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Mayra, a diva rebelde

Conversámos com Mayra Andrade e debruçamo-nos sobre esse conceito, tantas vezes indecifrável, que é a continuidade na mudança. A cantora fala-nos de Manga, o seu mais recente álbum, retrato lusófono de uma mulher inteira e livre que ainda sorri como uma menina.

11 de maio de 2020 às 07:59 Rita Lúcio Martins

Enganam-se todos aqueles que pensam que Mayra Andrade dará uma resposta só para ser agradável ou politicamente correta. A mulher, agora com 35 anos, até pode estar disposta a fazer algumas concessões, mas dificilmente aceitará alguma que comprometa a sua liberdade. Afinal, é isso que mais preza. E foi isso – e uma vontade férrea aliada à determinação – que, uma vez mais, ficou evidente. Num determinado momento da conversa, que fluiu sem derivar para o acaso ou sem cair na trivialidade, lembrou-se de um episódio antigo: "Quando tinha 12 anos e vivia na Alemanha, país onde o meu padrasto era embaixador de Cabo Verde, pediram-me que levasse flores a Cesária Évora, no final de um espetáculo. Eu fui e apresentei-me: ‘Olá, eu sou a Mayra e sou cantora.’ Porque eu já era cantora, mesmo não fazendo palcos. Ela respondeu: ‘Nesse caso, nunca te esqueças que o público é que decide o que será feito de ti. Se te coloca lá em cima ou se te deixa cair.’" O oráculo, vindo de alguém que a própria Mayra define como parte essencial da banda sonora da sua infância, nem por um momento a assustou: "Acho importante dizer a verdade às crianças e, talvez pela minha personalidade, aquilo fez todo o sentido." Curiosamente, o sucesso internacional da cantora cabo-verdiana falecida em 2011 coincidiu com a altura em que a pequena Mayra saiu de Cabo Verde, nos anos 90, aos seis anos de idade. "Eu saía, ainda criança, mas ao mesmo tempo uma voz de Cabo Verde começava a irradiar para o mundo. Era como se a Cesária estivesse sempre comigo."

No final prevalece a sensação de uma certa independência, traduzida na forma como Mayra fala, analisando cada etapa do percurso, os erros incluídos, as aprendizagens feitas. Diz que os discos são bons retratos da pessoa que foi, em diferentes momentos, e não renega nenhum. Nesta fase, a de Manga [quinto álbum lançado em fevereiro de 2019], surge mais confiante e mais solta, disposta a arriscar e a errar, se for caso disso. Uma coisa parece certa: independentemente do lugar em que o público a possa vir a colocar, nunca pedirá desculpas por ser ela própria.

Cinco anos passaram desde a última vez que conversámos, numa altura em que estava prestes a instalar-se em Lisboa. Foi um período de grandes mudanças… Dolorosas ou felizes?

Acho que, muitas vezes, o crescimento faz-se através da dor. Felizmente, eu não tenho nenhum acontecimento dramático a marcar a minha vida, mas, ainda assim, crescer dói. Olhar para dentro dói. Os últimos cinco anos foram muito interessantes porque foram de muita mudança. Saí de Paris, onde vivi durante 14 anos, e decidi vir para Lisboa, no final de 2015, porque já não estava feliz. Lisboa revelou-se uma cidade muito acolhedora, onde encontrei de novo o sol, a comida caseira, a praia, o rio, o próprio trato entre as pessoas… Enfim, tudo aquilo que faz de Lisboa a cidade que me deu o que estava a precisar. O lançamento de Lovely Difficult [quarto álbum, de 2013] coincidiu com uma fase muito tumultuosa que terminou, precisamente, com essa mudança para Lisboa. Aqui encontrei novas inspirações, pude dedicar-me a mim e ao novo disco [Manga, de 2019]. Essa mudança no meu estado de espírito refletiu-se muito na minha música. Eu acho que a mulher de trinta e tal anos atravessa vários processos que podem ser muito determinantes para a década seguinte. É um processo mais profundo e cirúrgico, menos visível, mas muito real. Vejo beleza em todas as minhas fases porque sinto que tenho essa capacidade de viver e, ao mesmo tempo, ver-me de fora. Penso que sempre tive alguma maturidade para a minha idade, mesmo quando era criança ou adolescente. Depois, já na idade adulta, apercebemo-nos de que há coisas imaturas que permanecem ou que arrastamos. Precisamos de olhar para elas e fazer uma triagem, a reciclagem daquilo que não nos ajuda. Eu gosto muito do ser humano. E também gosto muito de mim mesma. Acho que só conseguimos amar e deixarmo-nos ser amadas quando isso acontece.

Admite que houve um trabalho de introspeção, mas também de autodescoberta na relação com os outros. Foi assim?

Completamente. E é interessante notar como é que a música, pelo menos a minha, é um retrato fiel da pessoa que eu era em determinada altura. Quando ouço um disco meu consigo rever o meu mindset da altura. Por isso, sim, este é um disco de uma emancipação que começou no Lovely Difficult. Acho que as pessoas, nessa fase, tinham uma imagem minha mais próxima da world music, até pela forma como eu me vestia e comunicava. Como diz o Miles Davis, é preciso muito tempo para descobrir quem somos. Mesmo na música são precisos vários discos… Sempre tive uma alma muito independente e muito rebelde. Sempre soube que tudo seria um processo. Eu tive um percurso de certa forma bem-sucedido desde o início porque tornei-me independente muito nova, o que deu um certo laissez-passer às decisões que fui tomando, em termos familiares, mas não só. No início, chegou a haver alguns choques, mas, com o tempo, as pessoas tranquilizam-se porque percebem que talvez eu saiba o que estou a fazer ou, caso isso não aconteça, que tenho estrutura para assumir as consequências.

 

Diria que tem uma personalidade difícil?

Sim, posso até ser difícil, mas aquilo que estou a tentar descrever não tem a ver com ter uma personalidade difícil, mas com ter em mim, com acreditar. Talvez por vir de uma cultura forte, mas de um país algo protecionista e pequeno, em que toda a gente se conhece e tem algo a dizer sobre o outro, sou ferozmente apegada à minha liberdade. É assim que me lembro de mim desde pequena. Se sentir que me querem limitar na minha liberdade, eu não sou capaz de reagir de uma forma ponderada e racional. Aliás, se sentir que me estão a querer condicionar, a minha reação natural é fazer o oposto do que me está a ser sugerido e isso ajudou-me muito em termos musicais. Ajudou-me a querer fazer escolhas diferentes do que já tinha sido feito. Havia sempre uma insatisfação muito grande da minha parte. E isso sempre interferiu na minha escolha de músicos e de produtores. Eu sentia que só valia a pena trabalhar com alguém que pudesse somar algo ao que já faço, ao que já vejo.

 

A mudança para Lisboa acontece numa altura em que a cena musical atravessa uma fase particularmente efervescente…

Sim, há uma questão de timings que tem algo de divino na minha vida. Quando olho para trás consigo identificar um encaixe, uma sequência perfeita que, na altura, não fui capaz de ver. Acho que quando estamos conectados, a nossa fé, seja ela uma coisa superior ou "apenas" quem somos, estas coisas acontecem (…). Sou a mesma pessoa de sempre, não fingia ser alguém diferente, mas era um ser que vivia com heranças, condicionantes e medos que faziam com que o que eu podia dar fosse algo diferente. Um disco é apenas um marco, uma espécie de relatório do que foi determinado período. A minha música na minha vida é muito isso: um retrato muito fiel do que eu sou. Eu olho para os meus primeiros discos [cinco, no total], percebo a pessoa que eu era, aquilo que se conservou e o que mudou. Mas não renego nada do que fiz.

 

É por isso que precisa de tempo até partir para um novo trabalho?

Sim porque há quilómetros para andar. E anda-se a .

 

Esse caminho é diferente para uma mulher?

Nós, mulheres, temos um parâmetro particular: o do tempo. Acredito que as coisas estejam lentamente a mudar, mas herdamos uma memória que nos diz que envelhecer não vai ser muito bom para nós. Para uma mulher, uma mudança de vida numa idade mais avançada já é algo arriscado e portanto a mulher lida com questões comuns às dos homens, mas com condicionantes diferentes. O tempo, a única coisa que não podemos controlar, é algo diferente para homens e mulheres. Como seres humanos, acabamos por nos debater com as mesmas questões, mas a sociedade faz com que a mulher passe por elas de outra forma. O contexto muda muito as coisas.

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Essa passagem do tempo acaba por ser uma questão importante para quem lida com a exposição. Como é essa relação com o palco?

Eu gosto do palco, mas estou a aprender a gostar mais do laboratório, daquela parte em que já não estou sozinha. Estou a atravessar um momento em que estou a criar música de uma forma diferente, com beat makers e com produtores, algo que é diferente do meu background acústico e estou a descobrir muita coisa. O challenge é algo que me excita e ando sempre à procura disso. Esse momento de estar em estúdio com três ou quatro músicos, geralmente mais novos que eu porque são de uma geração que começou a fazer música em computadores, resulta num diálogo interessante. É preciso ter algumas referências [para travar esse diálogo], mesmo que não sejam as minhas. O laboratório é o local onde se encontra a tal alquimia entre elementos diferentes.

 

Como é que desenha essa rede?

Eu procuro esses contactos. Por exemplo, proponho-me a viajar oito dias para um país e, antes, faço um trabalho de pesquisa para saber quem são os produtores com quem me interessaria trabalhar e marco [um encontro] com eles. É o que tem acontecido no Gana, país para onde tenho viajado. Já lá tinha estado, há cinco anos, altura em que me deparei com o Afro Beatz, que é algo diferente do Afrobeat [nascido na Nigéria, tendo como figura mais proeminente o músico e ativista Fela Kuti, já falecido]. O Afro Beatz são as músicas dessa África contemporânea que encontraram uma raiz no Afrobeat, mas que já declinaram noutra coisa e, sobretudo, são eletrónicas. Vêm dos beats nascidos no computador, mesmo quando têm algum instrumento por cima. Percebi que havia um caminho por aqui, com essa nova geração de músicos africanos do meu continente. Este som é muito "casa" para mim e, ao mesmo tempo, é feito de uma forma muito diferente da música que eu faço. O disco Manga nasceu de um processo assim.

 

Daí ter escolhido cantar unicamente em português e em crioulo…

Sim. A minha editora, a Sony França, insistiu muito para que tivesse uma canção em francês, mas eu não quis. Eu sabia que tinha a ver com encontrar o som certo, não tinha a ver com a língua. No Afro Beatz é frequente não se perceber o que os artistas cantam ou porque cantam em broken english ou por outro motivo… Eu estava num momento muito lusófono e gravei quatro músicas em português… Foi a primeira vez que isso aconteceu.

 

É a madrinha da campanha Livres e Iguais das Nações Unidas, em Cabo Verde. Como surgiu esta parceria?

Comecei por ser madrinha, mas, entretanto, a relação prolongou-se e a designação mudou para embaixadora. Trata-se de uma campanha que existe em vários países [Cabo Verde foi o primeiro país africano] e que tem a ver com a sensibilização da sociedade civil para os direitos LGBTI. Na altura em que fui escolhida, cheguei a ser questionada se isso teria que ver com a minha própria sexualidade. Acho que é necessário pensar as coisas de outra forma, como no caso do racismo. Temos de perceber que é um problema de todos. Não tenho de ser parte da comunidade LGBTI para sofrer com uma injustiça. Se tenho uma imagem que me permite trabalhar nessa causa, tenho todo o gosto em dar a minha contribuição, por mínima que seja. Porventura os outros verão mais valor na minha intervenção do que eu própria… É também assim na música: acabamos por subestimar o impacto que a nossa música tem na vida das pessoas. Recebo imensas mensagens que o provam. Já conheci mais de trinta Mayras, assim nomeadas por minha causa porque a minha música fez um trabalho que me transcendeu e que é muito maior do que eu. É neste sentido que a arte pode ser divina, através da identificação, da possibilidade de o outro rever-se nas nossas palavras.

 

Como é que se lembra de si em criança?

Sempre me chamei artista. Diziam-me que tinha de participar no [programa televisivo] Chuva de Estrelas, em Lisboa, o que nunca aconteceu porque só cá vinha de férias. Quando tinha 10 anos, o Tó Tavares [um professor de música para crianças] foi pedir à minha mãe para me deixar gravar um disco, mas ela não deixou. Achei que era o fim da minha carreira [risos]. Foi preciso que algumas coisas acontecessem para que a minha família percebesse que não era um capricho...

 

Há sempre uma dose de solidão na vida de um artista?

Eu acho que a solidão está lá para todos. As pessoas vivem cada vez mais sozinhas. A minha infância foi muito diferente da do meu irmão que é oito anos mais novo que eu. E eu tive uma infância incrível, apesar de tudo o que nos faltava. É daí, desses seis primeiros anos, que vem a minha espinha dorsal. Mas acho que todos concordamos que as pessoas, hoje, vivem rodeadas de devices, mas muito sozinhas.

 

A música tem esse papel agregador, hoje ainda mais urgente?

A música sempre teve esse papel. Temos sempre a ideia de que o período que vivemos é o pior ou o mais negro e no caso da ecologia estamos, de facto, a viver uma época sem precedentes, mas penso que a música traz sempre aquilo que o ser humano precisa num determinado momento. E acredito que o ser humano é capaz de se unir e de fazer grandes coisas nas piores alturas.

 

Já falou de racismo. Atravessamos um momento sensível marcado por extremismos. Qual é a sua sensibilidade em relação a este tema?

Não acho que estejamos pior agora do que [estávamos] antes, só que a exposição agora é maior. Toda a gente pode partilhar um acontecimento em frações de segundo. Se eu colocar #racismo no Instagram, posso passar o dia a ver episódios racistas e vão ser apenas uma parte de um todo… Sabe aquele exemplo da avestruz que enfia a cabeça na areia? Portugal ainda é assim. Não é verdade que o racismo seja um exclusivo das pessoas que viveram a época colonial. (…) Eu não vivi a minha infância cá, pois cheguei já em adulta e como artista reconhecida, e sei que a minha posição é privilegiada. E por muito informada que esteja, a minha vivência será diferente da de alguém que viveu sempre cá. Não posso dizer que Portugal seja um país racista, mas sinto que um racismo silencioso, negacionista, como se fosse eu a ter de provar que há racismo… Quando eu própria já fui vítima dele, várias vezes.

 

Nasceu em Cuba, viveu no Senegal, em Angola, na Alemanha e em Cabo Verde antes de se radicar em Paris. Há uma multiplicidade de influências e de mundo na sua identidade. Onde é que fica o sentimento de pertença?

Em Cabo Verde. É casa para mim. O facto de eu viver fora fez-me ver o quão especial aquele sítio é. Por outro lado, também preciso de espaço. Vivi muito tempo em cidades grandes. Claramente, encontrei em Lisboa uma segunda casa.

 

Enquanto cabo-verdiana, o que sentiu ao ver as Batukadeiras de Cabo Verde a partilharem o palco com Madonna [na digressão Madame X]?

Não é por serem as batukadeiras, nem por eu ser de Santiago, mas para mim aquele é o momento forte do espetáculo. Há ali uma coisa feminina de ancestralidade. Senti um orgulho a rebentar dentro de mim porque sou de Santiago, do lugar de onde elas são. O batuque é o traço mais característico da ilha de Santiago, onde chegaram os primeiros homens e mulheres escravizados. É a ilha mais africana de Cabo Verde. Quando eu era criança, íamos todos os fins de semana para as montanhas, no interior da ilha, onde ficava a casa do meu bisavô, e as batukadeiras estavam lá, no pátio, a tocar. Havia mantas, porque fazia frio nas montanhas, grogue, milho assado e batuque. É parte da minha infância, de quem eu sou.

 

Como definiria a mulher cabo-verdiana?

Acima de tudo, é uma mulher de muita força. As famílias assentam nas mulheres, até porque sendo um país de emigrantes, os homens partiam e eram elas quem ficava. Apesar de ser uma sociedade machista, a verdade é que a força da mulher é tão grande e tão evidente que nenhum homem finge o contrário. Há uma grande parte da economia do país que se suporta nas costas destas mulheres. Mas para elas a sobrevivência é uma questão diária: o que pôr na mesa para o almoço, como garantir a educação dos filhos… Por isso, eu fico muito "babada" quando me falam bem de Cabo Verde. Praias bonitas há em muitos sítios, mas ali existe uma mistura interessante, uma abertura e um saber acolher. E a ligação à realidade que nunca se perde.

Foto: Ricardo Lamego
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