No premiado “O Último Azul”, de Gabriel Mascaro, o idadismo vai até às últimas consequências

O realizador conversou com a Máxima sobre seu filme que ganhou o Urso de Prata em Berlim e acabou de estrear em Portugal.

Em "O Último Azul", Teresa, uma idosa na Amazónia, desafia as leis e redescobre a vida Foto: DR
09 de setembro de 2025 às 16:48 Clara Drummond

O Último Azul, de Gabriel Mascaro, é uma distopia sobre uma senhora de 77 anos que, em vez de aguardar a morte, como o mundo à sua volta espera que ela faça, escolhe redescobrir a vida. À partida, Teresa não parece particularmente preocupada com as leis que obrigam idosos a mudarem-se para uma colónia de velhos a partir dos 80 anos. A tal colónia de velhos pode ser um simples lar de idosos ou um campo de concentração, não sabemos. Por um lado, vemos grafitos nos muros: “devolvam o meu avô”; “velho não é mercadoria”. Por outro, a filha de Teresa não parece nem um pouco hesitante em entregar a sua mãe em troca do dinheiro do Governo.

Tudo muda quando Teresa descobre que a idade baixou de 80 para 75 anos. É somente aí que percebe que ainda tem sonhos e desejos, como voar de avião pela primeira vez, e vai atrás de os realizar, mesmo quando a burocracia estatal e os delatores da sociedade civil tentam impedi-la. A partir daí, o filme torna-se uma mistura de road movie (na verdade, boat movie, uma vez que a viagem é pelos rios da Floresta Amazónica) e uma espécie de coming of age tardio.

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Em "O Último Azul", Teresa embarca numa jornada de autodescoberta pelos rios da Amazónia Foto: DR

Gabriel Mascaro, que também dirigiu os excelentes Ventos de Agosto, Boi Neon e Divino Amor, tem uma filmografia bastante marcada pela sensualidade. O Último Azul não é diferente, embora aqui a libido não esteja necessariamente ligada ao sexo, e sim à pulsão de vida. Em dado momento, Teresa encontra Roberta, uma golpista octagenária que se desenrasca vendendo bíblias, mesmo sendo ateia. As duas desenvolvem uma relação de amizade (amizade erótica?) alicerçada no tipo afirmação de vida que justamente lhes é negada pelo Estado. É como se Thelma e Louise fossem duas senhorinhas a aventurarem-se pelos rios da Amazónia. Aqui, felizmente, elas encontram uma saída - satisfatória, plena e cheia de alma.

Como foi a decisão de filmar na Amazónia?

Eu estava interessado no embate do corpo idoso feminino e o Estado desenvolvimentista. É um vínculo que existe pela contradição. É o Estado que, em nome da produção, tira os idosos de cena para que os jovens possam produzir mais. E nada mais estranho, em termos de deslocamento de perspetiva, que situar esse Estado desenvolvimentista na região que mais associamos com a preservação ambiental. A primeira cena é uma linha de produção de carne de jacaré. E o jacaré é um dos ícones da preservação da Amazónia.

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Em "O Último Azul", Teresa descobre uma nova liberdade nos rios da Amazónia Foto: DR

E a Amazónia é uma região que associamos ao futuro do planeta.

Era importante criar uma distopia que não fosse esse futurismo com carros voadores nem dispositivos supermodernos. O componente de absurdo está lá, mas é uma quase distopia, porque é uma distopia mais branda, disfarçada de bem-estar social, em que o slogan é: “o futuro é para todos”.

O foco, na verdade, é na mudança comportamental. É um estado de vigilância social em que a burocracia e o poder de policiamento é transferido para a população. Cada pessoa é um possível delator. Toda a gente observa toda a gente. É um Estado que normaliza a ideia de idosos que são recolhidos em nome da produção. Logo, é uma Amazónia produtiva.

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Nós não sabemos o que acontece na colónia de velhos, se é um lar de idoso ou um campo de concentração.

Nós só temos acesso a esse lugar através da propaganda oficial e do que as pessoas dizem. A polícia cidadã é o nome oficial, mas a população chama-lhes de “cata-velho”. E dizem: quem vai, não volta. Ninguém sabe exatamente como é a colónia de velhos, mas, nas ruas, vemos que existe uma resistência, pois escrevem nas paredes: “velho não é mercadoria”, “devolvam o meu avô”.

No filme "O Último Azul", idosos procuram redescobrir a vida na Amazónia, apesar do controlo do Estado Foto: DR

É um filme bastante político, mas a personagem, apesar de muito inteligente, não é politizada.

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É um corpo idoso que começa conservador, domesticado, que acredita no sistema, e acha que os delatores impedem que as pessoas façam coisas erradas. E, sobretudo, alienado pelo espaço social. A família é cooptada pelo Estado. A filha ganha dinheiro para que ela possa estar na colónia. Teresa, então, encontra uma forma muito singular de liberdade quando busca um novo projeto de desejo e sonho. E a sua fortaleza torna-se essa outra mulher que é ainda mais velha que ela.

Um personagem que já é rebelde é um personagem mais demarcado. É preciso uma adesão imediata do público. Aqui, é o despertar da rebeldia na pessoa comum. Ela só queria voar, mas ela descobre que pode voar ainda mais alto. Eu estou interessado na liberdade, que é um conceito mais amplo.

No universo do filme, os idosos são perseguidos independente do género. Mas parece-me fundamental que a protagonista seja mulher.

Eu nunca pensei essa história com um protagonista masculino. A sociedade não normaliza o despertar e a rebeldia do corpo idoso feminino. Já a expectativa do que um homem é autorizado a fazer é diferente. O guião inicial tinha um desenvolvimento maior do núcleo familiar. Mas as pessoas não sentiram empatia pela personagem. Teresa é mulher, é mãe, é avó. Não pode abandonar o netinho. Ela só é autorizada a fazer essa viagem se morar sozinha. O corpo idoso é o passado vivo da família, e precisa ficar ali.

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Gabriel Mascaro aborda idadismo e redescoberta da vida em "O Último Azul", filmado na Amazónia Foto: DR

E, da mesma forma, o filme não funcionaria tão bem caso ela fosse de classe média ou alta.

Não tem conflito nem dramaturgia se a personagem puder resolver tudo com um telefonema. Então é preciso que ela não tenha os contactos e networking dos grupos privilegiados. Em dado momento, ela percebe que nem todo velho vai para a colónia, há formas de corrupção. Mas ela precisa descobrir os próprios mecanismos de sobrevivência e resistência. É mais interessante porque há mais percurso a percorrer.

Todos os seus filmes são muito conectados com o zeitgeist. Em Boi Neon, as questões de género no vaqueiro que gosta de moda. Em Divino Amor, os cultos evangélicos cheios de sexo. E, aqui, o vício em jogos de apostas tem papel fundamental na trama.

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O filme brinca com esse lugar: é absurdo, mas poderia acontecer. Na Amazónia não existe a rinha [luta de animais] de peixes a que assistimos – embora, no Brasil, seja muito comum a rinha de galo. Mas poderia existir. O caracol da baba azul também é uma invenção. Eu queria que aquela mulher sem abertura para experimentação psicadélica, que não tem a identidade do usuário de drogas, se abrisse para algo novo, e daí surgiu o caracol da baba azul.

Da mesma forma, a Amazónia já foi a grande extratora de borracha para confeção de pneus, e pensei: e se os pneus abandonados voltassem para a floresta? Recentemente, fiz uma exibição do filme para o presidente Lula, um dos ministros achou que realmente fosse verdade, e eu disse: não, é só efeito especial.

Idadismo e recomeço na Amazónia: uma mulher desafia as normas e redescobre a vida Foto: DR

No filme, os idosos vão para a colónia porque não são mais úteis. E a arte também não é útil. A beleza da arte e da velhice não está na sua utilidade.

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Não havia feito essa relação, mas é verdade, a arte é inútil, é o lugar do sensível, do imensurável. O perigo de uma sociedade liberal que só valoriza aspetos utilitários é que a arte vai inevitavelmente ser deixada de lado. A cultura deixa de ser considerada significativa e deixa de receber fundos do governo. A nobreza, em determinado momento da história, entendeu a arte como uma commodity cultural. No filme, há o “cata-velho”, mas também poderia existir o “cata-arte”. Tudo que é inútil vai embora. Há filmes sobre isso, como Fahrenheit 451, do Truffaut, mas nesse caso a arte é considerada perigosa, e não inútil.

Por fim, quais foram suas maiores referências e inspirações na hora de fazer O Último Azul?

Eu comecei a pesquisa através de filmes com protagonistas idosos, como Uma História Simples (1999), do David Lynch, Viagem a Tóquio (1953), do Yasujiro Ozu, A Balada de Narayama (1983), do Shohei Imamura, e Amor (2012), do Michael Haneke. Mas esses filmes só falam da finitude. O corpo ou está em nostalgia ou em despedida. É um corpo reclamão: antes era melhor! Nós temos a tendência a romantizar o passado. É um exercício se atualizar, entender que a dinâmica do presente é outra. Quando percebi que queria fazer um filme sobre o presente, e comecei a abrir o leque, a brincar com a expectativa dos géneros cinematográficos

O Último Azul é o retrato de distopia num filme bastante utópico. É uma distopia que vira uma fantasia, e que depois vira um road movie, ou melhor, um boat movie, em que o rio é a estrada, e finalmente um filme coming of age, que é um género associado a protagonistas jovens. Nenhum desses gêneros comporta o corpo idoso. A sociedade não aceita a ideia de o corpo idoso protagonizar a própria descoberta.

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Realizador Gabriel Mascaro debate idadismo no filme "O Último Azul", filmado na Amazónia Foto: DR
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