Porque a greve dos atores e argumentistas é a ocorrência mais importante das últimas décadas em Hollywood
A chegada da inteligência artificial à indústria, a usurpação do poder de escolha de guiões por parte do telespetador e os salário estão na origem dos tumultos.
Pela primeira vez desde 1960, atores e argumentistas fazem greve ao mesmo tempo em Hollywood. É, sobretudo, a greve mais importante da indústria, pois trata de questões inéditas, como direitos autorais e de imagem em tempos de Inteligência Artificial.
Hoje, a Inteligência Artificial tem a capacidade de gerar conteúdo feito por medida para cada telespectador a partir do histórico de navegação de cada um. Afinal, eles têm acesso ao que nós assistimos já há muitos anos. A IA escreve o guião e usa imagens previamente escaneadas dos atores. Assim, o telespectador pode "encomendar" um filme com determinada história, feito com determinado ator, e até mesmo inserir-se a si mesmo na narrativa. Filmes e programas de televisão já terminados podem ganhar novos capítulos independente da vontade de seus criadores e participantes originais. Já há tecnologia para tudo isso.

Não é à toa que a palavra mais adequada para esse tipo de criação artificial é "conteúdo", e não filme. O que nos atraí numa história criada para o cinema ou para a televisão é o aspeto humano que nos faz pensar, rir, emocionar. Não é somente o emprego de milhares de trabalhadores que está em risco (não só atores e argumentistas, mas também outros tipos de profissionais que trabalham num set de filmagem, como maquiadores e figurinistas). O que está em risco é a própria arte de contar uma história.
A Inteligência Artificial é uma ameaça para inúmeras profissões, como advogados, jornalistas, professores, designers, engenheiros, quase todo setor de atendimento, funcionários de fábrica e mais. A lista é enorme, e só cresce. A greve da SAG-AFTRA (Screen Ators Guild-American Federation of Television and Radio Artists) é uma oportunidade de gerar visibilidade para uma causa que poderia passar batida. Afinal, são os artistas que aprendemos a amar, e o que está em risco são as histórias que ajudaram a moldar a nossa personalidade, nossa alma.
Por isso, é importante que as celebridades mais proeminentes se tornem o rosto do movimento, mesmo que não sejam as mais afetadas. A princípio, uma greve de atores em Hollywood pode parecer bobagem, afinal, as primeiras coisas que nos vêm à mente quando pensamos nas grandes estrelas do cinema são tapetes vermelhos, roupas e joias caríssimas, e muito, muito glamour. No entanto, o SAG-AFTRA tem 160 mil membros, e só uma pequena percentagem vive no luxo, enquanto a grande maioria são trabalhadores precarizados, em constante dificuldade financeira.
É só pensar no seguinte: o Tom Hanks entra em um bar, e todos os clientes e funcionários daquele bar são atores. É comum que a primeira experiência de um ator iniciante num set de filmagem seja nesse tipo de papel, sem crédito, com uma ou duas falas.
Além da IA, outro motivador para a greve foi a mudança de como os residuais são contabilizados no streaming, em comparação ao modelo anterior, seja na televisão aberta, seja com DVD ou VHS. Os residuais são os pagamentos a longo-prazo aos atores e argumentistas a cada reprise [reposição] de filmes ou programas de televisão. Essa estrutura foi criada justamente durante a última greve simultânea dos atores e argumentistas, há mais de sessenta anos. Esses pagamentos variam de acordo com o tamanho do papel, o orçamento inicial da produção, a duração do filme ou programa de televisão, e o valor diminui à medida que o tempo passa.

Em tese, o streaming também paga residuais, mas o valor é irrisório. Às vezes são apenas alguns centavos, a ponto que é preciso juntar vários cheques para que faça sentido ir ao banco sacar o dinheiro. Em 2020, a atriz Kimiko Glenn, que interpretou Brook Soso na série Orange is the New Black, publicou um vídeo no TikTok mostrando alguns cheques no valor de apenas dois cêntimos por sua participação em 44 episódios da série, uma das mais bem-sucedidas da Netflix. Glenn não é a única pessoa do elenco a estar em apuros financeiros mesmo com um papel relativamente expressivo numa série de sucesso. Matt McGorry, intérprete de John Bennett, precisou manter um segundo emprego durante as gravações da série para conseguir pagar as contas, mesmo sendo reconhecido nas ruas.

Matt Damon tem sido um dos atores mais vocais a respeito das mudanças que ocorreram na indústria cinematográfica nas últimas décadas. "É realmente uma questão de vida e morte". Embora Matt Damon ganhe dezenas de milhões de dólares por filme, 80% dos membros da SAG-AFTRA recebe menos que 26 mil por ano, que é quantia mínima para receber seguro-saúde – situação ainda mais grave quando lembramos que não existe sistema de saúde público e gratuito nos Estados Unidos.
Ainda assim, Bob Iger, CEO da Disney, disse recentemente que as demandas dos grevistas são irrealistas. Detalhe: essa declaração foi feita durante uma entrevista na Conferência de Sun Valley, em Idaho, considerado o "retiro dos bilionários", que foi parodiado até mesmo num episódio de Succession. Isso, junto com seu salário de 27 milhões de dólares, faz com que ele soe um tanto como Maria Antonieta. "Uma hora as pessoas quebram os portões de Versailles, e é nesse momento que estamos agora", declarou Fran Drescher, presidente da SAG-AFTRA.

A AMPTP (Alliance of Motion Picture and Television Producers) diz não ser capaz de acatar as demandas do sindicado, mas algumas produtoras independentes conseguiram, mesmo com muito menos dinheiro. É o caso da A24, responsável por sucessos como Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo, mas longe de ter a mesma lucratividade dos grandes estúdios, com sua lista infinita de blockbusters. É mais uma prova que o que está em jogo aqui não é a sobrevivência de um modelo económico, uma vez que é sim possível uma empresa sobreviver garantindo condições dignas aos trabalhadores, e sim a ganância em detrimento tanto da arte quanto da justiça.
*A jornalista escreve em Português do Brasil.

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