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A vida pouco puritana da rainha Vitória de Inglaterra

Dela descendem boa parte dos monarcas que ainda hoje reinam na Europa e também dos que apenas sonham com os tronos perdidos. No livro "Vitória de Inglaterra - A Rainha que amou e ameaçou Portugal", Isabel Machado revela-nos uma rainha dada aos prazeres eróticos, bem distante da imagem moralista que a História lhe atribui.

Foto: Pau Storch / Collage: Safiya Ayoob
13 de agosto de 2024 às 07:00 Maria João Martins

Delineou tão bem a sua estratégia de influência na Europa que, ainda hoje, boa parte das casas reais do continente são aparentadas com os Windsor. Falamos da rainha Vitória de Inglaterra (1819-1901), que é tetravó de Carlos III, mas também de Filipe VI de Espanha (já que a bisavó e madrinha de nascimento, a rainha Vitória Eugénia, era inglesa e neta de Vitória), para além de aparentada com a dinastia reinante na Noruega e com outras, hoje sem trono, como as da Rússia, da Roménia ou de Portugal.

No livro, misto de romance histórico e trabalho de investigação, Vitória de Inglaterra - A Rainha que amou e ameaçou Portugal (editado originalmente em 2014, mas agora reeditado numa versão aumentada, com novos elementos) a escritora Isabel Machado dá-nos a conhecer a relação privilegiada que Vitória manteve com Portugal desde tenra idade. Não tanto por causa da que era (e ainda é) a aliança mais antiga do mundo, mas pelos laços pessoais que, ao longo de toda vida, a uniram à família real portuguesa.

Foto: DR

Tudo começou com a "nossa" Dona Maria II, quando esta, exilada em Londres por causa da violenta guerra civil que grassava em Portugal, ainda era uma pequena aspirante ao trono. As duas meninas nasceram com semanas de intervalo, mas, à parte a condição inata de princesas reais, nada pareciam ter em comum. No entanto, partilharam confidências de grande intimidade como se fossem irmãs e não se tivessem encontrado pessoalmente apenas duas vezes, quando eram apenas crianças à espera de assumir as respetivas coroas.

Dessa relação tão forte há, aliás, testemunhos ainda presentes no Palácio de Buckingham. Quem olhar com atenção para o vídeo da rainha Isabel II com o ursinho Paddington, filmado poucos meses antes da morte da soberana, descobrirá, pendurado na parede da sala, um retrato de Dona Maria II em criança, pintado no período londrino, cujo original está em Lisboa, no Museu Nacional de Arte Antiga.

Essa relação manteve-se na idade adulta, mesmo quando a geografia já as separara, diz-nos a autora: "Com Dona Maria II, Vitória tinha uma ligação muito forte. Nunca mais se viram após a vinda da portuguesa para Lisboa, mas trocavam muita correspondência, o que se consolidou durante os conflitos que agitaram Portugal naquele período. Havia na rainha inglesa e no marido, o príncipe Alberto, um desejo muito sincero de ajudar o nosso país."

No que as duas estariam menos em concordância seria, todavia, quanto às alegrias da maternidade. Dona Maria adorava bebés de ambos os sexos e parecia-lhe que, quando se amava o marido (D. Fernando de Saxe Coburgo, primo direito de Alberto) como era o seu caso, todos os sacrifícios valiam a pena para multiplicar os frutos desse amor. À recém casada prima Vitória, escreverá a rainha de Portugal: "Verá como é doce ocupar-nos das nossas crianças e espero de todo o meu coração que essa ocupação lhe chegará brevemente."

Foto: Pau Storch

A rainha de Inglaterra não partilhava, porém, do mesmo entusiasmo, o que não causará pouca perturbação a Dona Maria II, que rejubilaria ao tomar conhecimento da primeira gravidez de Vitória e o subsequente nascimento da princesa Real, Vicky. Menos de um ano depois, quando nasceu o primeiro rapaz, Bertie, Dona Maria recomendou-lhe que evitasse os ciúmes da mais velha, como ela conseguira fazer quando o nascimento do Infante Dom Luís pôs em causa a "monarquia absoluta" do bebé Pedro.

Embora hoje alguns historiadores considerem que a rainha Vitória sofreu continuadamente de depressão pós-parto, que a Medicina do século XIX não estava em condições de diagnosticar, as duas iam comparando os pormenores da evolução e crescimento dos respetivos filhos, trocando presentes e retratos. A rainha portuguesa chegou a tricotar toucas para os pequenos primos e Vitória ficava deliciada com o envio de atlas, globos terrestres e livros sobre fauna e flora para Dom Pedro e Dom Luís, cada vez mais curiosos e interessados pelas maravilhas da tecnologia made in Britain.

Ao longo do trabalho de investigação ("este é um dos livros em que mais investiguei", admite), a autora deixou-se surpreender por uma Vitória que, sobretudo na sua juventude, não justifica a aura de puritanismo e austeridade que lhe é atribuída quase desde sempre: "Imaginava-a austera, casta e puritana. Mas a verdade é que ela e o marido tinham uma paixão carnal muito intensa e que durou até à morte prematura dele. Alberto, sim, era casto, austero, além de ser um homem admirável e empenhado."

Esta faceta hedonista da rainha já se manifestava, aliás, na juventude, diz a autora: "Era uma jovem festiva, que adorava deitar-se tarde, mas foi controlada pela mãe. Era uma esteta, obcecada pela beleza, embora não se sentisse bela. Antes de conhecer Alberto, teve uma paixão juvenil pelo seu primeiro-ministro, muito mais velho do que ela, Lord Melbourne."

Mesmo na amargura do luto eterno que pôs por Alberto, Vitória não deixava de se emocionar pelo amor verdadeiro: "Era muito tolerante com os amores dos filhos e até das filhas, o que é inesperado naquela época. Procurou casá-los de acordo com a sua vontade política, mas quando eles insistem em casar por amor, ela acaba por ceder. A única excepção era o príncipe herdeiro, futuro Eduardo VII, com quem sempre se mostrou mais intransigente: "A rainha era muito contraditória, tinha enormes atos de compaixão, mas conseguia ser muito fria noutras coisas", diz Isabel Machado.

O longo reinado de Vitória terminaria sob o signo do momento mais crítico das relações entre os dois países. Por causa das reivindicações de Portugal a vastos territórios entre Angola e Moçambique (o chamado mapa cor-de-rosa), o governo britânico recorre à ameaça da força e faz um ultimato. O expediente não parece agradar à Rainha, mas acaba por o sancionar, como se lê no livro: "Lentamente, a rainha de Inglaterra ergueu a cabeça para o seu primeiro-ministro, com a placidez que o choque lhe permitia:  (…) Inglaterra vai lançar um ultimato a Portugal? É o que está aqui expresso… Elucidai-me se me equivoco."

O jovem rei D. Carlos cede, ante a desproporção de forças militares. O sentimento anti-britânico toma as cidades portuguesas com uma violência que choca Londres: "(…) Nunca me serão indiferentes os insultos que me dirigem de Portugal (…) os meus súbditos são destratados, nem alimentos lhes vendem, extirpam-se os nomes ingleses de casas comerciais e ruas. Boicota-se o transporte de carga dos navios, nas escolas proíbe-se a nossa língua (…)".

Com o apoio do príncipe de Gales, grande amigo do monarca português, as relações entre as duas Coroas (e famílias) retomaram, após algum tempo, a velha cordialidade. Mas numa coisa a velha rainha estava certa: a crise de identidade nacional, que o Ultimatum britânico pusera a nu, causaria o assassinato de D. Carlos e de seu herdeiro, o príncipe D. Luís Filipe. Dois anos chegaria, enfim, a República.

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