“Parece haver um paralelo entre o serviço económico da aviação e a nossa intimidade. Houve um downgrade.”
A melancolia de uma jovem hospedeira interpretada pela atriz francesa Adèle Exarchopoulos ganha uma dimensão social neste filme. É de uma Europa em declínio que se alimenta a história. Que segredos esconde a vida dos jovens que se aventuram numa profissão que perdeu todo o seu lado onírico e se entregou às regras de uma economia em saldo? Entrevista aos realizadores de “Geração Low-Cost”.
“Geração Low-Cost”
07 de agosto de 2024 às 16:31 Tiago Manaia
Julie Lecoustre e Emmanuel Marre estão em Marselha. O casal acordou há pouco, são dez da manhã em França. Bebem ainda café e esfregam os olhos de forma espontânea quando aparecem no ecrã do computador através da aplicação Zoom. O filme Geração Low-Costdemorou dois anos a chegar a Portugal. Tornou-se um fenómeno entre os jovens franceses. A sua atriz, Adèle Exarchopoulos, nunca mais deixou os écrans desde que ganhou o Palma de Ouro em Cannes, juntamente com Léa Seydoux e o realizador de A Vida de Adèle– capítulos 1 e 2", em 2013. O seu rosto pode imprimir todo o sofrimento do mundo, como se faz duro ou sedutor. Adèle usa o débito do calão na forma de falar e tem um corpo pulposo como as atrizes da época de ouro do cinema italiano.
É a história de uma hospedeira chamada Cassandre que seguimos em Geração Low-Cost. Foge de algo nas longas horas de trabalho que acumula, conhece parceiros através do Tinder, vive entre inúmeros voos diários, dorme numa base turística em Lanzarote rodeada de outras hospedeiras.
O tempo parece ter deixado de existir para ela. Que vida é a sua? As regras de segurança impostas pela aviação guiam-na. Onde ficam os sentimentos? Filme obrigatório sobre a rapidez do mundo que nos engole. É a primeira colaboração cinematográfica do casal de realizadores que nos fala.
Foto: Getty Images
Aqui em Portugal o vosso filme ganhou um novo título. Chama-se Geração Low-Cost em vez de Rien à Foutre (Quero que se F*da) ou Zero Fucks Given no Reino Unido.
Emmanuel Marre: Em Itália deram-lhe o mesmo título.
Geração Low-Cost faz com que o filme trate um tema geracional e isso faz-me pensar em algumas cidades periféricas, como Lisboa ou mesmo Marselha, onde vocês se encontram agora. São cidades onde as companhias low cost funcionam como uma ponte ligação com o resto do mundo, permitindo a possibilidade de viagem a muita gente.
Isso foi voluntário na escrita do filme? Vocês pensaram tratar uma geração? A tal geração que vive tudo através do Online.
Emmanuel Marre: Não foi consciente. Mas em França, o público era principalmente jovem, os espectadores tinham a idade da personagem, percebemos depois. O filme surgiu precisamente porque um dia eu estava num voo entre Charleroi (Bélgica) e Maiorca e dei por mim na primeira fila em frente ao lugar onde as hospedeiras descolam. E nesse dia uma delas parecia estar a viver um momento da sua vida extremamente duro. O facto de estar perto dela, fez-me perceber que havia um contraste entre o uniforme e a emoção presente na sua cara. Era estranho ver uma hospedeira que não sorria, e durante todo o momento da descolagem ela estava perdida nos seus pensamentos e eu parecia que estava a olhar para um quadro do Hooper.
Quando ela começou o serviço de bordo, apagou todas as tensões do seu rosto através de um sorriso. Na Bélgica, em Charleroi, há uma base da Ryanair e o aeroporto está ao lado de uma pequena cidade do século XIX que era uma cidade mineira. Atualmente tudo ali está ocupado por hospedeiras e hospedeiros da companhia. Tens uma paisagem industrial antiga e é como se os novos operários do setor terciário fossem eles.
Julie Lecoustre: O lado geracional surpreendeu-nos. Descobrimos que havia uma geração europeia que se tinha construído com o tempo. A maior parte das hospedeiras que filmámos eram italianas ou espanholas. Havia de facto uma jovem geração europeia num mercado de trabalho bastante precário que ouvia a mesma música e ia sair à noite nos mesmos sítios e utilizava as mesmas aplicações de encontros. Acho engraçado, por exemplo, que em Portugal o filme tenha o mesmo título que em Itália. É uma geração em que todos falam um inglês internacional, um inglês onde a nuance se perde um pouco. Logo, partilhar uma ideia de intimidade, torna-se complicado. E há uma dinâmica de movimento que é rápida. Para estes jovens é preciso poder avançar depressa sem que seja muito caro. Estão numa espécie de dinâmica de movimento perpétuo que não os deixa pensar muito sobre as coisas.
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Emmanuel: Chega a ser engraçado pois parece haver uma espécie de paralelo entre o serviço económico da aviação e a nossa intimidade. Há uma espécie de downgrade. Ou seja, é possível viajar, mas o serviço de que podes desfrutardurante a viagemfoi diminuído. A vida agora também parece ser de menos qualidade. Mas, a ideia de base no filme era a de tentar inventar uma vida para a hospedeira que eu vi desesperada naquele outro voo. O que teria ela vivido naquele dia?
Foto: DR
Os perfumes vendidos pelas hospedeiras nos voos têm nomes como "La Vie est Belle" e há fotografias do céu que a protagonista tira e publica no Instagram. O céu parece poético. Há uma automatização da beleza e um vazio que o filme acaba por conseguir instalar. Quando é que vocês se aperceberam da estranheza presente nesta linguagem poética do mundo atual? No fundo serve só para camuflar um lado que faz muito pensar nos operários do filme do Fritz Lang, o Metrópolis (1927).
Julie: (risos) Isso são coisas que orientam o nosso olhar há já algum tempo. Quando estava a acabar a escola, o Emmanuel fez um filme sobre o Ikea, e eu levei para o filme outras referências. Acho que nos interessa ver onde está a beleza escondida por trás do que é comum ou banal e que nos rodeia nos dias de hoje. E como podemos ir ao encalço disso? Nesses não lugares? Como podemos encontrar humanidade ou um momento de beleza? É algo que nos mantém próximos e orienta muito a nossa forma de olhar para as coisas.
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Emmanuel: O que eu acho engraçado é quando a poesia está num lugar onde há uma deslocação de sentido, quando descobrimos um significado oculto em qualquer coisa. E numa hospedeira, por exemplo, parece-me que é poético porque está tudo tão enquadrado no seu uniforme ou nas regras que cumpre.
O mínimo gesto pode ser poético. E, por incrível que pareça, os rostos vêm-se melhor que nunca quando estamos todos a usar o mesmo uniforme.
Às vezes gosto de ir ao Ikea, por exemplo, só para ver a vida das pessoas.
Porque elas vão ao Ikea por causa de coisas muito importantes nas suas vidas.
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Foto: DR
Nos aeroportos é um pouco a mesma coisa, nos halls de aeroportos há mil vidas entre as pessoas que se despedem... e há também um lado ameaçador com as medidas de segurança? São uma das bases da estrutura do filme?
Quando pensámos no filme, achámos interessante que fosse esta jovem mulher que vive num mundo ultra seguro, que tenta evitar atentados e coisas assim... e a quem a mãe morre num acidente extremamente banal de carro.
Julie: E ao escolher um trabalho assim há também a possibilidade de nos esquecermos de nós próprios nos procedimentos de segurança. De facto, podemos até esquecer-nos de nós próprios numa forma de não-escolha, uma vez que tudo é escolhido para nós algures num momento da nossa vida.
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Sei que vocês trabalharam numa economia bastante especial neste filme, ou seja, faziam realmente voos com figurantes que estavam dispostos a viajar com vocês. Como é que vocês trabalhavam os dois juntos? Um dirigia os atores, e o outro fazia os planos?
Emmanuel: Basicamente é o caos. Não há um papel definido. Às vezes há um de nós que fala demasiado ou o outro consegue resumir tudo numa só palavra, e às vezes é só um olhar a dois, mas num filme há mais pessoas. Falamos com toda a equipa.
Julie: E como na nossa equipa quase todos são realizadores, penso que se cria uma espécie de dinâmica em que todos estão envolvidos no seu próprio lugar, mas vão para além do seu próprio perímetro. Não é como uma rodagem clássica.
Foto: DR
Há uma ideia de companhia teatral?
Emmanuel: De camaradagem, sim. E no filme só usamos 30% das cenas que filmámos. Mas acho que todos nos questionámos muito relativamente à melancolia, de onde vinha a melancolia daquela hospedeira? Uma melancolia que era ultramoderna e europeia.
Encontraram a resposta?
Julie: Estava em tudo.
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Emmanuel: Para mim, houve sempre esta ideia de luto ao contrário. O facto de estarmos numa sociedade que nos diz para seguir em frente antes do fim. E mesmo tudo o que toca o desenvolvimento pessoal, atualmente, diz-nos para seguirmos em frente.
Para esquecer a morte?
Emmanuel: Sim para esquecer a morte. E mesmo no cinema há esta ideia de que se o personagem não avança, o filme pode tornar-se chato. E nós quisemos fazer o filme ao contrário. O realizador Pedro Costa dizia isso, ‘toda a gente me diz para avançar, mas eu quero recuar.’ O nosso filme vai da luz extrema para a obscuridade, torna-se mais lento. Hoje em dia dizem-nos constantemente para nos colocarmos no centro das atenções, no Instagram há milhares de filtros e não há filtros para fazer claro-escuro, por exemplo. Os filtros existem para nos iluminar sempre mais. E, no filme, a Cassandre encontra qualquer coisa na vida dela no momento em que há menos luz. E há também a questão da morte, claro. Como fazemos quando estamos face à morte?
Foto: DR
Em França, país onde vocês vivem, as últimas eleições foram muito tensas devido à subida da extrema-direita, entre outras coisas. E dizia-se muito que esta Geração Low-Cost talvez não fosse votar. Que era uma geração sem consciência política. Têm alguma reflexão sobre isto?
Julie: Tenho a impressão que, sim, há uma despolitização, mas que ela também foi fabricada de forma sistémica. Ainda há pouco falávamos da precariedade do mercado de trabalho europeu para estes jovens, de facto, tudo é feito para que a solidariedade seja quebrada.Vão para a Ryanair sem estar sindicados. Há muita desinformação, há até desinformação jurídica. Nós conhecemos hospedeiras que, na sua maioria, nem sequer conhecem os seus direitos, sabendo que ainda por cima vão para outro país com um contrato que não é do seu país de origem.
Há realmente algo que está a ser feito para quebrar a solidariedade. E que está em fase com a extrema individualização do nosso mundo.
Estamos a perceber quais são os bons e os maus lados do projeto europeu em que crescemos? Podemos ver os mesmos filmes (apesar do vosso ter chegado a Portugal com dois anos de atraso), ouvimos a mesma música, as coisas funcionam um pouco em osmose.
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Emmanuel: Queria evocar o que diz a escritora Annie Ernaux, que para mim é de facto hiperpolítica. Ela fala da forma como a globalização nos cegou. Aquilo que era a coisa mais profunda de cada um de nós, a nossa cidade, a nossa pequena vida, o nosso percurso no amor... (pausa) Agora dizem-nos sempre que temos de ter a casa mais bonita, temos o Pinterest para tudo, teremos sempre um ecrã que nos mostra que no fundo não temos valor.
Tudo foi feito para que as pessoas sintam que o seu ambiente é deprimente, e de facto, não é. E a relação com a extrema-direita vem dessa frustração que nos chega de uma sociedade do desejo. Fazem-te sempre sentir que não tens coisas suficientes.
Foto: DR
E isso acontece no filme quando ela tem encontros no Tinder e acaba a ouvir música com um quase desconhecido, uma música que não tem nada a ver com ela.
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Julie: O que se torna mais precioso, no final, não é o consumo de sexo e daí por diante. São apenas cinco minutos de ternura e troca com a outra pessoa.