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No fado e na vida

Ela é a primeira mulher portuguesa que toca guitarra a acompanhar fado. Ele é fadista e canta ao som das suas notas. Unidos na música e no casamento.

No fado e na vida
No fado e na vida
07 de novembro de 2012 às 07:47 Máxima

Ela intervalou os alunos de piano e ele esqueceu o almoço, para a conversa marcada. Trazem o capacete na mão e o brilho nos olhos, o entusiasmo é o tom, do começo ao fim. Cumprem o tempo e desafiaram o trânsito da cidade, na urgência de chegar. As suas falas escorrem e completam-se, sem tropeços. Em fase de muita arte, esforço e expectativa, a singular história de Marta Pereira da Costa e Rodrigo Costa Félix começa num encontro feliz de amor e casamento, na vida e no fado. Constança e Vicente, os filhos gémeos de três anos, são testemunhas primeiras. 

Que originalidade é a vossa?

Marta – Ser a única mulher portuguesa que toca guitarra portuguesa a acompanhar fado. E casada com um homem que canta.

Rodrigo – No meio do fado, é ter duas profissões full time. Cantar e ser editor de som há 12 anos.

Como começaram?

M – O meu pai puxou-me para a guitarra portuguesa. Aos 18 anos tive aulas com o Carlos Gonçalves, guitarrista da Amália. Comecei aos quatro anos a tocar piano na Fundação Musical dos Amigos da Criança. Aos oito, fui para viola e depois para guitarra clássica, portuguesa, sem perder o piano. Tocava cinco seis horas por dia. Formei-me em Engenharia Civil no Instituto Superior Técnico. Tive média de 18 no liceu e de 15 no Técnico. Mas eu queria música!

Como começaram?

R – A Marta tinha outra profissão e em pouco tempo transforma-se em guitarrista profissional.

M – Trabalhei quatro anos no LNEC, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, e dava aulas de piano em casa. Este ano deixei o LNEC e continuo a dar aulas de piano. E mesmo assim o meu dia está preenchido: ensaio, muito trabalho de casa, muitos fados, muitas guitarradas.

R – Aos 18 anos comecei a frequentar casas de fado. Cantei uma vez no Nove e Tal, que era do Nuno e do Gonçalo da Câmara Pereira, numa festa da minha mãe, e as pessoas gostaram muito. Aconteceu por influência de amigos, sobretudo do Carlos Guedes de Amorim, uma referência minha, que era o fadista preferido da minha mãe. A partir daí, ia e cantava sempre, comecei a ler poesia, a escrever também. Pelo convívio com os músicos e os fadistas, fui aprendendo o fado e as estórias do fado. Eu já tinha sido jovem agricultor, estava no 3.º ano de Comunicação Social na Católica. Interrompi o curso, e em 1997, aos 25 anos, fui estudar Engenharia de Som em Londres.

http://videos.sapo.pt/MWiLizjZeDoghHbdmA99

M – Eu não sabia acompanhar um fado sozinha. Não há partituras, mas aprendemos de uma forma auditiva e visual. A mesma nota pode tocar-se com diferentes dedos ou cordas. Experimentamos, tentamos, acompanhar fado é um pouco como cantar. Mas só o repertório de Coimbra está escrito e algumas coisas do Carlos Paredes. Os guitarristas não tinham formação musical, o acompanhamento de fado era uma arte popular. Sabemos a música, há uma melodia, mas não temos nada escrito. É um pouco como o jazz.

R – É diferente cantar com um guitarrista ou com outro. Há uma adaptação constante entre a voz e a guitarra.

M – Os guitarristas têm de ouvir Carlos Paredes, Armandinho, José Nunes. Ainda tive a sorte de conhecer o Fontes Rocha no Clube do Fado. Ele tocava lá aos domingos e substituía o Mário Pacheco. No início não tinha noção do guitarrista que ele era, sempre foi disponível para mim, ensinava-me, tocava comigo. Via-se que se divertia a tocar, eu ia ter com ele e perdíamos a noção das horas. O Fontes fazia festa com a guitarra. O neto, Ricardo Rocha, é genial.

R – A sensibilidade foi o maior ensinamento do Fontes, para quem toca e também para quem canta.

Que experiências vividas tiveram?

R – Apesar de na fase de crescimento eu ter convivido pouco com o meu pai, que tocava viola e cantava, várias vezes cantámos juntos. Na família Costa Félix há mais um lado artístico: são todos esotéricos, místicos. O meu primo direito, António Vasco Morais, também canta fado. Somos uma família muito grande, convivemos muito, somos muito unidos. Talvez por isso eu use o nome Costa Félix, o meu pai também usava o nome da mãe, para toda a gente ele era o Tó Sallatty e não o António Aires Mateus. O meu pai chegou a ter uma casa de fado com o José Pracana, em Cascais, o Arreda. Iam lá muito a Amália, o [Alfredo] Marceneiro, a minha mãe conhece toda a gente do fado. Eu ouvia os discos do António Melo Correia, do Marceneiro, ouvia o João Braga, o Carlos Zel.

M – A minha família é pequena. Pais, quatro tios, uma irmã que está em São Paulo. Eu fazia muito desporto. Joguei futebol de salão na equipa do Técnico, joguei andebol e fiz equitação. Às sextas-feiras à noite, organizávamos festas com os amigos na garagem, com karaoke e matraquilhos. Nunca até muito tarde, porque ao sábado às dez horas da manhã tinha aulas de piano e formação musical.

Apaixonaram-se por causa do fado?

R – Conhecemo-nos no Clube do Fado. 

M – Eu comecei a ter lá aulas de guitarra com o Mário Pacheco, encontrava o Rodrigo às sextas-feiras. Tinha 18 anos. Aos 20 comecei a namorar. Um ano depois casámos.

R – Eu tenho 40 anos, a Marta, 30.

FADOS DE AMOR

É o título do último álbum de Rodrigo Costa Félix que pelas suas próprias palavras é “dedicado à mulher”. Inclui temas originais, revisitações de fados conhecidos e duetos com Katia Guerreiro e Aline Frazão.

E que vida é a vossa, a profissão e os filhos pequenos?

M – Muitas vezes o Rodrigo sai aos fins de semana com os miúdos e eu tenho de ficar a treinar em casa.

R – Os pais dão-nos apoio. E temos uma empregada, que dorme três noites por semana.

M – Eles sentem a nossa falta.

R – Nos fins de semana estamos quase sempre a trabalhar.

M – Eu vou levá-los de manhã à escola e lá arranjo maneira de os ir buscar. Dou aulas de piano em casa, quando tenho a porta fechada, eles sabem: “A mãe está a dar aulas.” Às vezes assistem aos ensaios sentadinhos, batem palmas. São muito musicais, é muito gira a relação que têm com a música. Ainda não tinham três anos e já cantavam o Hino Nacional com a letra toda. Veem a bandeira na rua e começam logo a cantar.

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E o tempo para namorar?

R – Não temos tempo para descontrair, ir ao cinema, beber um copo ao pé do rio.

M – De vez em quando, se temos uma noite mais liberta, vamos jantar fora. Eu gosto muito de cozinhar, cozinhamos os dois. Podemos ir ao supermercado comprar coisas boas para cozinhar um para o outro, numa noite especial.

R – Fazemos tudo em casa, os dois tratamos dos miúdos.

M – De vez em quando, temos uma noite mais liberta, vamos jantar fora. Mas mesmo assim, estamos sempre a planear os dias seguintes.

“Sempre fui maria-rapaz, acho que não há coisas só para homens ou só para mulheres.”

E tem havido muito a planear. No 10 de junho, a Marta tocou na Eslováquia…

M – Quem me acompanha é o Pedro Pinhal na viola de fado e o Rodrigo Serrão no contrabaixo, há muito tempo que toco com ele.

… dias depois, teve o seu primeiro concerto no Largo do Chafariz de Dentro.

M – Foi o concerto de maior importância na minha vida.

… dias depois, teve o seu primeiro concerto no Largo do Chafariz de Dentro.

… e logo a seguir, os dois em Madrid. Em julho, a apresentação do disco do Rodrigo, no CCB.

R – Esta fase é importante, vale o esforço, o cansaço. O professor de canto, Rui Baeta, disse-me que o melhor para a minha voz é descansar.

… e logo a seguir, os dois em Madrid. Em julho, a apresentação do disco do Rodrigo, no CCB.

M – Vamos ver como as coisas correm.

Em 2008, o Rodrigo gravou o seu primeiro CD, Fados d’Alma. Agora, Fados d’Amor. Que fados, que amor?

R – Este disco é uma homenagem à Mulher. Tem a ver com as mulheres da minha vida, essa é a ideia central. Tive uma professora de português excecional no Liceu Camões, ensinou-me a ler e a gostar de poesia. O meu poeta preferido é Fernando Pessoa, no primeiro disco canto dois poemas dele, e neste um poema que descobri por acaso e é extraordinário: Amigo Aprendiz, com a música do Tiago Bettencourt.

Há discriminação das mulheres no fado?

M – Sempre fui maria-rapaz, acho que não há coisas só para homens ou só para mulheres. Na guitarra de fado, é por tradição que não há mulheres.

Há discriminação das mulheres no fado?

Há uma diferença de estilo?

M – Talvez uma mulher tenha uma maneira de tocar menos agressiva do que um homem.

R – A guitarra é um instrumento violento, agressivo. As cordas são muito finas e esticadas. A Marta tem dores nos tendões.

M – Os homens também têm tendinites.

R – Não são todas as mulheres que querem ter calos nas pontas dos dedos, que querem ter as unhas cortadas rentes numa mão e na outra, ter as unhas compridas.

M – Acredito que as mulheres têm muita força e alcançam objetivos, quando querem lá chegar. Tem-me acontecido na guitarra portuguesa. Quero muito mostrar que sou capaz.

R – A Marta é totalmente responsável, deve haver pouca gente assim.

A crise, como a sentem?

M – Com preocupação.

R – Eu, com esperança. Todas as crises são oportunidades, eu tenho trabalho estável e na vertente artística não nos tem faltado trabalho.

M – À nossa volta as coisas estão complicadas. Temos amigos sem trabalho e muitos a ir para fora.

R – Nesta altura, muita gente tem tendência para reagir em desespero.

M – Mas há situações de desespero.

R – E há as pessoas que se queixam e que aproveitam para explorar as outras, para subir os preços, para atrasar os pagamentos.

Há um ano festejámos o Fado Património Imaterial da Humanidade. O que muda?

R – A UNESCO veio dar mais atenção e reconhecimento ao fado. Nem toda a gente gosta de fado, com este prémio, as pessoas vão ficar mais despertas para o fado, vão gostar. Mas a grande mudança é a distinção, o respeito. Que é quase uma revolução. Percebi o estigma que era há uns anos dizer-se que se andava no fado. Em certos meios, ninguém queria que um filho seguisse a carreira do fado.

O Rodrigo viveu cinco anos em São Paulo, o que ficou do Brasil?

R – Ficou-me a alegria de viver, a descontração, a maneira de encarar a vida, de aproveitar os dias. Se eu tivesse um lema, seria Aproveitar o Momento.

No Fado e na Vida
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Marta: Vestido comprido em seda Gucci, sapatos em pele revestidos a purpurinas Jimmy Choo. Brincos em ouro branco e brilhantes H. Stern e anel em ouro branco e quartzo fumado David Rosas.
2 de 4 / Marta: Vestido comprido em seda Gucci, sapatos em pele revestidos a purpurinas Jimmy Choo. Brincos em ouro branco e brilhantes H. Stern e anel em ouro branco e quartzo fumado David Rosas.
Marta: Vestido em seda Hoss Intropia, sandálias em camurça Sergio Rossi. Brincos e anel em ouro, brilhantes e quartzo fumado, ambos David Rosas.
3 de 4 / Marta: Vestido em seda Hoss Intropia, sandálias em camurça Sergio Rossi. Brincos e anel em ouro, brilhantes e quartzo fumado, ambos David Rosas.
O mais recente álbum de Rodrigo Costa Félix
4 de 4 / O mais recente álbum de Rodrigo Costa Félix
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