Seguidor meu, há alguém mais belo do que eu?

“Nem penses em publicar essa fotografia! Já viste como é que eu estou? Ninguém me pode ver assim!” Reconhece isto? É provável que sim. O uso descontrolado das redes sociais transformou o simples upload de uma fotografia num pecado capital ? o filtro errado pode ser fatal. A nossa noção de beleza já era. Depois da invenção da selfie, nunca mais nos olhámos ao espelho da mesma maneira.

18 de maio de 2018 às 18:00 Maria Wallis

Essena O’Neill tinha quase um milhão de seguidores no Instagram quando resolveu editar as legendas de algumas das suas fotografias e explicar a verdadeira história por detrás de cada uma delas. "Sem perceber, passei a maior parte da minha adolescência viciada nas redes sociais, na aprovação social, no status social, na minha aparência física. As redes sociais, principalmente como eu as usei, não são reais. São imagens artificiais e clipes editados, uns a seguir aos outros. É um sistema baseado na aprovação social, nos likes, onde a autoafirmação equivale a views e o sucesso a seguidores", escreveu no momento em que confessou ter apagado mais de duas mil imagens daquela rede social e que pensava abandoná-la, o que acabou por acontecer. Foi no final de 2015. Na altura, o público dividiu-se entre os que aplaudiram a decisão como "atitude corajosa" e os que a rotularam de "manobra de diversão" para alimentar o ego. Nunca saberemos a verdadeira razão que levou O’Neill, então com 18 anos, a desistir da carreira como influencer que lhe dava milhares de euros por ano. Mas a verdade é que ela foi uma das primeiras a "bater com a porta" deste mundo cor-de-rosa e a quebrar as regras que sustentam o glamour e a perfeição dos seus intervenientes. As vidas idílicas que partilham, diariamente, mais não são do que a edição ultracuidada de uma história que escolheram contar (ou vender). A prova está nas "legendas reais" que colocou nas fotografias, ainda antes de apagar a sua conta, e que ainda existem no Google Images, graças a dezenas de capturas de ecrã de seguidores. Relativamente a uma imagem em que está de biquíni, na praia, explica: "Não é a vida real. Tirei mais de cem [fotografias] em poses semelhantes tentando fazer com que o meu estômago ficasse bem. Mal tinha comido naquele dia. Tinha gritado com a minha irmã mais nova para continuar a tirar [fotografias], até que estivesse minimamente satisfeita." Quando mostra os abdominais em frente ao espelho, sublinha: "A única coisa que me fez sentir bem, nesse dia, foi esta foto. É muito deprimente. Ter um corpo tonificado não é tudo o que nós, seres humanos, somos capazes." Ou sobre uma fotografia em que aparece vestida com roupa de ginástica: "Uma menina de 15 anos que conta calorias e se exercita excessivamente não pode ser ‘goals’. Qualquer um viciado em redes sociais, como eu fui uma vez, não está num estado consciente." Quase três anos depois, quando tantas mulheres já se insurgiram contra os perigos das redes sociais, a posição da australiana parece arcaica. Alicia Keys, Drew Barrymore, Eva Longoria e Chrissy Teigen são alguns dos nomes sonantes que mostraram não ter medo de "se despir" de filtros. Porém, não deixa de ser curioso que alguém tão novo e com tanto a perder (após a decisão de abandonar as redes sociais, O’Neill terá passado por dificuldades financeiras) tenha percebido como o novo paradigma virtual corrompeu o conceito de Beleza. 

À procura da selfie perfeita. Na vida real, passamos anos sem fim em busca do nosso eu verdadeiro. Nas redes sociais parece que só nos preocupamos em encontrar a versão de nós próprios que tenha o melhor feedback ? que tenha mais likes. Num perfil de Facebook, o utilizador expressa a sua identidade através de uma construção que alterna entre fotografias e texto. Dessa forma, os likes que recebe podem ter a ver com características que não a aparência física. No Instagram, onde 60 milhões de imagens são adicionadas todos os dias, as fotografias, principalmente as selfies, são o foco principal. E 58% dos seus utilizadores são mulheres, ou seja, os problemas de imagem que já existem na vida real (e que começam a fazer-se sentir na adolescência) são ampliados no mundo virtual. "Toda a gente quer ser a rapariga mais bonita da sala. O Instagram fornece uma plataforma em que é possível competir todos os dias. A Internet foi apelidada de meio democrático e talvez o Instagram tenha democratizado os concursos de misses", ironiza Alice Marwick, pesquisadora em redes sociais na Universidade de Fordham, nos Estados Unidos. A gratificação instantânea, através de likes e de comentários, é uma ilusão ? mas é precisamente esse o apelo e a ruína desta rede social. Poucos likes e a eterna sensação de competição geram insegurança e problemas de autoestima. O escrutínio infinito a que estamos sujeitos ? por nós próprios, antes de mais ? faz com que duvidemos do nosso aspeto de uma forma exacerbada, de modo hipercrítico. "Quem me dera ser assim" torna-se o pensamento viral mais perigoso de todos. Foi mais ou menos esse pensamento que me levou a uma rotina de visitas à cadeira do dentista. Durante 34 anos e meio ignorei os meus dentes tortos e as minhas gengivas de urso panda. Em criança bati o pé à insistência da minha mãe para os corrigir ("Vais-te arrepender porque depois custa mais"). Já adulta comecei a reparar que o meu sorriso era… "diferente",  mas nunca perdi muito tempo com o assunto. Até ao boom dos smartphones. De repente, todos começaram a tirar fotografias por tudo e por nada e lá estava o meu "handicap", impossível de ignorar: fotografia após fotografia. Eu, que sempre gostei de rir, passei a ficar "de trombas" nas fotografias ? quando aceitava tirá-las. Só havia uma solução: render-me. Decidi usar um aparelho invisível, estou a meio do tratamento e daqui a nada enfrento os flashes sem problemas de maior. Teria eu dado este passo não fosse a velocidade a que tiramos fotografias? Não. Mea culpa.

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"Isto não é a vida real." Pergunto a duas amigas qual é o impacto do Instagram nas suas noções de beleza. As respostas são mais ou menos iguais. "Às vezes, tenho dúvidas se não serão apenas filtros a mais! Conheço pessoas que abusam das apps para adelgaçar a silhueta e quando estão com alguém, ao vivo, ouvem: ‘Parecias muito mais magra nas fotografias!’", diz-me Ana, de 37 anos. Garante que não se sente minimamente pressionada com as imagens que vai vendo durante o dia ("Pressionada não... Mas que gostava de perder uns ‘quilinhos’ para usar algumas coisas que vejo, gostava. Mas não perco o sono com isso!") e que não perde muito tempo a pensar antes de colocar uma fotografia na sua página: "Não... Até porque habitualmente já tirei umas 15 fotografias até gostar de alguma [risos]!" A posição de Marta, de 29 anos, é semelhante. Aceita que o Instagram influencia a sua noção de Beleza "de um modo subconsciente". E admite: "Principalmente raparigas que admiro com looks que aprecio. Porém, eu também entendo que o que funciona e o que eu cobiço nelas em mim ficaria ridículo." No entanto, longe vão os tempos em que se sentia mal com as fotografias alheias: "Em tempos, sim! Mas hoje sinto-me inspirada, principalmente porque existe agora uma grande comunidade de mulheres do fitness que mantém o motto ‘Keeping it real’, onde mostram as suas imperfeições, os seus erros e angústias como as mulheres ‘normais’. O que vemos no Instagram não é real." É isso, também, que explica a gestão do seu perfil: "Quando decido publicar uma foto, não o faço de um modo leviano. É raro publicar [fotografias] tantas vezes durante a minha semana. Portanto, eu penso sempre bem… Às vezes, existe logo uma intenção no post e outras vezes não. Mas eu tenho de ficar satisfeita. Por vezes peço opinião ao meu namorado [risos]!" É fácil revermo-nos nestas declarações. Ao sermos confrontados com centenas, às vezes milhares, de imagens por dia é importante ter presente que estas são as melhores versões de um longo processo de edição. E que, por isso, comparamo-nos com mulheres que são pagas para ter "corpos perfeitos" (sejam modelos, atletas ou professoras de fitness) e isso nunca nos trará alegria e paz de espírito.

O reverso da medalha. É claro que não são apenas coisas más. Bem pelo contrário. Partilhar fotografias de estrias no Instagram e exibir borbulhas mais-ou-menos-sem-medo no Snapchat nunca foi tão popular. A diversidade de corpos femininos nunca foi tão celebrada e impulsionada por mobilizações nas redes sociais. Atualmente, para cada insegurança há alguém com o mesmo problema a uma hashtag de distância: peito grande, peito pequeno, ser demasiado alta, ser demasiado baixa, ter celulite, ter peso a mais, ter peso a menos… Se, por um lado, existe uma pressão latente para parecer perfeita, não podemos excluir a sensação de pertença dada pelo simples facto de vermos milhares de pessoas "como nós". Em termos de mercado, existem cada vez mais empresas atentas às necessidades de todas (e sublinhe-se o todas) as mulheres. De nomes tradicionais a casos recentes de sucesso, como a Fenty Beauty, as marcas de maquilhagem perceberam, por exemplo, que "nude" é muito mais do que duas cores e apresentaram soluções que respondem às dezenas de tons de pele que existem um pouco por todo o mundo.

Também no léxico de produtos de beleza se sente um afastamento de termos pejorativos: o conceito de antienvelhecimento é lentamente substituído pelas ideias de "slow age" ou de "pro-age" porque envelhecer não tem de ser uma coisa má. E se as redes sociais ajudam a espalhar tendências, uma delas é o bem-estar pessoal. A hashtag #selfcare (ligada a imagens de yoga, de aromaterapia, de meditação e retiros espirituais) foi partilhada mais de três milhões de vezes, em 2017, o que representa um aumento de 537% relativamente ao ano anterior. No mesmo sentido, o público pede cada vez mais autenticidade, tanto em editoriais de moda como em campanhas de publicidade: no ano passado, a marca americana de fatos de banho Rheya decidiu não apagar as estrias da modelo que protagonizava a sua campanha de verão. O calendário Pirelli, por seu lado, mostrava 12 das maiores estrelas de Hollywood, fotografadas por Peter Lindbergh, sem vestígios de maquilhagem e a revista Allure fez mais do que uma capa em que as protagonistas apareciam make-up free. Não nos enganemos: estas "revoluções" nasceram nas redes sociais e no grito de revolta de milhões de utilizadores que começam a perceber que por detrás de uma grande selfie há, quase sempre, um ou dois filtros e três doses de Photoshop.

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Será o fim das princesas dos contos de fadas e o começo de uma nova era de guerreiras modernas? Talvez. Tão depressa não vamos deixar de usar este diário visual. Nem temos de o fazer. Com moderação, os prós podem superar os contras. Com moderação, saberemos que o melhor de cada um de nós está muito longe de um clique… e de um espelho. Mesmo com tanta e tão sedutora tecnologia, o essencial continua a ser invisível aos olhos. 

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