"Se uma criança deixou de brincar, as pessoas não pensam que pode estar deprimida."
No seu novo livro, a pedopsiquiatra Margarida Crujo fala na importância de deixar de lado os rótulos quando se fala em saúde mental, quer seja na infância ou na adolescência. Sim, as crianças também têm depressões.
Foto: D.R.29 de junho de 2021 às 11:55 Rita Silva Avelar
Pedopsiquiatra especialista na infância e na adolescência, mãe de três rapazes, e agora autora do livro O meu filho não precisa de rótulos, editado pela Manuscrito, Margarida Crujo partiu desta estatística: uma em cada cinco crianças no mundo tem um problema de saúde mental.
Tal como se leva um filho a um oftalmologista quando vê mal, ou ao dentista quando lhe dói um dente, sempre com uma facilidade e simplicidade estonteates, porque não adoptar o mesmo procedimento quanto às doenças do foro pedopsiquiátrico? É a pergunta a que tenta responder neste guia descomplicado. Com base na sua experiência em consultório, descortina a importância de as famílias não se esconderem atrás de rótulos, num livro que é de leitura obrigatória (e simples) para pais, educadores, profissionais de saúde e todos os que se interessam sobre o tema.
Porque é que continua a existir tanta relutância em se recorrer a um psiquiatra, sobretudo na infância e na pré-adolescência?
Eu acho que o problema tem acima de tudo a ver com o facto de estarmos a falar de saúde mental, que é um campo ainda muito estigmatizado. É um campo da nossa sociedade cheio de rótulos. É isso que faz com que as pessoas de alguma forma adiem a ida a um sítio que podia ser indicado para receber o apoio que podem estar a precisar de receber. De alguma forma, as pessoas têm alguma relutância em poder aceitar-se como tendo uma patologia ou um problema de saúde mental, mesmo que seja provisório. Que só os "malucos" têm. Essa conotação negativa não faz sentido nenhum, nós não escolhemos a doença que nos acomete, assim como ninguém escolhe adoecer com diabetes, também não se escolhe adoecer por uma depressão. Pelo estigma que ainda está enraizado na sociedade, nem toda a gente vê as coisas desta maneira.
"O meu filho é muito malcomportado." Será? Ou será que sofre de uma perturbação do comportamento? O limiar de comportamentos entre uma coisa e outra é assim tão ténue?
Não é a primeira coisa que vem à cabeça dos pais. Se uma criança que brincava bem deixou de brincar e está mais distraída, as pessoas não pensam que pode estar deprimida. Pensam que vai passar, que é uma fase, que tem a ver com uma zanga na escola. Muitas vezes, é algo que não é lembrado. Depois, quando se pensa nisso, as pessoas acabam por não ir directas ao pedopsiquiatra. É mais fácil irem primeiro ao pediatra ou ao psicólogo. Considero que ainda é um passo difícil.
Será que também não tem a ver com o facto de acharmos que as crianças estão sempre felizes e radiantes?
É um facto curioso. Nós associamos a infância quase a um período de perfeições. As crianças são puras, são cândidas, são felizes mas, se pensarmos que as crianças não podem adoecer está-nos a escapar uma franja muito grande de coisas que lhes podem estar a acontecer. Mais um motivo para estarmos mais atentos e falarmos sobre os assuntos.
De que forma é que se pode educar, nas escolas e em casa, para desconstruir esse estigma?
O estigma está enraizado, e portanto será sempre um processo moroso. Já estamos um passo mais à frente do que estávamos há 50 anos. Gosto de ver isso com um certo otimismo. Tudo passa, primeiro que tudo, por podermos falar sobre o assunto sem que as pessoas julguem, esperando ter aceitação por parte do outro. Este livro acaba por ter esse objetivo. Permitir que se fale de saúde mental de uma forma banal, como uma condição natural. É essa uma das formas de diminuir o estigma.
A linguagem do livro foi pensada para ser acessível e imediata?
Sim, sem dúvida. É um facto que nós, médicos, temos um bocadinho fama de usar "palavrões". Servem dentro da comunidade médica, sim, para termos a certeza que estamos a falar da mesma coisa, mas não servem para falar à população. No livro, tive isso em conta, e todos os conceitos estão explicados. O cuidado na linguagem é importantíssimo precisamente quando se pretende passar uma mensagem especifica.
Da experiência em consultório, diria que os pais estão mais alerta, hoje?
De alguma forma, as pessoas estão ligeiramente mais atentas. Há uns anos a patologia mental ainda era menos considerada. Durante a pandemia, evidenciou-se o facto de a saúde mental dos portugueses estar um pouco mais "beliscada", se calhar foi uma das "vantagens" da covid-19. É o falar que faz toda a diferença.
É a tal questão de se começar a discutir estes temas à mesa, tanto quanto o futebol ou a política?
Sem dúvida.
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Quais são os maiores desafios e as maiores virtudes de se trabalhar com crianças?
A intervenção com miúdos muito pequenos passa sempre muito pela brincadeira. A intervenção é feita através da brincadeira, do jogo, do desenho. Tive uma vez um miúdo que me dizia que a profissão dele era brincar. Passava o dia a brincar. Há sempre histórias giras, os miúdos são criativos, espontâneos e surpreendem-nos. Aprendi que cada doente, cada história é uma história particular e hiper personalizada. Nunca há monotonia no trabalho que nós fazemos. Passa por se ouvir uma narrativa que nos é entregue, e depois precisamos de desconstruí-la, criar uma nova, e entregá-la à criança. A melhoria do quadro clínico é sempre a nossa missão mais desejada. É um trabalho um bocadinho amplo nas ciências que aborda. Tem muito de literatura, pelo menos vejo-o assim, mas também há espaço para música, ginástica, desenho... É um mundo de possibilidades.
O facto de ser mãe influencia muito o seu trabalho?Em casa não sou pedopsiquiatra, mas há momentos em que - à medida que acontecem determinadas coisas com os meus filhos - parece que também sou obrigada a pensar duas vezes e saber como posso intervir. Serve para isso, para eu me ir chamando à atenção.