José Gameiro: "É possível ter uma relação conjugal boa, satisfatória a todos os níveis, e ter uns casos por fora"
José Gameiro, psiquiatra, terapeuta de casais, cronista, escritor, romancista e piloto de aviões, acaba de lançar o seu mais recente livro: “O Outro”, um romance sobre um triângulo amoroso que lança por terra dois grandes mitos da infidelidade – que é coisa de homens e que só acontece em relações que estão com problemas.
José Gameiro lança "O Outro", romance sobre infidelidade e triângulos amorosos
Foto: DR28 de outubro de 2025 às 13:05 Madalena Haderer
O psiquiatra garante que este é o último livro que escreve sobre casais. Está farto de pecados conjugais. O próximo será sobre a relação entre um pai e um filho num cenário pós-separação. Mas como o próximo ainda não está terminado, falemos do que acaba de chegar às livrarias: “O Outro”. Maria e Pedro são um casal feliz, com dois filhos. Tudo corre bem. Divertem-se, apoiam-se mutuamente, têm objetivos comuns, nada de negativo a reportar na vida sexual. E, no entanto, começa a instalar-se em Maria um sentimento de insatisfação para o qual ela não consegue encontrar motivo. Pequenas coisas do dia-a-dia, talvez, mas nada de monta. E é então que Luís, um homem divorciado, surge no seu caminho. Começar é simples (embora não necessariamente fácil). Toda a gente sabe (ou imagina) como começa um caso extraconjugal, mas o fim é sempre uma incógnita – um alerta que José Gameiro faz com frequência. E, não raras vezes, uma incógnita devastadora. Esta história não é excepção, na qual os 40 anos de experiência como terapeuta de casais ganham vida em cada frase, em cada pensamento não confessado, em cada insulto justa ou injustamente dirigido.
A apresentação do livro contou com a presença da jornalista Anabela Mota Ribeiro, e do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que estava a ter um dia particularmente atarefado, com a prisão dos quatro portugueses que participaram na Flotilla e foram capturados por Israel em águas internacionais. Chegou atrasado, mas ainda a tempo de tecer elogios. “Tinha mesmo de o fazer”, esclarece “ou o autor amua”. Marcelo e Gameiro são amigos de longa data.
Dias depois, o psiquiatra recebeu a Máxima na sua casa, em Cascais, numa tarde quente e soalheira do início de outubro. Aproveitámos a oportunidade para falar sobre infidelidades e outras dificuldades por que passam os casais, e sobre como recuperar desses momentos de crise. Até porque hoje em dia – há-de explicar-nos –, é no casamento que as pessoas mais procuram a felicidade. E há dois fatores principais que a põem em risco: as famílias de origem e a crítica sistemática. Acima de tudo, se tivermos noção que casamos sempre com um cabaz de Natal, tudo fica mais fácil.
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Romance de José Gameiro explora paixão intensa e proibida entre desejos e deveres
Foto: DR
Neste seu novo livro, conta a história de um triângulo amoroso em que o elemento infiel é a mulher. Não é a situação típica. Foi de propósito?
Esse aspecto típico já não é verdadeiro. Pensar que só os homens são infiéis é uma treta. As estatísticas sobre isso são muito falíveis, porque as pessoas mentem, mas a igualdade sexual veio nivelar as coisas. Não sei se as mulheres são tão infiéis quanto os homens, mas acho que se aproximam muito. A questão é que as mulheres escondem melhor as infidelidades. São muito mais inteligentes. Apagam mais as mensagens. Há muitos tipos de infidelidade. Há o one-night stand, que não se descobre porque não tem sequência. E há a infidelidade que dura algum tempo, e essa muitas vezes dá sinais em casa. Mas também pode não dar. É possível ter uma relação conjugal boa, satisfatória a todos os níveis, e ter uns casos por fora de vez em quando. Não acredito em razões puramente sexuais, mas, ao princípio, serão puramente de atração sexual e depois constrói-se também qualquer coisa de afetivo. Mas não põem em causa a relação conjugal. Essas, como são muitas vezes espaçadas, e como não há sinais em casa [discussões, conflitos, que indiciem algum desgaste], o risco de se ser apanhado é mais baixo. Se há sinais, bom… Costumo dizer que mesmo aquelas pessoas que acham que nunca vão ao telefone da outra pessoa, quando estão aflitas vão. E se há coisas lá... É assim que as pessoas hoje são apanhadas, pelos meios digitais.
Antigamente era preciso ir ver os bolsos dos casacos…
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Ou o batom na camisa. Mas os homens, quando são infiéis, não têm só casos com meninas solteiras, divorciadas ou com outros gajos. Muitas vezes têm-nos com mulheres casadas. Já não faço primeiras consultas, mas quando fazia, tinha sempre uma entrevista primeiro com o casal e depois separadamente com cada um, e havia sempre um que era, digamos, o infiel oficial, o que tinha sido apanhado – raramente as pessoas confessam, neste livro ela confessa rapidamente o que é que se está a passar, o que é muito atípico –, mas quando perguntava à outra pessoa se já tinha acontecido alguma coisa do género com ela, muitas vezes a pessoa dizia que sim, num congresso houve uma história, nada com sequência, mas que houve assim umas coisas episódicas. Hoje em dia, as pessoas têm mais oportunidades, homens e mulheres. Vão sair, vão a um congresso, bebem uns copos, jantam, e depois dão uma voltinha. Muitas vezes não tem consequência nenhuma. Aliás, quando ainda fazia primeiras consultas, havia duas perguntas muito difíceis que me faziam. Uma era: “Aconteceu-me isto, conto em casa?”
Essa é precisamente uma das perguntas que quero fazer-lhe. Confessar ou não confessar?
Já lhe dou a resposta que dava às pessoas. A outra pergunta difícil era: “No meu trabalho há uma pessoa com quem simpatizo, tenho um casamento que corre muito bem, está tudo bem, a todos os níveis, mas há uma pessoa que me está a tocar, que me ouve bem…” – porque às vezes os casais nem sempre se ouvem um ao outro – “Acho que estou a ficar interessado, devo avançar?” E eu dizia sempre: “Pode avançar, mas a partir do momento em que avance – e avançar é ir para a cama, que as relações a partir da maioridade não ficam platónicas – não sabe o que é que vai acontecer, pode ser uma coisa boa, ou…”
Refere isso no livro. A determinada altura a protagonista diz qualquer coisa como “tenho um amigo psiquiatra que diz sempre ‘começar é fácil, o problema é que nunca se sabe como é que vai acabar…’"
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Digo sempre isso às pessoas. Não sabe o que vai acontecer, nem você sabe, nem ninguém, porque pode ser uma situação que dure muito tempo, ou que dure algum tempo e depois é um molho de brócolos, ou pode ser uma coisa que acaba logo, e até pode ser uma grande desilusão – era bom para conversar, mas para o resto não presta. E quando me perguntam se devem confessar, digo sempre que isso vai das convicções éticas de cada um. E cito sempre um grande amigo meu, que era psicólogo e morreu há um ano, e que usava um termo muito interessante, que era a “verdadaça”. Como a “verdadaça” podia dar cabo dos casais. O que é que ele queria dizer com isto? "Eh pá, se aconteceu uma noite, vais contar para quê? Vais arranjar uma crise do tamanho das casas, e para quê, se isso já acabou, se não teve significado nenhum, tivesse sido bom, tivesse sido mau, não teve nenhuma implicação na relação conjugal, para quê contar?" Agora, se há razões éticas muito fortes, se fez uma jura de fidelidade lá na cerimónia do casamento, e acha que tem de contar, então conte, não posso opinar sobre isso.
E as relações recuperam?
Eu, como trabalhei toda a vida com casais que vinham ter comigo porque queriam recuperar, [posso afirmar que] a maior parte recuperava. Quando um casal passa por uma situação destas, o processo é sempre muito parecido, o que varia é o tempo da crise e o tempo que demora a passar. Primeiro é um turbilhão, um terramoto nos primeiros dois ou três meses, com massacres do tipo “como é que foi, onde é que foi, foi por baixo, foi por cima, foi de lado”. Com a pessoa que foi infiel muito aflita com as perguntas, porque por um lado tem vergonha e sente culpa, e por outro lado também quer proteger a outra pessoa [com quem cometeu a infidelidade] – não quer estar a dizer quem é, onde vive, onde trabalha. Aliás, quando são pessoas que trabalham no mesmo sítio é muito complicado. Já tive situações em que uma teve de deixar o emprego. E até tive uma situação numa ilha muito pequenina, não vou dizer qual é, em que uma das pessoas teve que se ir embora. Depois, a recuperação é feita de altos e baixos. A partir de determinada altura eles começam a aproximar-se, começam a envolver-se fisicamente. É muito interessante o envolvimento físico porque, muitas vezes, é diferente do que era anteriormente: é muito mais entusiasmante. Animam! Aquilo anima imenso! Há a fantasia de que o parceiro fez coisas do outro mundo com a outra pessoa e há um sentimento de “Eu também quero fazer isso! Eu também sei fazer isso!” E isto é entremeado com fases de crise, com lembranças, com discutir outra vez o problema – por que é que isto aconteceu? E as pessoas muitas vezes não sabem responder, não há uma explicação. E quando as pessoas insistem muito em saber todos os detalhes, digo sempre a mesma coisa: “Você tem todo o direito de fazer as perguntas que quiser, acho que é difícil não perguntar, mas quanto mais coisas você souber, mais a sua cabeça fica cheia e quanto mais coisas você tiver na cabeça, pior vai ser no futuro. Vai saber sítios e quando passar perto dos sítios vai lembrar-se, vai saber músicas, vai saber hotéis, e essas coisas vão estar sempre a aparecer.” E às vezes, em alguns casais, a pressão era tão grande que eu tinha de lhes dizer “vocês não morreram da doença, mas vão morrer da cura”. Porque a tensão é de tal maneira que depois não conseguem dar a volta. A coisa que mais tempo demora a readquirir é a confiança, que fica muito abalada. É preciso que a outra pessoa comece a dar mais confiança no sentido em que atende sempre o telefone, diz sempre onde é que está, a fazer o quê e com quem, depois, com o tempo, isto vai-se espaçando e a coisa recupera. Mas é um processo lento. Diria que até estar completamente recuperado, são seis meses a um ano.
José Gameiro fala sobre infidelidade, relações, casamento e novo livro
Foto: Augusto Brázio
E a tentativa de vingança, resulta alguma coisa? Aqui o marido da protagonista tenta vingar-se, pagar na mesma moeda.
Não. Não vale a pena, não funciona. É uma coisa que no fim não sabe a nada.
Normalmente, os homens que traem são vistos como uns grandes sacanas, as mulheres são vistas de uma forma mais condescendente que aparece aqui também no livro: “Ah coitadinha, o outro é que a desviou, ela não é assim…”
Mas socialmente são mais penalizadas. Continuam a ser.
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E os homens e as mulheres traem pelas mesmas razões?
Eu diria que os motivos iniciais variam mais de pessoa para pessoa do que entre géneros. O que acontece é que a atração feminina não é só sexual, é mais afetiva. Ou seja, quando uma mulher se envolve por fora o risco de o casamento acabar é maior. E sobretudo se está insatisfeita maritalmente. Embora com o homem a atração seja mais física, depois, com o tempo, acho que não é só isso. Não acredito só em atrações físicas. Mas também conheci mulheres ao longo [do tempo de prática] clínica que tinham sucessivos engates por razões puramente sexuais, não estabilizavam em nenhuma relação fora do casamento, mas eram raras. Tal como conheci homens que também faziam o mesmo. Portanto, para as mulheres é mais afetivo, mas também é muito sexual. O que desencadeia é que é muito difícil dizer porque tanto pode ser um casal que está mal e há um ombro amigo que começa a servir de encosto, como podem ser as circunstâncias da vida, uma situação de stress, de estar fora de casa, entre outros.
No livro também fala nisso. Que a infidelidade não acontece só a casais que estão mal e pode acontecer a qualquer pessoa. E o outro leva com um balde de água fria porque não vê um motivo.
Sim, não percebe. E uma das coisas que acontece muito ao princípio, nas terapias de casal, nestes casos, é “explica-me por que é que isto aconteceu”. E muitas vezes não há explicação, de facto.
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A ocasião faz o ladrão?
É um bocado isso, e depois a clandestinidade é muito potenciadora. É o chamado “Amor às Três da Tarde” do célebre filme do Rohmer. Depois tem a pica, para usar uma expressão popular ou mais brejeira, [de andar às escondidas]. Aliás, isso era uma coisa que eu às vezes aconselhava aos casais, quando estavam um bocadinho desinteressados um do outro: marquem lá um hotel às três da tarde e façam de amantes.
Culturalmente, temos aquela imagem da amante como a destruidora de lares. Mas, há muitos anos, conheci uma senhora amorosa, uma pessoa normalíssima, com um ar muito digno, e a determinada altura fiquei a saber que era amante de um homem casado há 12 anos. E ela não era nenhuma bruxa, era uma pessoa decente, adorável.
E eu conheci um caso que durava há 40 anos. Há vários tipos de situações dessas, prolongadas. A mais frequente é aquela em que as duas pessoas são casadas e não querem romper os casamentos. É a mais frequente e a mais equilibrada. Ninguém chateia ninguém, encontram-se de vez em quando, lá fazem o que tem a fazer e pronto. E aquilo vai correndo e pode correr dezenas de anos. Depois há outra situação que também pode ter uma duração muito longa, mas que é mais rara, que é uma das pessoas está sozinha, mas não quer que a outra se separe porque não quer viver com ela: “Deixa-te lá estar sossegado com a tua mulher ou com o teu marido que eu não quero cá…”
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É uma forma de ter só o lado divertido das relações?
Sim, não querem cá chatices e criancinhas. Tive uma situação durante a pandemia muito complicada, que era um casal que tinha uma relação muito longa, já não me lembro quantos anos. Ela era solteira, ele era casado. Não sabiam nada um do outro, não tinham contacto fora daquela relação. Tinham os contactos um do outro, pouco ou nada sabiam da vida de cada um. Encontravam-se regularmente e um belo dia ele deixou de atender o telefone e depois passou a estar desligado.
Morreu?!...
Morreu de covid. Ela mexia-se bem no meio hospitalar e foi assim que ficou a saber, semanas depois. Há muitas situações muito longas e muito estáveis. São pessoas que eu acho que gostam muito uma da outra, conseguem passar tardes inteiras juntas, algumas até conseguem passar um fim-de-semana, arranjando uma desculpa qualquer. Depois conheci outras situações muito complicadas, em que os casais eram amigos.
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Isso faz lembrar um filme do Woody Allen…
Sim, casais amigos em que se davam os quatro, passavam férias juntos e dois deles eram amantes. Eu isso acho…não tenho nada que achar, não tenho que fazer juízos morais, mas acho um bocadinho perverso.
É uma traição dupla.
É quase como convidar a amante ou o amante para jantar lá em casa. E isso também acontece. Acontece de tudo.
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José Gameiro aborda infidelidade e relações em novo livro
Foto: DR
Quando eu era miúda, no final dos anos 80, início dos 90, dizia-se muito que as pessoas já não se comprometiam a sério nas relações, que não estavam dispostas a fazer cedências, que à primeira dificuldade saltavam fora. No outro dia, no comboio, ouvi uma senhora de 50 e tal anos a dizer a mesma coisa a uma miúda de 20 e poucos. Isto é verdade? Continua a ser verdade ou nunca foi?
Não é verdade. É engraçado isso porque, apesar das estatísticas, as pessoas quando casam o sentimento é igual ao do tempo dos meus pais: casam com vontade que seja para o resto da vida. É igual. E sofrem muito quando se separam, a maior parte das pessoas, mesmo aquelas que desejam separar-se, sofrem muito. Às vezes por causa dos filhos, mas não só. O livro que estou a escrever agora tem a ver com isso – uma relação entre um pai e um filho após uma separação. Quando há filhos e as coisas correm mal com os filhos, as pessoas sofrem ainda mais, como é evidente. As rupturas são sempre muito dolorosas e o luto às vezes é lento. Não só para a pessoa que foi deixada, como para a própria pessoa que se quis separar. Um dos erros que as pessoas cometem é quando se separam por causa de uma terceira pessoa e vão logo viver com ela a seguir. É um disparate.
Eu escrevi isso algures na margem do livro, que a protagonista devia ter passado tempo sozinha depois da separação.
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Ela tem uma casa dela, só que vai passar os fins-de-semana com o outro e quando está com ele, sente-se mal, porque não está com os filhos, depois volta para a casa da família, depois vai para a casa dela, depois vai passar o fim-de-semana com o outro.
É uma grande instabilidade. Faltava ali um período de nojo.
Sim, e acontece muito. “O que é que eu estou aqui a fazer? Tenho os meus filhos, devia estar com eles e estou aqui…”
É mais difícil lidar com a culpa quando há filhos. E no caso dela também, não havia nenhum motivo, o marido não a tratava mal, não havia zangas em casa, portanto aumentava o sentimento de culpa.
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Sim, não há nada. O que há é um mal estar dela que ao princípio não se percebe muito bem.
Uma insatisfação.
Sim, e a insatisfação, é um problema terrível. Não é uma depressão, é uma insatisfação. Muitos de nós passamos por fases de insatisfação e não percebemos porquê. E depois aparece este gajo. E mais para a frente há o problema da culpa de ela de não o ter tratado [a protagonista é médica oncologista e “o outro” será seu paciente durante pouco tempo, uma vez que ela deixa de o acompanhar quando se envolvem]. O livro também pretende ser um bocadinho didáctico, no sentido de dizer que os cancros do cólon começam como pólipos e que são perfeitamente curáveis. É dos poucos cancros que se a pessoa tiver cuidado, não morre daquilo.
José Gameiro lança livro sobre triângulos amorosos e infidelidade em Cascais
Foto: DR
Na apresentação do livro, a Anabela Mota Ribeiro disse uma coisa muito gira, a propósito de uma pergunta que lhe fez, durante uma entrevista…
Foi ela que me fez perceber a minha motivação para a terapia de casal. Comecei com a terapia familiar com o grupo inicial, fizemos agora 45 anos, o Daniel Sampaio e mais uns quantos, éramos oito ao princípio. Na altura era muito difícil ter casais, os casais não vinham, eram mais famílias. Depois começaram a aparecer e eu percebi que gostava mais de ver casais. Mas não fiz a ligação com a minha vida. Um dia, em conversa com a Anabela, na segunda entrevista que me fez, desboquei-me. Ela perguntou pela minha vida e eu contei a história dos meus pais, que é uma história completamente atípica. Os meus pais separaram-se quando eu tinha oito anos, portanto, no fim da década de 50. O meu pai apaixonou-se e saiu de casa e foi viver com a minha madrasta. Mas depois, passado um tempo, nós os quatro, eu, a minha irmã mais velha, que já morreu, e os nossos pais, saíamos juntos, íamos passear, jantar fora. E ele tinha a mulher dele e vivia com ela. Aliás, nunca casou com ela. Quando veio o 25 de Abril podia ter-se divorciado da minha mãe, mas não quis. E a minha mãe, quando ele morreu, ficou viúva formalmente, estavam separados há 30 anos. E nós não percebíamos nada daquilo, porque eles estavam separados, a única coisa que a gente sabia é que a minha mãe dizia “não podem dizer nada aos avós” – os pais dela, porque o meu avô odiava o meu pai. Achava que o meu pai era maluco, e o meu pai era maluco, de facto. E o meu pai chamava-lhe “O Senhor do Mercedes”, porque o meu avô era um gajo com dinheiro, aliás, sustentou a família durante uns anos, porque o meu pai foi muito irresponsável nesse aspecto financeiro. Só quatro anos depois, quando a minha avó morreu, é que a minha mãe ficou financeiramente autónoma quando recebeu a metade que lhe cabia da herança.
É uma história muito à frente do seu tempo.
Sim, uma história de separação muito atípica, muito fora de vulgar. Durante anos e anos, o meu pai, à noite, telefonava lá para casa a dizer à minha mãe que queria voltar. E a minha mãe dizia-lhe: “Vai viver sozinho durante uns tempos e depois a gente fala”. E ele vinha-me contar esta história, eu já tinha 17 ou 18 anos – durante a minha infância ele estava sempre a aparecer e desaparecer, mas depois normalizou-se e almoçávamos todas as semanas, eu ia à casa dele, conheci muito bem a minha madrasta, dava-me bem com ela, não adorava nem deixava de adorar, mas dava-me bem com ela – e ele dizia-me “eu não consigo viver sozinho” e eu respondia “ó pai, que treta, não consegue viver sozinho?!…” E a verdade é que ele nunca conseguiu largar a mulher, e nunca conseguiu resolver o problema com a minha mãe. E acho que foi melhor assim, porque ele e a minha mãe não tinham nada a ver um com o outro. A minha mãe era uma menina, filha única, tocava piano, falava francês, nunca trabalhou na vida, o meu pai era um ribatejano, não era muito machista, mas tinha aquela cultura ribatejana: mulheres, desde jovem, mulheres, mulheres, mulheres, mal casou, teve logo amantes e namoradas. O meu avô, quando ele se foi embora, caiu-lhe em cima que nem um leão. O advogado da minha mãe contra o meu pai foi o Azeredo Perdigão, que era só o melhor advogado de Lisboa da altura. O meu pai nem contestou. Ficou sem direito nenhum sobre nós.
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E foi só nessa altura que fez a ligação entre a sua vida familiar e o seu interesse pelos casais.
Foi. Nessa entrevista conto esta história, e a minha irmã, que ainda era viva, não gostou nada. “Então foste contar a história da família?!” Saiu. É que foi mesmo isso, saiu. E percebi a minha atração pelos casais, porque depois daquilo que eu tinha vivido, eu acho que para mim era tudo... Tudo era possível nos casais. E isto passou-se numa altura em que não existiam coisas destas. Lembro-me de irmos os quatro às Festas de Santo António, quando os meus pais já estavam separados há que tempos, e de termos encontrado um casal amigo e eles ficaram a olhar com cara de parvos, a perguntar “mas o que é que se passa aqui?!” Porque naquele tempo as coisas não funcionavam assim. E a minha mãe gostou do meu pai até o fim da vida. Ele morreu cedo, teve um AVC grave, em 1981 ou 82, e ficou logo demenciado, foi viver para a quinta dos pais dele, ali em Torres Novas e ficou lá até morrer, com a minha madrasta. Morreu cinco anos depois. E a minha mãe fez um luto.
E por que é que as relações terminam?
Está a falar das relações em geral ou das relações fora do casamento?
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As relações em geral. Os casamentos, as uniões.
Por insatisfação conjugal. Há uma pessoa – às vezes são as duas – que começa a ficar insatisfeita pelas mais variadas razões, porque a outra pessoa não lhe dá grande eco de que gosta dela, não exprime da forma que ela gostaria o amor que tem por ela, porque é muito chata e passa a vida a discutir. O fator de pior prognóstico nas relações conjugais, isto está muito estudado, é a crítica sistemática. É um fator de muito mau prognóstico quando um casal não consegue sair da crítica sistemática. Eu costumo dar sempre o mesmo exemplo, que é um exemplo que os casais aceitavam muito bem para tentar controlar a crítica. Imagine, eu deixo esta coisa dos cigarros aqui [exemplifica com uma máquina de tabaco aquecido], e a minha mulher não gosta disto aqui por qualquer motivo. Tem três hipóteses. A primeira é não dizer nada, tirar isto daqui e pôr noutro sítio. A segunda é dizer, “ó querido, já te disse não sei quantas vezes, não deixes isso aqui que fica feio”. A terceira, que é mais complicada, e é complicada se for repetida muitas vezes, é o ataque à pessoa: “Tu és uma besta! Eu já te expliquei várias vezes que não quero isto aqui! És uma besta, não percebes nada, não ligas àquilo que eu sinto nem àquilo que eu digo…” Portanto, isto começa a atacar a pessoa, e ninguém aguenta isto muito tempo. Se, antigamente, os casamentos suportavam isto, porque eram muito baseados na família, hoje em dia os casamentos são muito baseados na felicidade. E, portanto, a pessoa começa a sentir-se infeliz na relação. Num primeiro momento começa a pensar para si própria: “Por que é que eu tenho que aturar isto? Eu não consigo dar a volta a isto. Eu se calhar ainda tenho hipóteses de sair disto e arranjar uma relação que me dê satisfação.” E esta fase dura muito tempo. E só depois é que começa a falar com outra pessoa. O casamento é, neste momento, um dos locais onde as pessoas mais procuram a felicidade. Pode haver, naturalmente, felicidade com os filhos, com a família, com o trabalho até, etc. Mas a relação conjugal adquiriu uma dimensão de tal maneira importante para a felicidade pessoal que não tinha antigamente. E é um dos fatores que leva as pessoas a separar-se. E o aumento da esperança média de vida faz as pessoas pensar que ainda vão a tempo de encontrar uma relação que as satisfaça.
José Gameiro fala sobre infidelidade, casamentos e aspetos das relações em Cascais
Foto: DR
E o casamento é um bom sítio para encontrar a felicidade?
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Para começar, amor é uma coisa, casamento é outra. Eu, sobre o amor, não trabalho. Não sei trabalhar sobre o amor. Sei trabalhar sobre a forma de pôr o amor em prática, ou seja, a relação conjugal. A paixão vai desaparecendo, de vez em quando tem momentos em que volta a aparecer, e também é importante que os casais consigam gerir isso. Agora, a conjugalidade dá cabo de tudo. É muito fácil você começar a atacar a pessoa com quem vive por coisas que a irritam. Dou sempre o exemplo do cabaz de Natal. Você casa com um cabaz de Natal. Cá à frente tem caviar, champanhe, patês bestiais. E atrás tem atum e sardinha em lata. Com o tempo, você vai percebendo que não é só o patê e o caviar que lá está. Também está o resto. Você leva o pacote todo. Portanto, ou você consegue aceitar que também tem de comer o atum, de vez em quando, ou é muito complicado. Porque há fases de seca nos casais e essa seca não tem nada a ver com deixar de gostar do outro. São fases em que a relação não é interessante. Mas ninguém se separa à primeira. Isso é um mito das revistas. Pode acontecer uma coisa traumática, já apanhei casais que se separaram ao fim de seis meses ou um ano. Mas é muito pouco frequente. Se olharmos para as estatísticas, é a partir dos 10, 15 anos que as coisas começam a complicar-se.
Li uma crónica sua em que falava sobre um casal e dizia ter ficado com a noção que, se tivessem vindo mais cedo, talvez tivesse conseguido que não se separassem.
Pode ser presunção minha ou até alguma megalomania patológica. [risos] Mas há alguns casais que tive a sensação que se tivessem chegado mais cedo e eu tivesse conseguido pô-los a negociar as suas diferenças, talvez tivessem recuperado. Porque o casamento também é uma negociação permanente de diferenças, sobretudo ao princípio. E há coisas que são negociáveis, e coisas que não são negociáveis. E você tem que aprender a viver com a diferença. Quando se vive com outra pessoa, em grande proximidade, as diferenças são muito notórias e podem ser muito perturbadoras. E depois, você não casa só com uma pessoa, casa com a família.
Há pouco, quando falei na Anabela Mota Ribeiro, era sobre isso que queria perguntar-lhe, porque numa entrevista com ela disse que o insucesso das relações tem muito a ver com as famílias de origem.
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Sim, porque você traz um modelo de família. Hoje em dia, temos maior capacidade de nos autonomizarmos em relação ao nosso modelo de origem, mas não completamente. E depois temos a família muito presente na maior parte dos casos. E a família e os cortes, ou tentativas de cortes, com a família do outro são talvez o segundo fator de maior risco. Você corta com a família do seu marido por qualquer motivo – [e às vezes até se compreende] porque há sogras que são horríveis, os sogros também não são muito bons, mas as sogras são piores. Chega à sua casa e diz: “Ó menina, isto é maneira de ter a casa, nesta desarrumação?!” Começa a intrometer-se e depois dá chatice. As famílias de origem podem ter um papel muito negativo nas relações conjugais porque uma pessoa fica entalada entre duas lealdades. Tive situações de pessoas que durante anos estiveram de relações cortadas com a família de origem, por pressão do cônjuge. Não só atingindo a elas, como atingindo os filhos, ao proibi-los de estar com os avós. Imagine o que isto faz a um casal. “Não, a tua família não pode vir cá à casa. São uma cambada de bestas. Não põem cá os pés. Natal? Não há Natal para ninguém! Tu queres ir ao Natal lá a casa, mas não vais. E eles também não vêm cá.” Não só impõem que não vão eles próprios como impõem ao outro que ele não vá. As famílias podem ser terríveis.
E como é que uma pessoa se defende disto?
A primeira fase, mas nem sempre se consegue, é explicar à família: “Eu agora tenho uma família e preciso de autonomia. Eu gosto muito de vocês, vocês gostam muito de mim, mas não podem interferir desta forma.” Esta é a primeira fase. Mas às vezes é muito complicado, porque não é possível controlar as famílias de origem. Nunca mais me esqueço de um casal que acompanhei, eles viviam numa casa cedida pelos pais dela e o senhor, o sogro dele, pai da rapariga, entrava lá em casa de chave. E o marido explicava à mulher: “Ouve lá, a casa é do teu pai, mas não se entra de chave numa casa onde não se vive, e onde nós podemos estar, enfim, como estivermos.” E ela não era capaz de explicar ao pai. Não tinha coragem para falar com o pai. Depois lá se conseguiu uma negociação, mas quando se apanha um sogro destes, ou um pai destes, ou uma mãe destas, é muito complicado porque não se controla.
José Gameiro fala sobre infidelidade e casamentos
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Isso é uma situação tão absurda que uma pessoa nem sabe como a abordar. Porque devia ser óbvio que o senhor não pode entrar sem bater.
E há pessoas que continuam a ser uma espécie de filhos-crianças. Não conseguem falar com os pais enquanto adultos. No fundo é um processo de autonomização que se vai fazendo. Você gosta dos pais na mesma, mas tem de se autonomizar. E é a mesma coisa quando se escolhe um cônjuge ou uma cônjuge, ou um namorado ou uma namorada de quem os pais não gostam. E não têm que gostar, mas têm de se dar bem. Senão a vida é um inferno. Trabalhei muitos cortes de relações familiares e, às vezes, quando se conseguia que houvesse um encontro, através de tios e tias, terceiras pessoas, e era sempre um risco porque nunca se sabia o que é que ia acontecer, eu dizia sempre: “Há uma coisa que você não pode fazer, que é voltar a discutir o que originou isto.” Não se discute. É agir como se se tivessem visto na véspera. Se voltarem a discutir o que aconteceu, volta tudo ao mesmo. Ninguém muda de argumentos.
É interessante isso porque hoje em dia a comunicação é vista como a pedra angular dos relacionamentos. Falar, pôr as cartas na mesa, pôr tudo em pratos limpos.
Nem sempre é bom.
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Nem na família, nem nos casais?
A comunicação é uma faca de dois gumes. Tem de se falar, obviamente. Também dou sempre o mesmo exemplo. Suponha que, um dia, a minha sogra faz qualquer comentário negativo à minha mulher sobre mim e ela vem dizer-me. Para quê? Em nome da verdade, da tal “verdadaça”? “Ah, porque tenho obrigação de dizer.” Não tem nada. E quando os casais se chateiam, é muito mais importante um gesto de aproximação não verbal do que uma conversa, porque a conversa feita em cima do conflito ou passado pouco tempo, dá origem a voltar ao mesmo, ou pior. Muitas vezes, passa um tempo e eu digo aos casais: "Tentem fazer isso não verbalmente, façam uns gestos de aproximação e não voltem a repassar as experiências negativas." A não ser que sejam coisas muito importantes. Mas a maior parte das coisas não são importantes.
Há algum sinal, quando as relações começam a correr mal, que ajude as pessoas a identificar que é a altura certa para procurarem ajuda?
Há dois tipos de situações. A da infidelidade, que é óbvia, é quando se descobre. E depois há aqueles casais em que o problema é um mal-estar provocado pela crítica sistemática. E há um sinal, que não é universal, mas é aquela sensação... “Eh pá, não me apetece ir para casa. Não me apetece ir passar o fim-de-semana não sei onde a fazer não sei quê. Eh pá, férias, agora, com este gajo ou com esta gaja... Não me apetece nada.” Quando isto começa a acontecer, não é bom.
Conversa com a escritora norte-americana, que esteve em Portugal a propósito do Fólio (Festival Literário Internacional de Óbidos) e que apresentou o seu livro 'Casa dos Sonhos', uma autobiografia que narra um relacionamento tóxico e abusivo que viveu na casa dos 20.
“Naquelas idades, não somos apaixonados nem amamos. O máximo que conseguimos fazer é gostar muito. E, na verdade, chega perfeitamente e é honesto.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.