A minha vida secreta como agente da CIA
Durante anos, Amaryllis Fox viveu na sombra. Para a família e amigos, era uma consultora de arte com contactos globais. Na verdade, era uma agente da CIA que participava em operações secretas na guerra contra o terror. Será ela a versão real da famosa agente clandestina Carrie Mathison, da série televisiva Segurança Nacional? Fomos descobrir.

Estamos no final da primavera de 2008 e um jovem casal americano acaba de chegar a uma belíssima ilha tailandesa para umas últimas férias antes do nascimento da filha.
No entanto, enquanto o sol se põe sobre os edifícios com telhados em colmo do aeroporto, Amaryllis Fox pede licença ao marido Dean, para se retirar e sai, sozinha, para apanhar um táxi. Sai do táxi em frente a uma loja de roupa, depois apanha um tuk-tuk até um centro comercial e depois um táxi partilhado até à praia, onde uma suite de hotel foi reservada para um encontro secreto com um traficante de armas húngaro tatuado que cheira a after shave e a suor. Grávida de cinco meses, Fox ainda não sabe que este encontro a colocará num caminho que a conduzirá às vielas de Karachi e a um confronto tenso com um trio de jihadistas para impedir uma tentativa de ataque bombista. Também não sabe que no futuro esse episódio figurará num livro de memórias comovente e fascinante que será usado para uma adaptação televisiva protagonizada por uma das maiores estrelas de Hollywood, antes de sequer ser publicado. O que Fox sabe, porém, enquanto espalha livros de arte pela suite do hotel e espera por Jakab, que vende precursores de armas nucleares a grupos terroristas, é que centenas ou talvez milhares de vidas dependem do que acontecerá a seguir. A família e os amigos íntimos de Amaryllis Fox creem que ela é uma consultora de arte especializada na China e noutros mercados emergentes a partir da sua sede, em Xangai. Algumas pessoas, incluindo Jakab, acreditam que ela é uma traficante de armas internacional que usa as visitas a galerias e estúdios de artistas como disfarce. Na verdade, Fox é espia. O marido pouco sabe sobre os seus esforços para impedir que armas de destruição maciça caiam nas mãos de extremistas. Fox também não pode perguntar-lhe muito sobre o seu trabalho porque Dean também é da CIA e tem os seus próprios segredos. O seu casamento sofre com toda a pressão destas evasivas forçadas. Talvez alguns dias numa ilha tropical lhes dê uma possibilidade de voltarem a ser um casal normal antes de serem pais. Ela só tem de fazer primeiro a sua delicada proposta de recrutamento a Jakab.

Onze anos mais tarde, Fox, agora com 38, está sentada à minha frente na sua casa, em Los Angeles, que foi em tempos um speakeasy dos anos 20. Tem o cabelo solto, caindo sobre um macacão azul, e está sentada sobre as suas pernas bronzeadas. Tem uma pequena tatuagem no braço que diz E Pluribus Unum, o lema de facto dos Estados Unidos da América (significa "De muitos, um"). Zoe, a bebé que nasceu na China e que acompanhou, em criança, a mãe nas suas missões para a CIA, está na escola. Uma segunda criança, nascida no início deste ano, está num carrinho ao fundo do corredor. O marido de Fox (não Dean, mas um neto do senador Robert F. Kennedy – voltaremos a isto mais tarde) está a dormir no andar de cima. O seu livro de memórias, Life Undercover [Coming of Age in the CIA, da Kindle Edition], foi lançado em outubro findo – partindo do princípio de que os boatos de ações judiciais do governo não o impedirão – e a adaptação televisiva protagonizada por Brie Larson, que a Apple considera parte essencial dos seus esforços para entrar a matar na guerra do streaming contra a Netflix, a Disney e a Amazon, já vai bastante avançada.
Amaryllis Fox não diz se "a poderosíssima série" é uma adaptação direta de Life Undercover ou uma ficcionalização da sua história, mas espera que seja uma série de televisão fantástica e cheia de suspense, mas também genuína e imersiva de uma forma que nunca vi". Embora apenas algumas escassas representações do mundo da espionagem a tenham impressionado ao longo dos anos, incluindo Syriana e Jogo de Espiões, ela nunca viu Segurança Nacional ou The Americans, as duas séries que parecem mais próximas das suas experiências. Porque não? Ela sorri. "Eu creio que iria ser muito irritante. Como um médico a ver [a série] Serviço de Urgência que está constantemente a dizer ‘Ah, mas isto é absurdo’ e depois toda a gente lhe atira pedaços de pizza porque a série, na verdade, só serve para entreter." Fox percorreu um longo caminho, desde 2008, entre aquela ilha tailandesa e esta casa arrendada no sonolento Laurel Canyon, um bairro descrito pelo The New York Times como "o Valhalla do rock de Los Angeles" devido à sua lendária cena musical da época hippy. Amaryllis Fox, que se ri muito e conduz um "Prius em quinta mão" apesar de a sua carreira estar a disparar (e de o seu padrasto, o empresário e produtor de cinema Steven Rales, ser multimilionário), desculpa-se pelo estado da casa. "Infelizmente, esta casa é, essencialmente, o território de um bebé de sete meses", diz, com um grande sorriso. Fox parece estar a saborear esta segunda visita aos primeiros tempos da maternidade. As emoções devem ser menos complicadas agora que não está preocupada com ter de partir numa missão secreta e potencialmente mortífera a qualquer altura. Anos de meditação ajudaram-na a descontrair. Por isso, embora as suas participações em programas televisivos tenham atraído atenções indesejadas da parte de alguns "perseguidores" sinistros, Fox e o marido, Bobby, que conheceu no Burning Man Festival, em 2015, deixam o portão da casa aberto. "Eu acho que, de certa forma, a nossa sensação de segurança e talvez até a nossa segurança real é uma profecia que nós próprios criamos", afirma. "Se nos sentirmos constantemente ameaçados é mesmo possível que fiquemos sob ameaça. É por isso que eu tento confiar nas pessoas." Fox passou anos a desenvolver esforços para poder falar sobre a sua antiga vida. Depois de deixar de trabalhar para o governo, em 2011, contou à mãe e ao padrasto o que fizera, levando-os a passear num pequeno veleiro para garantir que conseguia chegar ao fim da conversa. Explicou-lhes que "o que eu estava prestes a dizer-lhes iria exigir alguma compreensão relativamente ao que fizera e aos sítios onde estivera, mas que, se pensassem bem, perceberiam que era a pessoa que eles conheciam que fizera aquelas coisas". Eles compreenderam e ela não teve muita vontade de conversar sobre o assunto com mais ninguém. A sua primeira tentativa de se reinventar foi como empreendedora tecnológica, tornando-se CEO do Mulu, um website de recomendações orientado para a justiça social que usufruiu de um breve sucesso por volta de 2012. Ela encolhe os ombros ao mencioná-lo. "Foi uma espécie de descompressão. Não era, definitivamente, o caminho certo para mim." O ponto de viragem deu-se quando decidiu assumir o seu passado. Em 2016, gravou em filme um monólogo curto e convincente dirigido à [estação televisiva] Al Jazeera, afirmando que, da perspetiva de uma antiga agente da CIA, era conveniente ver o conflito através dos olhos do inimigo. "Um combatente da Al-Qaeda apresentou-nos, uma vez, um argumento válido durante um interrogatório", diz Fox no filme. "Ele afirmou: ‘Todos esses filmes que a América faz, como O Dia da Independência, os Jogos da Fome e a Guerra das Estrelas? São todos sobre um pequeno grupo de rebeldes esfarrapados que fariam tudo o que pudessem, com os seus recursos limitados, para expulsar um invasor tecnologicamente avançado. E aquilo que você não percebe é que, para nós, para o resto do mundo, você é o Império e nós somos Luke [Skywalker] e Han [Solo]. Vocês são os extraterrestres e nós somos o Will Smith." O monólogo tornou-se viral, tendo sido visto mais de 100 milhões de vezes. Desse ponto de partida, Amaryllis Fox ganhou visibilidade como realizadora de documentários, oradora e guru. Também começou a organizar os factos da sua vida para redigir um livro para partilhar mais algumas coisas que tinha aprendido. Quando começou a trabalhar na CIA, imediatamente após o 11 de setembro, Fox queria "apagar o adversário do mapa" por várias razões, incluindo o facto de admirar e de se ter correspondido durante algum tempo com Daniel Pearl, o jornalista do The Wall Street Journal que foi raptado em Karachi e assassinado por jihadistas, em 2002. Gradualmente, porém, Fox percebeu que essa abordagem não funcionaria. Se matarmos o nosso inimigo, "ele vai ter amigos e familiares e [os inimigos] vão-se multiplicar". Como nunca usou uma arma de fogo (embora, por vezes, tivesse consigo uma lâmina de barbear para emergências), a criação de relações tornou-se a sua arma mais eficaz. "Quando levamos uma arma para algum sítio, as probabilidades de nos envolvermos num confronto são muito mais elevadas do que se não tivermos uma." É "bastante pragmático" acreditar que podemos descobrir pontos em comum mesmo quando estamos a lidar com organizações terroristas, diz Amaryllis Fox. Isto é, a não ser que estejamos a lidar com um psicopata, mas não era provável que ela encontrasse um. Os grupos terroristas "funcionam muito à base da confiança e exigem muita perceção emocional do outro – algo que os psicopatas não costumam conseguir fazer muito bem".
A hostilidade que paira atualmente sobre os EUA motivou-a a falar. Se ela conseguiu aprender a trabalhar com pessoas que estavam a tentar matá-la, como referiu, então talvez os leitores norte-americanos de todas as inclinações políticas possam encontrar uma forma de coexistirem melhor com os seus vizinhos. "Eu acredito mesmo que encontrar pontos em comum é o maior ato de patriotismo que qualquer um de nós pode fazer agora." Nem toda a gente considera que escrever um livro sobre o trabalho desenvolvido na CIA é um ato patriótico. Recentemente houve relatos de que Fox ainda não recebera aprovação do Conselho de Revisão de Publicações da Agência [CIA] e que enfrentava uma potencial ação judicial se decidisse avançar com a publicação. Ela insiste que cumpriu as obrigações dos seus acordos com a Agência e que seguiu as diretrizes sobre a necessidade de alterar ou de omitir pormenores operacionais, de modo a evitar pôr agentes em risco. Segundo diz, arregalando os olhos, "há muita coisa que não está no livro". Esta manhã, Fox saiu de casa cedo para gravar a narração de uma série da Netflix, ainda por estrear, sobre a guerra contra as drogas "e a razão pela qual isso nunca vai funcionar em termos económicos". Além de apresentar a série, ela foi responsável por grande parte da escrita e da produção. As filmagens foram feitas na Colômbia, no Quénia e na Birmânia, entre outros locais. "Nós gostamos de retratar os traficantes de drogas, os transportadores de drogas e os portadores de drogas como maldade pura", diz, mas à exceção dos barões da droga, a maioria das pessoas envolvidas, como "produtores e portadores, traficantes e consumidores, são respostas bastante previsíveis às opções económicas". E ressalva: "Isso é ótimo porque significa que podemos mesmo mudar algumas dessas opções económicas." O problema é que ainda estamos a enterrar milhares de milhões de dólares na luta contra os barões da droga em vez de abordarmos o quadro económico a longo prazo.

Amaryllis Fox lembra-se do Afeganistão, onde os EUA preferiram gastar dinheiro nas forças militares em vez de o gastar em infraestruturas, e refere que o país está a desperdiçar a possibilidade de ‘poder suave’ que a China tantas vezes usa através da sua iniciativa Belt and Road Initiative que investe em estradas, ferrovias, ensino, indústria, agricultura e tecnologia em quatro continentes. Financiar algum tipo de programa de serviço nacional voluntário e não violento em grande escala para que os americanos construam e desenvolvam projetos no estrangeiro seria uma maneira de contrariar esta tendência, sugere Fox. "Uma bandeira americana numa escola ou uma bandeira americana sobre uns estilhaços são duas coisas muito diferentes." São assim as conversas com Fox. Nós achamos que estamos a conversar sobre a sua manhã e, de repente, ela está a falar com parágrafos perfeitamente compostos, elaborados a partir de dados sólidos e argumentos inesperados e cuidadosamente alinhados. Fox herdou esta característica do pai, antigo professor universitário de economia do norte do estado de Nova Iorque que lhe deu a mente analítica, conforme diz. A mãe, uma inglesa cujo primeiro beijo foi com Daniel Day-Lewis numa peça de teatro da sua escola, em Bedales, deu-lhe a alma, segundo confessa. "E a maneira como essas duas coisas interagiram, com uma ou outra assumindo proeminência em alturas diferentes da minha vida, tem mais ou menos forjado o meu caminho."
Quando Jakab chega à suite do hotel, em 2008, há cervejas abertas. Ele fuma e a sua conversa de circunstância deriva para o sofrimento económico do povo húngaro. Qualquer suspeita que ele possa ter sobre a razão pela qual aqui se encontra permanece em silêncio. Por fim, Fox, que se assegurou de que não haveria nenhuma cama visível de modo a evitar mal-entendidos, faz a sua abordagem. "Aqueles conhecimentos especiais que eu lhe disse ter em Washington, os amigos com quem falo", diz-lhe, "e se pudéssemos trabalhar juntos para tratar do seu povo? Para tratar de si?" As palavras ficam penduradas no ar. O traficante de armas ri-se e diz: "Está a confundir-me com o Batman." Fox insiste, aproxima a sua cadeira dele e mantém o contacto visual. Apela à sua consciência, ao seu orgulho e ao seu bolso. Juntos, eles podem travar atrocidades. Ele poderá dizer aos netos que salvou o mundo por causa deles. Será contratado pela CIA e começará por receber mil dólares por mês. Será capaz de contactá-la usando um vale de oferta da Starbucks para a avisar que precisam de se encontrar (ela verificará o saldo da conta online todos os dias e, se ele tiver comprado um café, ela saberá que têm de se reunir). "Não me deixe morrer", diz ele. Amaryllis Fox apresenta-lhe um contrato formal (porque a CIA acredita que um acordo em papel é psicologicamente mais vinculativo do que um acordo verbal) e Jakab dá-lhe um abraço enorme e espontâneo. "Depois", escreve Fox, "ele alinha em travar um inverno nuclear com a tinta azul de uma caneta de hotel barata." Quando ele se vai embora, Fox queima o contrato no lavatório da casa de banho e despeja as cinzas na sanita. Sai furtivamente pelas traseiras do hotel e caminha, de mochila às costas, ao longo da praia até chegar ao albergue para viajantes onde ela e Dean estão hospedados. Escreve: "Durante alguns minutos tudo parece possível. Travar a guerra nuclear. Tornar o meu casamento real. Apostar tudo. Então chego ao nosso quarto de hotel, que está vazio, e encontro um papel rabiscado à pressa: ‘Tive de ir trabalhar. Vemo-nos em casa.’" Fox lembra-se de ter tido uma "infância incrivelmente feliz". Como a família se mudava muito devido ao trabalho do pai com governos estrangeiros, Amaryllis ganhou capacidades de sobrevivência que se revelaram essenciais mais tarde. Sabia fazer amigos rapidamente e ser seletiva sobre que partes da sua personalidade mostrar em cada novo sítio. Aprendeu que poderia fingir afinidades apesar das diferenças de hábitos ou de aparência. E desenvolveu um apetite precoce pelo risco. Em Londres, onde viveram quando o pai foi consultor do gabinete de [Margaret] Thatcher, ela saía do quarto, pela janela, durante a noite e sentava-se no telhado apreciando o Big Ben. Quando tinha oito anos, uma das suas melhores amigas foi morta no bombardeio do avião Lockerbie. Para controlar o horror que a consumiu, o pai ensinou-a a ler este jornal [o The Times, no qual este artigo foi publicado]. "Tens que compreender as forças que a levaram", explicou-lhe, enquanto lhe mostrava como navegar por entre as páginas do The Times. "Vai parecer-te menos assustador assim." Fox tornou-se uma seguidora voraz dos assuntos da atualidade e uma fervorosa crente na recolha de informação para formar as suas próprias opiniões. A sua adolescência foi complicada devido ao divórcio dos pais e ao facto de ambos terem expectativas extremamente altas relativamente aos seus estudos, como admite. Fox recusou uma vaga na prestigiada Academia Naval dos Estados Unidos para estudar Engenharia Aeroespacial na Universidade de Oxford. Antes disso, porém, fez uma pausa de um ano nos estudos e viajou até à Tailândia para trabalhar num acampamento para refugiados fugidos do governo militar de Rangun, situado junto à fronteira com a Birmânia. Conheceu Min Zin, um escritor dissidente que a levou na sua mota, de olhos vendados, até a uma casa de árvore secreta, no meio da selva, onde ele e fugitivos da junta assassina imprimiam o jornal da oposição da Birmânia. A sua amizade tornou-se romântica e, pouco depois, Fox estava na Birmânia, fingindo ser a metade de um casal, em lua de mel, sendo a outra metade um banqueiro e cineasta amador britânico que captava imagens de protestos em manifestações organizadas. As manifestações foram suprimidas antes de sequer acontecerem, mas Fox conseguiu fugir à sua escolta para entrevistar Aung San Suu Kyi, na altura prisioneira do regime, e enviar, furtivamente, a gravação para a BBC. Imediatamente antes de sair do país, Fox e o seu companheiro de viagem britânico foram detidos. Ela passou 24 horas em prisão solitária, interrogando-se sobre o que os guardas lhe fariam antes de a libertarem. Em Oxford, onde estudou teologia e direito, apaixonou-se por Anthony, um sul-africano que era "um marginal como eu", como refere, e, em seguida, no seu segundo ano, um tipo arrogante e dois antigos alunos da universidade que, supostamente, trabalhavam para os serviços secretos britânicos, abordaram-na enquanto ela bebia um copo num pub. Ela recusou a sua proposta. "Não acredito nessa conversa de capa e espada", disse-lhes. "Obrigada pela cerveja." Os ataques do dia 11 de setembro de 2001, ocorridos antes do seu último ano em Oxford, mudaram a sua maneira de pensar. Fox fez um mestrado em Conflito e Terrorismo na School of Foreign Service da Universidade de Georgetown. No decorrer dos seus estudos inventou um algoritmo para prever quão provável é determinada área ou país ser utilizado como refúgio terrorista contra a vontade daqueles. Desta vez, quando os recrutadores vieram à sua procura, ela disse-lhes que sim.
A família presumia que ela estava a trabalhar como consultora para uma empresa multinacional enquanto concluía o mestrado. Na verdade, Fox estava na sede da CIA, em Langley, na Virgínia, escrevendo relatórios com informações secretas, baseados em telegramas confidenciais do Congresso e, por vezes, do próprio presidente. Depois de concluir os seus estudos em Georgetown, o seu chefe entregou-lhe uma carta. Ela era desejada pelo Clandestine Service: os agentes de elite, as pessoas que interagem com o inimigo no terreno. Ela diz: "Foi o convite mais assustador que recebi e o convite que eu mais queria receber." A sua formação foi no departamento do Iraque. A sua primeira tarefa foi ver o mesmo vídeo de uma decapitação cem vezes, em busca de pistas que denunciassem o local do crime. Entretanto, Anthony mudara-se para os Estados Unidos, numa tentativa de consolidar o seu namoro que estava a sofrer com a distância. Como era estrangeiro, a única maneira de obter autorização da CIA para viverem juntos era casando-se. Ele foi submetido a um teste num detetor de mentiras antes de ser informado para quem ela trabalhava. No entanto, passar seis meses numa base secreta sem comunicar com o seu recém-marido, os amigos ou a família pôs fim à sua união. "Casar por razões administrativas não é a melhor das ideias", recorda Fox.

Ela descreve "a Quinta", como todos lhe chamavam, como um mundo saído do Truman Show: um país ficcionado, com diplomatas falsos, cenários de combate urbanos falsos e o seu próprio canal de notícias falso. Os recrutas eram submetidos àquele que a CIA diz ser o programa de formação em espionagem mais difícil do mundo: um programa impiedosamente seletivo, no qual os formandos são eliminados a cada etapa. No seu último dia, ela conheceu um colega que também sobrevivera: Dean Fox. Estiveram separados durante algum tempo. Dean foi enviado para o Afeganistão para uma missão militarizada. Amaryllis conseguiu uma missão como "infiltrada não oficial", ou seja, seria enviada para o campo sozinha fingindo ser uma civil, neste caso uma consultora de arte, sem estar protegida por imunidade diplomática. A família achava mais fácil conciliar a sua Amaryllis com um trabalho no mundo da arte. "Eu fiquei aliviada quando eles acreditaram", escreve Fox. "Se eles acreditaram, talvez a Al-Qaeda também acreditasse." A Agência escolheu a China, onde o mercado emergente da arte estava em erupção, para aplacar quaisquer suspeitas de que ela tivesse alguma relação com o governo dos EUA. A colocação foi de seis anos. A única maneira de ela e de Dean ficarem juntos era se ele fosse com Fox, o que implicou outro casamento à pressa. Em Xangai, Amaryllis Fox interpretou publicamente o papel de uma consultora de arte algo preguiçosa. Ela ou o marido eram então chamados para outros países. Não podiam dizer nada um ao outro, mesmo que houvesse um risco palpável de poderem não regressar. Com agentes da CIA, ela limitava o número de mentiras ao mínimo e procurava criar ligações genuínas. Com a família e os amigos, Fox tentava ser sincera sobre tudo o que não estivesse fora dos limites. "A maioria das nossas conversas com as pessoas que amamos é sobre ‘tudo o resto’. Falamos sobre um livro, uma série de TV ou namorados. O problema é que essa compartimentalização torna-se cansativa. Existe uma maneira de sermos genuínos em cada compartimento e foi isso que eu fiz. Mas, passado algum tempo, queremos derrubar todas as barreiras dos compartimentos e sermos sempre nós próprios." Fox lembra-se de uma noite em que discutiu com Dean e foi para a casa de banho chorar. Três meses mais tarde, numa reunião em Langley, o entrevistador perguntou-lhe o que a perturbara naquele dia e mostrou-lhe uma fotografia de vigilância, intercetada aos serviços secretos chineses, captada através do espelho da casa de banho. Pequim não sabia que eles eram espiões, mas estava a vigiá-los de qualquer maneira.
A filha Zoe nasceu em setembro de 2008 e a sua chegada redefiniu a equação de risco seguida por Fox durante muito tempo. Alguns meses mais tarde, Jakab alertou-a sobre um possível ataque em Karachi. Ela sabia que tinha de lá ir pessoalmente e que era muito perigoso levar a filha consigo. O seu relato de como a missão decorreu desafia todos os limites da credibilidade, mas deve resultar lindamente na televisão. Naquela altura, porém, Fox só pensava em Zoe. "Em muitos aspetos, Karachi foi a [experiência] mais assustadora que eu tive porque os riscos eram muito elevados. Foi a primeira vez que percebi que eu me sentia moralmente compelida a fazer aquela escolha [ir ao Paquistão], mas que o custo potencial era enorme e real – e que seria real para outras pessoas além de mim." Por fim, a trajetória de Dean na agência trouxe a família de regresso a Washington. Quando ele foi novamente destacado, a mulher e a filha ficaram para trás.


Fox ainda sente um enorme respeito pelas capacidades da CIA para desmontar o teatro da política e do extremismo. No entanto, não tem saudades daquela vida. Há poucos objetos que evidenciem as suas aventuras na casa que agora habita em Laurel Canyon. Talvez os copos de whisky da CIA que um antigo mentor lhe ofereceu como presente de casamento estejam algures, mas a maior parte daquele mundo-sombra vive na sua memória. "Quando saímos, saímos, meu querido. É um trabalho duro e solitário. Podemos dar o nosso melhor enquanto lá estamos, sabendo que, quando sairmos, será salvaguardado e substituído por outra pessoa." Amaryllis Fox conheceu Bobby há quatro anos. Casaram-se em 2018. O seu nome completo é Robert F. Kennedy III e ele é ator, escritor e realizador e, por acaso, pertence à dinastia política mais "aristocrática" e trágica da América. O avô era o senador Robert F Kennedy, cujo assassinato durante a campanha presidencial de 1968 devastou uma geração de americanos idealistas, cinco anos após o homicídio do irmão, o Presidente Kennedy, em Dallas. O retrato de Bobby Kennedy, pendurado numa parede e por detrás dos ombros de Fox, esteve de olhos postos em mim durante toda a entrevista. A bebé que está no carrinho também se chama Bobby. "Foi em homenagem ao pai, ao avô e ao bisavô. Ela vai transportar este legado para um futuro no qual as mulheres estão ao mesmo nível dos pais, irmãos e filhos para fazerem o trabalho do amor no mundo", como disse Fox num post no Instagram. Amaryllis Fox ainda costuma sentar-se de costas para a parede, em público, e, muitas vezes, repara involuntariamente que determinado local seria um bom local de sinalização, mas o tempo em que vivia com os nervos à flor da pele já faz parte do passado. Se tem medo de alguma coisa? "Oh, agora no fim é que me pergunta isso?" Pensa durante alguns instantes. "Eu creio que tenho medo de falhar para com as pessoas que amo e de não conseguir deixar o mundo um pouco melhor do que o encontrei. E é por esta ordem, agora. Antigamente, eu acho que era pela outra ordem."
Créditos: Exclusivo The Times Magazine/Atlântico Press. Tradução: Erica Cunha e Alves
