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Lena D'Água, a bela acordada

'Desalmadamente', o álbum, é o regresso de quem nunca se foi embora, saudado como renascimento de quem nunca morreu. De regresso aos grandes palcos, Lena d’Água, a nossa grande estrela pop, ídolo dos anos 80, está aí, melhor do que nunca. Que Grande Festa!

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25 de julho de 2019 às 07:00 Manuela Gonzaga

Letra por letra, música por música, ouve-se e não se consegue parar de ouvir o mais recente disco de Lena d’Água, Desalmadamente, que, mal surge, entra para as listas dos mais vendidos. Há palmas por todo o lado, concertos esgotados, pedidos para espetáculos, entrevistas em todos os meios de comunicação. Acolhem-na, nos jornais, nas revistas, na rádio e na televisão, com um enorme carinho. Os ‘parabéns’ sinceros, sentidos, chegam de todo o lado, "está a ser mesmo incrível" e nas redes sociais chovem em avalanche as mensagens dos fãs, homens e mulheres de todas as idades, que nunca a esqueceram e de uma multidão de jovens que ainda se recorda de a ouvir ao colo dos pais, e de outros e outras que nem sequer eram nascidos quando a cortina correu sobre o grande palco.

A Grande Festa, título do concerto que assinala o regresso aos grandes palcos e o encontro com o grande público, agora, perante um público maioritariamente jovem, está a ser um marco. Fala-se de ‘renascimento’ e de ‘regresso’, mas ela descarta tudo isto pela razão óbvia diz de que, em primeiro lugar, nunca se sentiu morta e, em segundo lugar, nunca se foi embora. Nem gosta, sequer, que se lhe fale de uma ‘travessia no deserto’. "Oh, pá! Não digas isso porque não foi assim. Fiz sempre tanta coisa…’’ Houve, isso sim, uma descida aos infernos. Nove anos de um sofrimento indizível que começou com "uma experiência". Mas isso está lá atrás. Há quase 20 anos. Depois e mesmo antes, houve tanta coisa. Sem esquecer o Sempre, gravado no Hot Club em 2007, que não conheceu estes holofotes, mas é e continua a ser um marco na sua carreira: "Fui eu que fiz tudo e inventei este disco. E não foi para ‘resgatar’ coisa nenhuma. Nem ninguém me foi buscar e levar ao colinho para o ir gravar. Não tenho escolha. Estou sozinha há 20 anos, sem apoio." 

Mas houve outros grandes momentos. Por exemplo, em 2010, um grupo de jovens foi ao seu encontro e realizou Bela Adormecida, belíssimo documentário no âmbito da licenciatura em Cinema, Vídeo e Comunicação Multimédia da Universidade Lusófona. O trabalho "pretendia ser uma visita ao passado e presente daquela que foi considerada uma das maiores artistas do rock português". O resultado transformou-se na "descoberta de um ser complexo e solitário. Bela Adormecida é uma odisseia deliciosa da vida de Lena d’Água". Os músicos com quem está agora são também muito jovens: "Estes arranjos da música do Pedro foram feitos por um grupo de músicos na casa dos 30 anos. Aliás, um dos elementos da banda ainda está nos 20. Mas não sentimos nenhuma distância por causa da idade." Onde ficaram os outros, a tribo? Telefonemas, mensagens de parabéns? Nada. Com exceções luminosas. Mulheres, todas elas. "A Geninha [Melo e Castro] escreveu-me uma mensagem linda de morrer. Adorável. A Ana Bacalhau e a Né Ladeiras, a Ana Deus, a Maria João e a Márcia mandaram-me mensagens escritas e de voz. Devo ao Facebook o ter-me aproximado destas vozes e destas mulheres. Foi o elo da minha ligação com o mundo. Estou muito grata." Acrescenta: "Mas, no geral, a malta da minha idade está distraída. Para ela eu estava acabada, ponto final. Mas os novos não. Estão muito atentos. Foram eles que me foram buscar." Ri com gosto. Que desalmada surpresa, este Desalmadamente

Curioso. É que não é só da marginalização de Lena d’Água que falamos. Muitos outros também andaram por lá, pela doença, pelo álcool e pela droga e nunca lhes faltou a mão estendida e a corda da subsistência. E, por falar nisso, por onde andam os grandes nomes femininos da década de 80? Essas vozes e talentos estão tão silenciosos no feudo musical, em contraponto à proteção que acompanha e acompanhou sempre outros ícones masculinos. Mesmo os que atravessaram altos e baixos na vida sem ‘desaparecerem’? Lena d’Água ri, uma gargalhada espontânea e cristalina: "E olha que nunca deixaram de os convidar, mesmo quando tiveram problemas em palco, e fizeram grandes cenas diante do público! Eu nunca fiz figuras daquelas. Mas a eles, lá está, nunca lhes tiraram a rede de segurança." Oh, sim, é muito fácil dizer-se, ela andou na droga e que saiu dela! –, mas que, entretanto, até teve de vender o apartamento e mudar-se para uma casa de aldeia, onde, à entrada, está um piano onde se podem ver os troféus do pai, José Águas, o inesquecível capitão do Benfica. O homem que mais amou na sua vida de grandes amores. A casa, onde os vizinhos batem à porta para lhe virem oferecer uma curgete, umas cenouras, tudo "daqui, sem venenos", é um espaço delicioso que partilha com os seus amigos de quatro patas. Resgatados, todos. Gatos, quase todos. Ir para lá devolveu-a à vida. Não é assim tão longe, a 40 quilómetros de Lisboa. Mas permitiu-lhe pôr literalmente os pés no chão e reconstruir-se. Ali sente-se o peso tão suave e tão presente das memórias. Nas paredes há fotos de família e que bonitos eram os seus pais. As gavetas, em primorosa arrumação e catalogação, guardam textos, cartas, recortes de jornais que contam a vida dela e a do pai, uma estrela nos relvados. E que remetem para a infância absolutamente feliz, num tempo e num espaço, o Bairro de Santa Cruz de Benfica, em que as crianças brincavam na rua, os pais amavam-se muito e a fama não lhes beliscava os egos. "Tive muita sorte com eles (os meus pais). Escolhi-os muito bem."

Foto: Ricardo Lamego
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Confronto-a com uma história contada por alguém que foi testemunha privilegiada de um facto que (também) marcou a sua vida. O concerto na Festa do Avante, em 5 de setembro de 1981: "Lembro-me como se fosse hoje. Ela saiu do palco sob uma chuva de palmas e de gritos, um coisa linda de se ver. Passou por mim radiosa, cheia de luz, e eu pensei: ‘Ela está tão feliz e merece.’ Depois, os outros músicos, Zé da Ponte, Guilherme Inês e Zé Carrapa, que saíram do palco e estavam ali perto, começaram a dizer: ‘Isto tem de acabar. Não precisamos das pernas da Lena para nada. Somos músicos sérios." Eles, os Salada de Frutas, que, juntamente com Luís Pedro Fonseca, Lena d’Água fundara. Pouco tempo depois, a ‘testemunha’, já afastada dali, vê a cantora passar, lavada em lágrimas. Foi assim? Lena confirma: "Tal e qual. Mandaram o Carrapa dar a novidade ao Pedro: ‘A partir de hoje prescindimos dos serviços da cantora.’ E ele respondeu: ‘Ah, sim? Então também saio.’ Já não me lembro se chorei, mas foi um grande choque, embora anunciado." O que aconteceu? "Nada de especial. Não gostavam da forma como eu interagia com o público. A espontaneidade era classificada como ‘falta de profissionalismo’. E outras coisas assim. Portanto, nós fomos fazer a Banda Atlântida e eles os três ficaram com os Salada de Frutas que nós fizemos e eu até cantei o Vígaro Cá, Vígaro Lá por causa disso. Não lhes durou nada, os Salada..."

Ela sim, que conheceu o êxito. Anos de canções que ainda marcam, bem como a presença deslumbrante a que nos habituou em palco, em todos os palcos, sem esquecer a televisão. Depois, a separação. E o fim da Banda Atlântida. E uma enorme solidão povoada de amores e de canções. Foi musa de um grande escritor português que se inspirou nela para a sua Noiva Judia, o Pedro Paixão. Mas gémeos ascendente escorpião – não esquecer!?, Lena d’Água rapidamente se ia embora, mal começavam os desacertos, os desencontros e outros desaires. E um dia, com um namorado por quem se apaixonou fulminantemente (como sempre) e que à sua frente, pedindo-lhe para "não ter medo", enrolou e fumou ‘uma chinesa’, e que mais tarde lhe disse "experimenta tu também, vais ver que é bom", caiu nas malhas do horror. Portanto, ela esteve lá… na heroína. Sozinha, já sem mãe, pai, marido ou companheiro, saiu desse inferno. Mas cantou sempre. E moveu-se. Até entrou num Big Brother dos Famosos ("Eu tinha deixado o pó, há quatro anos, e precisava de dinheiro para pagar as contas! Não tinha ninguém ao meu lado e continuo sozinha, há 20 anos.") A sua prestação foi digníssima. Não conseguiu esconder a repugnância perante a forma como o resto dos participantes se alimentavam: "Tanta carne. Tanta pata de bicho, tanta gorduraça." Ela, vegetariana há tanto tempo. Mais uma vez, fora do baralho.

A verdade é que nunca foi convidada para os espetáculos marcantes, como os tributos ao Zeca Afonso, aos Xutos & Pontapés, ao 25 de Abril. Nem para júri de programas de música onde se escolhem talentos… Até agora. O facto é que êxito de Desalmadamente "absolutamente extraordinário", e que "está a ser incrível", palavras suas, não a colhe de surpresa, mas enche-a de uma justa alegria. Ela sabia que havia "muitas pessoas com saudades de me ouvir cantar". E depois, ao longo destes anos que medeiam entre o último álbum gravado e este, nunca parou. Deu concertos. "Cantei Elis Regina, ao vivo, acho que só há registos ao vivo no Hot Clube e foi lindo. Billie Holiday, o que há é só de áudio [caseiro]. Mas foram espetáculos tão bons!" Escreveu a biografia do pai José Águas, o meu pai herói, da Oficina do Livro , fez experiências com jazz e rock, fez trabalhos para e com crianças, e até teatro. "Tantas coisas! Só não gravei originais desde 1989. Mas gravei discos, o penúltimo em 2007 e o último em 2014. Portanto, não me fui embora, nem me afastei. O que me faltava eram as músicas e letras originais para eu cantar."

Faltou-lhe o Luís Pedro Fonseca que, nos anos 80, compôs todas as canções que foram os seus grandes êxitos, gravados na Banda Atlântida. Faltava-lhe o Pedro [da Silva Martins] que nasceu e cresceu no Bairro de Santa Cruz, onde ela também morava, na casa dos pais, exatamente no mesmo ano em que nasceu Sara Águas, a filha da cantora, e que se lembra de ver a Lena d’Água nas ruas quando ela era a nossa diva do rock, a nossa estrela pop, sempre na sua desarmante simplicidade. O Pedro que assistiu depois à marginalização da artista enquanto crescia e se tornava, ele próprio, um caso sério na música portuguesa. Os anos passaram e reencontraram-se nas redes sociais. "Ele acompanhava os meus desabafos." Trocavam mensagens.

Uma noite, "Dia das Bruxas, 31 de outubro" vinha ela para casa quando da escuridão da estrada dois polícias, escondidos depois de uma curva mal iluminada, lhe saltaram ao caminho. Documentos! Ela tinha todos e tudo em ordem. Mas a carta, crime dos crimes, acabara de fazer 60 anos, e não a tinha renovado. Com inusitada dureza, intimaram-na a deixar o carro e ir a pé para casa. Dois quilómetros, noite cerrada, numa estrada sem ninguém. É claro que voltou de carro para casa. Os polícias, entretanto, tinham-se ido embora. Nessa mesma noite publicou no Facebook um post revoltadíssimo. Perguntou se precisaria de vender o colchão e as botas (ri-se a recordar esses momento). Sentia mais do que solidão. Sentia revolta. Estava sem dinheiro, mais uma vez. "Sentia que Portugal não me estava a tratar bem e que aqueles GNR tinham sido muitíssimo agressivos, tratando-me como se eu fosse uma criminosa do pior." O desabafo extrapolou e tornou-se uma escandaleira nacional. As revistas escreveram que ela estava na miséria, mas quando Lena d’Água tentou explicar o contexto, as parangonas das publicações do "coração"  "Faca e alguidar, qual cor-de-rosa!, qual coração!" explodiram em frases do género "Ela tem vergonha!". Mas o facto é que já havia "muita coisa a acontecer". "Eu estava rodeada de gente muito talentosa, quase todos com 30 anos, e estávamos a trabalhar juntos neste projeto." Hoje dá vontade de rir, mas, naquela altura, Lena d’Água tinha de explodir por qualquer lado.

Vai para uns seis anos, o Pedro da Silva Martins disse-lhe: "Um dia vou escrever para ti." E escreveu. Processo laborioso, demorado, até porque ele é "tão solicitado" e nem sempre os horários e as agendas se conjugavam. Mas conhece-a tão bem que lhe apanhou os fios da vida e construiu uma mão-cheia de letras que contam a história dela, captando a sua essência e a magia. Por fim, começaram as gravações e surgiu um álbum à sua medida. As letras, os arranjos, as misturas, os músicos que participam, tudo é bom e o resultado é uma biografia musical com recados, piscar de olhos, transcendências, alegria, um toque de melancolia e o sentido de humor que explode nas suas gargalhadas inconfundíveis, e que emerge, aqui e além, na simplicidade de apontamentos quotidianos. E para tornar tudo ainda mais fácil ao êxito, a voz dela está maravilhosamente igual. Mais sábia e densa no timbre cristalino e puríssimo de sempre. Inteira a dar-se em todas as letras que retratam tão intimamente a pessoa que ela é, do modo que é, como se a música, esplêndida, lhe saísse pelos poros enquanto ela canta: "Desalmadamente deixo-me levar/ deixo-me ir na boa/ […] o corpo lá responde ao pensamento, ó ai/ que julga ainda ter só 20 anos, ui/ e às vezes vai/ tropegamente/ ganha ligeireza e assim flui."

Mas mesmo quando todas as premissas são fiáveis, a equação do êxito é sempre a grande incógnita. Tê-la-á surpreendido? Lena d’Água nem hesita: "Não posso dizer que foi uma surpresa. Eu sabia o valor do nosso trabalho. Eu sei o valor do Pedro [da Silva Martins, guitarrista e compositor dos Deolinda], não sou só eu, e do potencial incrível deste projeto." Faz uma pausa e acrescenta: "E eu merecia! Fiz tantas coisas boas. Não há nada do que eu fiz e cantei ao vivo, nada de que não me orgulhe e que não sinta uma enorme satisfação. Mesmo o que não consegui gravar." Mas tinha de chegar uma altura em que as barreiras iam cair. Tinha de chegar a Grande Festa: "Inda vou ganhar o Festival/ com uma canção de macramé/ hei de fazer capa num jornal/ a pavonear um jacaré./ Espero que te caia a boca ao chão/ q’eu estou pronta para a grande festa/ E tu de charuto e roupão/ Com um arpão espetado na testa." Não se consegue deixar de ouvir.

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