encaram as duas coisas de formas diferentes. Se, muitas vezes, eles estão a fazer uma série de coisas, pela primeira vez, quando moram com alguém, elas aprendem, desde cedo, que as coisas devem ser feitas ao pormenor. Será que, no fundo, para os homens, fazer bem feito já é fazer? "Às vezes acontece dizer ao Manuel que ‘xis’ ou ‘ípsilon’ não estava bem feito e ele responde-me: ‘Se sou eu a fazer, deixa-me fazer como sei!’ E, no fundo, tem razão. Nós somos mais picuinhas, mais controladoras."
A cena repete-se, no outro lado da cidade. António, de 38 anos, sales manager numa multinacional, chegou há pouco de Londres. Há nove meses, a rotina começou a ser diferente, com viagens de avião duas vezes por semana. Salvador nasceu em Fevereiro, quando o cansaço ainda não dava sinais de alarme. Agora, que as milhas se começam a acumular, o regresso a casa faz-se com mais olheiras, mas com o mesmo entusiasmo. "Vou dar banho ao Salvador", avisa, animado. A banheira está cheia, os patinhos estão a postos, a presença feminina não é necessária, neste momento a dois. "Depois, irei precisar de ti para a toalha", ouve-se. "Faço isso todos os dias sozinha", diz Carolina, de 34 anos, entredentes. A toalha, entenda-se, é o acto de cobrir o bebé com a toalha que seria mais fácil, ficamos a saber, "se ele tivesse colocado primeiro a toalha na bancada". Juntos há quatro anos, casados há dois, António e Carolina falam abertamente sobre o que pensam ser a carga mental. "Antes, eu fazia tudo. Agora, ele faz mais qualquer coisa. Antes eu era a ‘fadinha do lar’. Cozinhava muito mais, limpava muito mais. Sou um bocado obstinado com a organização e com a limpeza… Mas, agora, com as minhas viagens está tudo um bocado descontrolado [risos]. Também não vivo cá o ano inteiro…", defende-se António. "A divisão das tarefas, neste momento, é assim: o bebé é mais comigo. Ele ajuda como pode (quando está) e quando eu lhe digo. A parte doméstica é mais da empregada. Mas aos fins-de-semana, ele ajuda bastante." Notam uma diferença na divisão de tarefas depois do bebé nascer? "Claro!", assume Carolina. "Chegámos a discutir a possibilidade de fazer um planeamento por escrito, com tarefas designadas, para ele saber o que fazer", conta-nos. "Há coisas que são por osmose, que não são combinadas. Ela gosta de dormir e eu não me importo de me levantar cedo. Ela não se importa de dar o biberão à noite e, a mim, custa-me imenso a noite… Por isso, a coisa acaba por ser natural. De resto, ela é que coordena as coisas todas. Eu estou sempre atrás dela, quando temos de sair, a perguntar-lhe: ‘O que é que falta?’, ‘Em que é que posso ajudar?’, porque ela é que sabe."
Muitos anos antes de eu me encontrar com Carolina e António, fui participante, não activa, de um episódio que dá conta dos níveis (opostos) de carga mental dos meus progenitores. Contou-me a minha mãe: "Tinhas dois anos e eu dava aulas à noite… A tua babysitter saía às sete [horas]. Quando o teu pai chegava, só tinha de te dar jantar e de pôr-te na cama. Eu regressava por volta das 23 [horas] e 30 [minutos]. Uma noite, eu cheguei a casa e o teu pai estava em pânico porque estavas farta de chorar e não dormias. Fui ao teu quarto, destapei-te, e vi que estavas deitada com as botas ortopédicas." Se eu não me engano, a resposta do meu pai foi qualquer coisa como "Mas não me disseste para tirar os sapatos!". Senhoras e senhoras, a carga mental é isto. E quem nunca presenciou este e outros momentos que atire a primeira pedra. Daqui para a frente (espera-se…) só podemos melhorar. A evolução das espécies também é isso.

* Os nomes dos entrevistados referenciados neste artigo, salvo excepção, foram alterados, garantindo o seu anonimato.

"Antes os sites de encontros eram para os desesperados, hoje são para todos"
O mundo parece apaixonado pela aplicação de encontros que está a revolucionar o namoro. Fazer a corte hoje pode ser tão simples como escolher pessoas num ecrã de telemóvel, marcar um encontro e ver o que acontece. Esta nova era estará a matar o romance ou será esta apenas uma versão mais moderna das suas múltiplas faces?