As estatísticas divulgadas por organizações internacionais são duras, mas reveladoras: milhões de mulheres continuam a enfrentar violência, discriminação e a violação dos seus direitos mais básicos. No rescaldo do 25 de novembro, o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, lembrar estes números é perceber por que é que o feminismo ainda é uma urgência.
Fazendo um retrato global, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, uma em cada três mulheres já foi vítima de violência física ou sexual pelo menos uma vez nada vida, o que equivale a cerca de 840 milhões de mulheres. Só no último ano, 316 milhões foram vítimas de violência física ou sexual por parte de parceiros íntimos e 263 milhões, a partir dos 15 anos, sofreram violência sexual fora da esfera conjugal. Isto são, claro, números que, segundo os especialistas, estão significativamente abaixo da realidade devido ao estigma e ao medo da denúncia por parte das vítimas.
Em 2024, o relatório da UN Women – a agência para os direitos das mulheres, igualdade de género e empoderamento feminino da Organização das Nações Unidas (ONU) – contabiliza 83 300 mulheres e meninas assassinadas de forma intencional, 60% às mãos de alguém que conheciam. Ou seja, 137 por dia. Na União Europeia, em média, são assassinadas 50 mulheres por semana, vítimas de violência doméstica. A nível mundial, a cada 10 minutos, uma mulher é assassinada por um parceiro ou familiar. A ONU identifica as maiores taxas de feminicídio em África, seguindo-se as Américas, a Oceania, a Ásia e a Europa.
Mas a violência contra as mulheres não se limita ao feminicídio. Em 2025, cerca de 36 países ainda não têm qualquer legislação sobre a criminalização do abuso sexual no casamento. Nos países em que essas leis existem, a sua existência é recente, já que em 2011 a UN Women afirmou que o ato ainda não estava criminalizado na maioria dos países do mundo.
Mais de quatro milhões de meninas correm, anualmente, risco de mutilação genital. Por ano, cerca de 12 milhões de meninas menores são forçadas a casar, o que dá uma média de 23 por minuto, contabiliza a UNICEF. Já quanto ao tráfico humano, 80% das vítimas são mulheres e meninas, raptadas e vendidas como se fossem mercadoria. E uma em cada 10 mulheres, na União Europeia, relata ter sofrido assédio sexual online. Além disso, a discriminação de género continua instalada e sendo permitida do ponto de vista legal. No ano passado, cerca de 18 países ainda davam aos homens o direito de proibir as mulheres de trabalhar, e em 104 países ainda era permitido impor restrições ao emprego feminino, o que afeta as oportunidades de trabalho de cerca de 2,7 mil milhões de mulheres. Ainda em 2024, cerca de 123 países ainda não tinham leis contra o assédio sexual nas instituições de educação, e 59 países ainda não tinham legislação contra o assédio sexual nos locais de trabalho.
O relatório da Human Rights Watch (HRW) referente ao ano passado relata que em países do Médio Oriente e do Norte de África a lei elimina quase por completo a autonomia feminina. Por exemplo, no Iémen, os homens ainda têm direito por lei a proibir as mulheres de saírem de casa ou de viajarem, o que as deixa prisioneiras dentro do seu próprio domicílio. O mesmo se passa no Afeganistão onde, sob o regime Talibã, as mulheres que se apresentem num serviço de saúde sem um “guardião” (um familiar do sexo masculino) podem ser mandadas embora ou removidas à força. Isto inclui cerca de dois milhões de mulheres viúvas.
Em 2024, estimou-se que metade das mulheres e raparigas de vários países do Sul Global (ou países subdesenvolvidos) se encontravam na chamada period poverty, forçadas a utilizar técnicas precárias e improvisadas para reter o fluxo durante a menstruação, expondo-se a infeções e a absentismo escolar.
A desigualdade manifesta-se também na saúde.
De todas as mulheres do mundo, cerca de 40% ainda vivem em países com leis restritivas no que toca ao aborto, vendo os seus direitos, relativos ao próprio corpo, negados. A negligência médica em mulheres, a nível mundial, também é uma questão preocupante. Um relatório da OMS deste ano revela que o número de denúncias aumentou e 40% das mulheres entrevistadas afirmam ter sofrido maus-tratos na gravidez ou no parto, incluindo procedimentos sem consentimento. Também as mulheres na menopausa são vítimas de negligência médica, assim como as neurodivergentes, de cor e/ou em condição de pobreza. Por exemplo, a endometriose continua subdiagnosticada, e demora em média oito anos a obter diagnóstico – um período que é passado não só à espera de respostas, mas com dores severas, fadiga, depressão, ansiedade e possíveis problemas de infertilidade. Num mundo onde a investigação médica sempre privilegiou o corpo masculino, as consequências são visíveis. Ou seja, a qualidade dos cuidados de saúde que as mulheres recebem é mais baixa, em geral, do que a recebida pelos homens.
A realidade nacional não escapa à tendência global. Em 2024, de acordo com a APAV, registaram-se cerca de 30 mil ocorrências de violência doméstica. Sete em cada 10 vítimas são mulheres, e oito em cada 10 agressores são homens. Este ano, até ao dia 25 de novembro, Portugal contabilizou 24 feminicídios e 40 tentativas, a maioria em contexto familiar ou de relação íntima. A violência no namoro também cresceu: um estudo da UMAR revela que as jovens reportam com maior frequência violência psicológica, digital, física e sexual. Entre menores, os dados mostram que quase 80% das vítimas de abuso sexual são meninas. O assédio no trabalho continua a ser um problema profundamente marcado pelo género: de acordo com um inquérito sobre a segurança no espaço público e privado, as mulheres reportam o dobro dos casos face aos homens, sobretudo as mais jovens. Em paralelo, as queixas por negligência médica aumentaram 26% em 2025 – 65% das reclamações foram apresentadas por mulheres, segundo o Portal da Queixa.
Perante tudo isto, parece evidente que o feminismo continua a ser necessário. Estes números não são inventados, não são "um exagero", nem representam casos isolados. Quando analisados contam sempre a mesma história em diferentes geografias e permitem reconhecer um padrão muito claro, um sistema, uma questão estrutural e cultural, e por isso, não representam um problema feminino, mas um problema da sociedade em geral. Sarah Hendricks, diretora da Divisão de Planeamento e Ação da UN Women, resume numa frase: “Para impedir estes assassinatos, precisamos de leis dirigidas à violência contra a vida das mulheres e meninas.” Porém, não é provável que alterações legais sejam suficientes, enquanto não houver uma mudança social e cultural. Uma mudança que começa, certamente, com a educação – tanto em casa como na escola.
Até porque a segurança das mulheres e a sua plena participação, de forma igualitária, na sociedade é um direito humano fundamental, condição essencial para qualquer sociedade que queira prosperar, desenvolver-se e avançar. Até lá, o feminismo terá de continuar a fazer o seu trabalho.