Administradora e Pós Graduada em Gerenciamento de Projetos (Boston University), Carla Ferreira vive na Arábia Saudita e escreve regularmente no seu blogue CariocaTravelando.com. Falou-nos de como é viver no maior país árabe na Ásia.
- Acha que o facto de as mulheres sauditas poderem ser eleitas e participarem pela primeira vez num acto eleitoral transformará a sua condição de mulheres do ponto de vista dos direitos? O que se ouve aí no dia a dia concreto da vida das mulheres?
CF: Acredito que estamos vivendo um momento histórico para a Arábia Saudita. De certa forma já existe uma presença feminina no cenário "político" do pais. O Shura Council é um exemplo, onde desde 2013, 30 mulheres foram indicadas para participar desse conselho pelo então rei. A princípio, creio que as mudanças serão consideradas pequenas pelo ponto de vista do restante do mundo, mas essas pequeninas mudanças, são sem dúvidas, o ponta pé inicial para possíveis grandes conquistas para as mulheres na Arábia Saudita. No dia a dia, posso citar que por exemplo, a abertura das contas de banco para as mulheres – o que era impossível há alguns anos atrás.
- Como imagina, aqui na Europa, vemos com bastante perplexidade a condição das mulheres sauditas. Mas, como é o seu dia a dia? Sente que elas desejam mais liberdade? Querem mudanças? Vivem infelizes? Têm consciência da sua condição? Ou, a sua circunstância é apreendida por elas, de modo muito diferente da leitura do mundo «ocidental»?
CF: Eu vivo com a minha família em um condomínio para expatriados. Aqui moram Europeus, Australianos, Americanos, Brasileiros e alguns Portugueses. Tem gente de todo o mundo. Costumo dizer que aqui dentro vivemos numa espécie de "bolha", é como se estivéssemos fora da Arábia Saudita. É preciso sair dos condomínios para, por exemplo, ir à médicos, restaurantes, grandes supermercados e encontrar os amigos que, muitas vezes, também vivem em outros condomínios. Dentro desses condomínios, conhecidos por aqui como "compounds", as mulheres podem por exemplo, usar biquíni na piscina, podem dirigir (se o condomínio for grande o suficiente para isso), e não precisam usar a obrigatória abaya (aquele vestidão preto que cobre completamente os braços e as pernas).
CF: Acredito que no país existam os dois lados: as mulheres mais progressivas, que gostaria de ter mais liberdade, influenciadas pelo acesso ao mundo externo. Igualmente existem as mulheres que são mais tradicionais, satisfeitas em viver exatamente do jeito que vivem. As segundas, geralmente tiveram pouquíssimo contato com outras culturas e são bastante religiosas. Dessa forma, elas acreditam que a maneira em que elas vivem hoje, dependente em sua grande maioria, de uma figura masculina para viver, é a forma ideal que todas as mulheres deveriam seguir. Afinal, muitas não tem acesso a outras referências ou são influenciadas a ignorar qualquer influencia externa.
- Tenho lido que o rei apesar de tudo já deu alguns passos positivos para a dignificação das mulheres sauditas, percebo que está muito, muito, aquém do desejável, mas, o problema não é mesmo do poder que o Islão Salafita, Wahabismo tem na organização do Estado?
CF: Eu penso que a Arábia Saudita é um país muito novo, e ainda polarizado, se comparado à grandes nações da Europa e Estados Unidos, por exemplo, onde os existe uma maior igualdade de direitos. Mas precisamos levar em consideração, que esses grandes países, passaram por processos de mudança e evolução ao longo dos anos, algo que sem dúvidas vai acontecer inevitavelmente na Arábia Saudita. Com certeza já houve um grande avanço com relação aos diretos das mulheres. Por exemplo, a poucos anos as mulheres não eram vistas ocupando postos de trabalho em locais públicos, e hoje elas estão representadas nos mais diferentes setores no mercado de trabalho saudita. Hoje muitas são médicas, engenheiras, vendedoras, professoras e por aí vai. Eu fico na torcida para que as mulheres conquistem todos os seus direitos, e espero ter a oportunidade de ver isso ainda na minha geração.
- É verdade que o Reino vai fundar cidades só para mulheres? Ouviu falar alguma coisa?
CF: Ainda não ouvi falar sobre uma cidade exclusiva para mulheres. Mas vejo diariamente a segregação entre homens e mulheres. Por exemplo, existem áreas de espera em locais públicos segregadas. Se você vai comer em um fast food, por exemplo, existe uma sinalização para a fila de espera, separada tanto para homens como para mulheres. Na capital Riade, existe a maior universidade do mundo construída apenas para as mulheres. É um campus gigantesco, como uma cidade, onde as mulheres se formam nas mais diferentes cadeiras.
- Dentro de casa, como é a vida das mulheres? Eu acho que há dois mundos, o publico e o privado, e que na vida privada as mulheres sauditas têm muito poder na organização da família, ou pelo menos deviam ter do ponto de vista simbólico? A minha ideia, talvez errada, é que as mulheres na vida privada têm a sua representação simbólica relativamente aos homens...?
CF: Pelo o que tenho tido a oportunidade de ver, dentro de casa as mulheres sauditas são simplesmente como a maioria das mulheres do mundo. Cuidam dos filhos, administram a casa, os afazeres domésticos, recebem a família e os amigas. As que são autorizadas a estudar e trabalhar fazem dupla jornada, como muitas de nós. Dentro de casa muitas não precisam se cobrir. A maioria veste a roupa tradicional (o niqab e a abaya), apenas quando precisam sair de casa. Algumas ainda usam luvas e cobrem o rosto e os olhos completamente (usando apenas um tecido preto fino que possibilita a visão). Nos lares sauditas que tive a oportunidade de visitar, vi que existem alguns cômodos duplicados, como por exemplo, salas de estar, que muitas vezes são dividas para homens e para mulheres. Mas isso depende de quão tradicional é a família, pois conheci também famílias sauditas que não fazem essa segregação dentro de casa.
Por Ana Paula Lemos*Leia o artigo na Máxima de Janeiro [328], nas bancas.