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A idade do outono: o que estamos a fazer com os mais velhos?

"A pandemia só veio tornar evidente o abandono social dos mais velhos. É como os trabalhos que trocam os experientes pelos estagiários que fazem tudo o que for preciso; é como os homens que trocam as mulheres do seu tempo pela namorada mais nova que bate palmas a tudo o que diz."

Foto: IMDb
06 de outubro de 2020 às 08:41 Patrícia Barnabé

De há uns anos para cá comecei a adorar o outono. Nunca na vida. Se antes me solidarizava com a natureza, que me parecia entristecer, aprendi a observar a bela melancolia das coisas, só possível no recolhimento. E, e ao contrário do inverno, não temos de ficar mais quietos, mas podemos, o que é muito libertador depois da azáfama do verão. O outono é uma espécie de suave mergulho interior para onde se escorrega despreocupadamente como num sofá, mas parece trazer uma qualquer revelação, por pequena que seja. Estar no nosso canto pode ser uma viagem. Depois chegam as chuvas, o que também ajuda, como pingentes de um lustre batidas pelo vento, o embalo é doce, porque ainda não chegou o frio. Permanece a brisa do estertor do verão que se cruza com um certo conforto de outono.

O outono é pouco óbvio, por isso tem mais piada. Tem mais camadas. A luz é piedosa e cremosa, tudo parece medido no tempo da paciência. Preparamo-nos para descer os níveis, sem obrigar ao juízo ou ao aborrecimento. Imagine um recatado vestido Prada que não precisa de sobressair. O outono é isso, uma graça mais elaborada, um universo de subtilezas para bom entendedor.

Vestimos aquela camisa ou sweat, tapamos as pernas, e tudo depende, até a meteorologia. Podemos usar óculos de sol e chapéu de chuva no mesmo dia e ao mesmo tempo sem parecermos fugidos do manicómio: "Parece a maluquinha de Arroios", lembram-se dessa expressão? Mas no outono podemos vestir-nos um pouco à doida, tipo Edie Beale no Grey Gardens, saias que são vestidos, padrões inconciliáveis e texturas e acessórios de estações opostas só domadas por quem sabe. Brincar ao cross dressing é do mais divertido que há, e no outono ainda mais do que na primavera, porque se o vestir costuma ser mais calculado do que o despir, pode ser igualmente sexy. Ou até mais.

No outono, se retirarmos a rentrée que é uma espécie de tiro de partida em que temos de estar juntos e felizes, não há muito por onde alegrar os dias. Nem por onde fazer de conta, chegados das férias voltamos ao que somos e ao que temos.

Se as estações fossem pessoas, o outono marcaria o princípio do amadurecimento. A sociedade – e a moda como seu espelho fiel – vive tão obcecada com a energia da juventude, e a sua frescura irresistível que esquece esta subtileza preciosa vinda da patine dos anos e de uma humildade que só chega com a idade. Na era da rapidez e do entretenimento, então, tudo o que é interessante e que venha da maturação do tempo é para esquecer. Só com a idade percebemos que não sabemos (mesmo) nada.

Sempre adorei velhos. Mas dizer velho parece ofensivo, não é? As palavras, que foram inventadas para nos ajudar a pensar, às vezes ganham um peso alheio e errado. Não gosto da condescendência de idoso, velho para mim, como num vinho, é sinal de apurado, excelente, raro.  Gosto dos muito mais velhos porque eles me inspiram, porque os admiro. Muito do que dizem, se bem escutado, desdobra-se em muitas outras coisas. Alguém imagina o Downton Abbey sem Violet Crawley, interpretada por Maggie Smith, a velha condessa de Grantham? Não. Não há nada como o humor dos mais velhos.

Só que injusta e tontamente atiramos os nossos velhos para lares, tantas vezes descuidados, quase sempre demasiado caros. Nunca percebi esta parte da vida, confesso. Queremos saber da vontade dos novos, tanto e a todo o momento - o mercado está feito à sua imagem -  mas nunca escutamos os mais velhos? Como assim?! Talvez na política, na justiça e na igreja, onde ainda é grande o peso da tradição e da sabedoria, de resto, chutam-se os que mais sabem e viveram para um canto. Somos mesmo burros. É como os trabalhos que trocam os experientes pelos estagiários que fazem tudo o que for preciso; é como os homens que trocam as mulheres do seu tempo pela namorada mais nova que bate palmas a tudo o que diz. Ainda não percebi se é baixa auto-estima ou preguiça, mas dá pena. É que quanto mais se sabe, menos se bajula e se deseja bajulação. 

Uma vez entrevistei uma chinesa muito bela que se mudou para Portugal e conseguimos entender-nos através da sua filha que crescera já em Lisboa. Disse: "O melhor de Portugal é a generosidade das pessoas, o pior é a maneira como elas se esquecem dos mais velhos". Parece um paradoxo, e parece porque é, de facto. "Jamais aconteceria na China", rematou. Sendo que a China é tanta coisa que não sabemos, parece saber algumas coisas mais do que nós. Aquela frase bateu-me no centro. Passei a vida sozinha com este assunto nas mesas de jantar, entediadas com o meu despropósito e devolvendo-me o mesmo silêncio desconfortável a que votamos os nossos velhos. A pandemia só veio tornar evidente o abandono social dos mais velhos. E nem as aberturas de telejornal com surtos espalhados pelos lares deste país e deste mundo parecem dar-lhes tempo de antena. Como podemos saber do futuro se nunca consultarmos o passado? Agora, no presente, onde tudo acontece?

Tirando os hereges, gostamos quase sempre das crianças, todas em geral e em particular, até das dos outros, as mesmas que roubam despudoradamente as atenções e as conversas dos adultos que nunca temos por sua causa. Mas quase nunca se repara nos velhos, muito menos nos dos outros. E alguns têm tanta piada e tanto para dizer.

Uma vez uma psicóloga disse-me que o desapego que temos com a velhice se deve muito ao facto de não podermos ter memória do nosso futuro. Todos fomos crianças, e lembramo-lo enternecidamente, por isso as protegemos; nelas depositamos a esperança da humanidade, e a nossa própria esperança. Imaginar o futuro é muito mais irrealista e delirante do que ouvir a verdade de quem sabe, que pode ser uma grandessíma chatice, principalmente quando nos põe em causa. Ficar horas à conversa com os mais velhos é um sopro de vida, um bálsamo, mesmo quando são rezingões.

Por mim, os nossos mais velhos eram levados em braços no meio da multidão para ver melhor. Mais não seja por terem construído tudo isto para nós. Todos devíamos acabar a vida melhor do que a começámos. No mínimo. Porque não temos uma rede pública de lares, bons e cuidados, como temos de escolas? O Woody Allen diz que devíamos viver ao contrário: começar mortos e acabar num orgasmo. O que, assim de repente, parece uma óptima ideia, até porque já ninguém caminha para novo.

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