Começou por ser a caixinha que mudou o mundo. Mas é agora esse mundo, ou pelo menos parte dele, que se vira contra a televisão, apontando-lhe o dedo e acusando-a de ser prejudicial para o desenvolvimento infantil. Afinal, devem ou não as crianças ver televisão? A partir de que idade o podem fazer? É seguro que o façam? Às perguntas, os estudos científicos têm dado respostas que pressionam os pais, quase que os forçando a tomar uma posição contra ao aparelho que, durante anos, ocupou um lugar de destaque nas salas da maioria dos lares, nacionais e não só.
A Sociedade Americana de Pediatria não tem dúvidas: antes dos dois anos as crianças não devem, de todo, ver televisão. Ou, já agora, ter contacto com qualquer ecrã, seja este do televisor, tablet ou smartphone. Recomendações que a Sociedade Portuguesa de Pediatria (SPP) subscreve. Depois disso, o bom senso toma conta do discurso dos especialistas, para se tornar mais flexível. Afinal, impedir os mais pequenos de aceder aos ecrãs não é assim tão fácil.
Paula Rocha conhece bem estas dificuldades. Tem dois filhos: uma menina de três anos e um menino de quatro e tanto ele como ela gostam de ver televisão. Não se importa que assim seja, desde que com conta, peso e medida: deixa os filhos verem televisão mas, quando estão em casa todos juntos, raramente se sentam à frente do aparelho. Um meio-termo é o que Catarina Sousa, mãe de dois rapazes, um de cinco, o outro de dez, tenta atingir. Mas nem sempre com sucesso. "Durante a semana veem um pouco de televisão pela manhã", admite, e só voltam a estar à frente do pequeno ecrã no regresso a casa, depois da escola e das atividades. Fazem-no até à hora de jantar "e, às vezes, até um bocadinho depois", enquanto os pais acabam a refeição "em sossego". Sim, confirma, "de forma antipedagógica, os pais usam a TV como 'muleta'". E, sim, reconhece, os filhos veem muita televisão. Sabe disso e tenta "compensar com saídas de casa ao fim de semana", atividades diversas, festas de amigos. "Mas também digo que se não é a televisão, é a playstation, se não é a playstation, é o computador... Agora é YouTube a toda a hora, estamos rodeados de tecnologia, não há como fugir!"
A psicóloga clínica Rosário Carmona e Costa não tem dúvidas de que "qualquer ecrã, em excesso, faz mal. Independentemente da idade. Faz mal à saúde física e faz mal à aquisição de competências". Apesar de retirar a televisão da lista dos maiores inimigos, "porque não possui uma natureza tão interativa como a Internet", não a isenta de todos os riscos: "Ver televisão sem acompanhamento até aos três ou quatro anos? Não! Ver televisão com os pais de forma a que o conteúdo assistido seja alvo de aprendizagem e conversa? Sim! Ver televisão para conseguir que os nossos filhos obedeçam: Não, independentemente da idade." Guiomar Oliveira, presidente da Sociedade de Pediatria do Neurodesenvolvimento da SPP, deixa a certeza de que, para as crianças pequenas, "o processo de ensino e aprendizagem mais eficaz é o ‘hands-on’ em cenários reais. São esses os momentos que se devem promover no dia a dia das crianças. Neste grupo, o benefício da televisão não está provado". Hugo Rodrigues, pediatra, concorda e desaconselha o uso de ecrãs às crianças mais pequenas. "Os grandes problemas associados à exposição precoce à TV prendem-se com o facto do cérebro, nessa idade, ainda estar em intenso desenvolvimento. Assim, há algumas áreas que podem sofrer interferência dessa exposição precoce", confirma. Rosário Carmona e Costa junta a estes outros riscos: "Obesidade, sedentarismo, exposição a conteúdos que a criança ainda não tem competências cognitivas e emocionais para integrar, exposição a modelos desadequados, normalização de comportamentos que os pais podem não considerar aceitáveis." A lista, essa, completa-a Guiomar Oliveira, que acrescenta outros ‘males’ causados pela TV, como "a redução do tempo de sono ou a hiperestimulação, excitação que interfere no período de adormecimento, assim como a visualização de cenas violentas e assustadoras que interferem na qualidade do sono" e do tempo que podia ser passado a fazer tantas outras coisas, como ler, passear, brincar, "participar nas atividades domésticas que poderão ser tornadas lúdicas e ricos momentos de aprendizagem".
Depois, chegam as consequências, com reflexos no desenvolvimento infantil. "Um dos problemas que surge tem a ver com a forma de comunicar: certos programas interferem com a aprendizagem da linguagem verbal e não-verbal, pelo que a comunicação fica claramente comprometida. Assim como a capacidade de socializar, que se desenvolve estando com outras pessoas. Além disso, estamos a habituar as crianças a estímulos ‘fortes’ e complexos (cores, sons, brilhos, músicas) pelo que outros tipos de estímulos passam a ser encarados como pouco atraentes (ouvir um professor numa sala, por exemplo). Por fim, estamos a privar as crianças de se desenvolverem do ponto de vista motor, o que pode condicionar a sua coordenação e habilidade", refere o pediatra.
Para a psicóloga, quando se usa a televisão para "regular o comportamento", deixando esta de ser apenas uma ferramenta "meramente lúdica e de entretenimento, é quando estamos a entrar em terreno pantanoso. Utilizar a TV para ‘controlar’ os filhos, evitar que façam asneiras (tão necessárias ao desenvolvimento e aprendizagem), calar birras que começam a horas difíceis, então as consequências são sobretudo para o desenvolvimento socioemocional: a criança deixa de adquirir competências de auto-regulação do comportamento, de adquirir competências para tolerar a frustração e gerir as suas próprias emoções e, ainda, a de saber esperar".
Há quem acuse os pais, quem diga que estão a transformar a TV numa baby sitter muito conveniente – e barata –, à distância de um botão. Aqui, os especialistas discordam. Hugo Ribeiro diz que sim, "infelizmente isso acontece". A psicóloga discorda: "A utilização da TV tem tido um comportamento muito estável ao longo do tempo e perdeu para os outros ecrãs", como os do tablet/smartphone. O que é preciso, concordam, é o "bom senso". E mais informação, defende a especialista da SPP, para quem "a exposição e tempo de contacto com o ecrã deve ser tema de conversa nas consultas de saúde infantil e juvenil, como o é o da alimentação saudável e dos cuidados antecipatórios". O que nem sempre acontece.
Ver: quando, quanto, o quê
"Até aos dois, três anos, as crianças não devem ver ecrãs", defende Hugo Ribeiro. Depois disso, o especialista considera que o ideal é não mais de hora e meia a duas horas por dia. "Se possível, o uso dos ecrãs deve ser uma atividade partilhada, ou seja, os pais devem estar ao lado dos filhos quando eles estão a ver televisão ou a jogar tablet e pode ser algo feito em conjunto, para dar um cariz mais social." Quanto ao que podem ver, Guiomar Oliveira elege "temas que as crianças aprendem muito bem, como: respeito pelo planeta, estilos de vida, alimentação saudável, literacia para a saúde, programas educativos sobre segurança, catástrofes naturais e outros perigos… entre outros". Importante é "selecionar os programas e falar sobre eles. Ou seja, tornar o tema do programa um momento ativo de interação e conversação entre a criança e a família". Os pais não têm obrigatoriamente de ver o programa com os filhos, mas sim de saber de que se trata e, posteriormente, devem colocar questões às crianças, pedindo-lhes que recontem, tarefa indispensável no neurodesenvolvimento.
Conselhos para pais e filhos, por Rosário Carmona e Costa, autora do livro iAgora?
"Eliminar a televisão de fundo" que, ligada quando ninguém está a ver, "constitui um entrave a muitas oportunidades de relação que surgiriam ao longo do serão".
"Não permitir televisão nos quartos,um espaço preferencial de descanso."
"Não permitir televisão durante as refeições", o momento em família por excelência.
"Planear o que eles veem: este planeamento permitirá aumentar o controlo sobre possíveis consequências nefastas para o bom desenvolvimento."
"Gravar para ver depois", que identifica como "uma estratégia que serve dois propósitos muito úteis: em primeiro lugar, permite contornar os intervalos e a publicidade que passa nessa altura e nem sempre é adequada à faixa etária a que programa se destina; por outro, permite que o privilégio de assistir a este programa possa ser gozado mesmo que a tarefa que o seu filho tem pela frente para o merecer ainda demore".
"Ver com eles",permitindo que a televisão e as outras tecnologias sirvam "de ponte entre os membros da família".