"Ó menina, livre-se desse rapaz, que ele só lhe vai dar problemas." Foi um taxista que mo disse, não foi o meu pai. Nem um tio, nem um irmão, nem uma amiga chegada. Foi um taxista, um desconhecido. "A menina é melhor que isto." Vínhamos do Bairro Alto, era madrugada, já muito tarde, o sol devia estar quase a nascer. Íamos para a Graça, que era onde o Miguel morava, e estávamos os dois muito alterados. Tão alterados que ele quis ir à frente, ao lado do condutor, e eu fui sozinha atrás, com o cinto de segurança posto, a tentar não cair para o lado a cada curva. O taxista não gostou: teve de ajustar o banco do pendura, puxá-lo para trás, tirando espaço ao banco traseiro. "Não pode ir atrás?", perguntou, meio maldisposto. "Hoje quero ir à frente", disse o Miguel, muito bêbado, com a língua toda entaramelada, e o homem lá disse que sim, para não complicar.
Ao longo do caminho, a implicância do Miguel com o taxista foi de tal ordem, que começaram a discutir - mas a discutir bravamente. O taxista a dizer que o levava à polícia, às tantas, e o Miguel a dizer-lhe que, se lhe pusesse as mãos, não havia polícia que lhe valesse. Não sei por que discutiam, eu estava demasiado alcoolizada. Tudo o que retive são flashes, passagens rápidas, imagens soltas. Só sei que, às tantas, com os dois já muito irritados, muito alterados, o Miguel deitou a mão ao travão e o carro fez uma espécie de meia-volta ali mesmo, a seguir à Sé, nas Portas do Sol - lá fora, uma vista linda, a manhã a despontar, ainda só em camadas vermelhas de luz no horizonte. Também lá fora, o taxista com um ferro na mão a perseguir o Miguel, e o Miguel a rir-se, a rir-se, "ó velho, se eu te chego com um pé, arranco-te a cabeça", e ria-se, ria-se. Saí do carro, atarantada. O homem percebeu que não ia poder com ele, com o Miguel. E foi então que me disse "livre-se desse rapaz". Disse-o com resignação e, acredito eu, do fundo do coração.
Esta história que acabei de contar aconteceu à segunda ou terceira vez que eu e o Miguel saímos juntos. Querem falar de red flags? Há lá tempo e espaço para red flags quando estamos no começo da paixão. O Miguel não é criminoso nenhum. É um tipo com raça. Um rapaz esperto, com aquela esperteza da rua. Tem o charme das crianças reguilas, o encanto dos gangsters com bom coração. Há quem diga que tudo isto é romantismo, mas eu conheci-o de perto, eu conheço e amo, mesmo à distância, e sei bem que uma pessoa é uma pessoa, e que há pessoas que, com todos os seus erros, com todos os seus males, têm no fundo de si uma bondade e um coração de fazer inveja àqueles bem-comportadinhos, a todos os obedientes e conscientes, e certos, e certinhos. O Miguel é um sopro da natureza e, desde que o conheço, sempre foi. Mas, sim, o taxista tinha razão: dá problemas.
Na noite que mudou as nossas vidas, vi-o fazer o que nunca tinha visto. Em plena rua, perante uma ameaça pesada, largou o copo que tinha na mão e deu dois pulos, como se estivesse a aquecer. Eles, os outros, eram quatro; o Miguel estava sozinho, os amigos estavam dentro da discoteca, só eu estava cá fora - e ele disse-me "esconde-te aí, não te aproximes". A seguir a isso deu os dois pulos, como se tivesse molas nos pés. Depois deu um terceiro, e ao terceiro rodopiou no ar, fez um pontapé rotativo digno de um bailarino, de um mestre de taekwondo, de um jovem herói de Shaolin: que maravilha, que perfeição, que elegância - e que medo. Um dos rapazes, um dos outros, avançou para ele com um copo na mão em riste, pronto para o furar. E o Miguel repetiu o gesto: um rotativo no ar de tal maneira perfeito que ia arrancando a cabeça ao outro. E o outro, coitado, incapaz de suster o golpe, caiu, redondo e indefeso. Bateu com a cabeça no lancil de passeio. Bateu com a nuca. Ficou ali. Morreu. E enquanto os amigos gritavam, o Miguel deitou as mãos à própria cabeça e abeirou-se do sujeito que segundos antes era adversário e teve pena dele. Os outros, claro, fugiram.
A polícia não demorou a chegar e, quando chegou, lá estávamos nós. O Miguel não se mexia dali. O rapaz estava morto e ele sabia. E não arredava pé, como se não aceitasse aquele destino, como se aquele desfecho continuasse a dar erro na sua compreensão. E ainda continua a dar erro na minha. Porque raio foi o outro aproximar-se do Miguel, afrontá-lo, acossá-lo, atacá-lo? Mesmo depois daquela demonstração do que ele era capaz de fazer? Porquê? Se alguém visse um tipo de arma na mão ou com um pitbull pronto a atacar, alguma vez avançava? Um homem como o Miguel, grande, atlético, a fazer um rotativo no ar, devia ser aviso suficiente para qualquer um ficar quieto - não digo que o rapaz merecesse morrer, ninguém merece esse desfecho, só digo que devia ter tido mais cuidado. O Miguel fazia-os saber ao que iam.
Nessa noite, o Miguel foi preso. Namorávamos há pouco mais de três meses, estávamos ainda na fase luminosa da descoberta e do apetite um pelo outro. Foi um tempo maravilhoso em que fomos certamente felizes. O incidente acabou por nos quebrar e, inevitavelmente, por nos separar. Ele ficou preso, em preventiva, mas todos sabíamos que acabaria por ser condenado. Não havia volta a dar: o rapaz tinha morrido, ele tinha-lhe batido, havia testemunhas, ele próprio tinha admitido a culpa. Nem ninguém se lembrava já da origem do confronto, do que é que tinha deflagrado aquela zanga estúpida, que acabou por ter um final trágico e irreversível - para todos. Nestas coisas, não é só quem morre que não tem salvação. Fica tudo por salvar. Quando ele foi levado, com algemas e as mãos atrás das costas, não me levaram também a mim. Fiquei para trás, estava em estado de choque. Não sei se nos despedimos, sequer.
Mas eu tinha de ver o Miguel. Quando lhe apareci à frente, três meses mais tarde, ele ficou confuso. Até então, achava que nunca mais me ia ver. E eu disse-lhe "Miguel, estou grávida". Até eu, ainda hoje, fico surpreendida com esta frase, com as palavras a saírem-me da boca, assim, sem explicações, a dizer exatamente coisas concretas e inesperadas. "Estou grávida e o bebé é teu" - e isso eu sabia, porque eu não estive com mais ninguém desde muito antes de nos termos conhecido. Nessa altura, ainda não se via a barriga. Mas ele, o Diogo, já estava cá dentro. E eu peguei na mão do Miguel e pousei-a sobre a minha pele, e eu acho que ele, à sua maneira, sentiu o bebé lá dentro, e sentiu que era o seu filho.
Haver uma criança muda tudo. O Miguel foi condenado a 14 anos por homicídio com impedimento de suspensão da pena até 8 anos cumpridos. Já lá vão sete anos e meio. O nosso filho, o Diogo, tem sete. Já conhece o pai, claro. Mas demorou até que eu o levasse ao estabelecimento prisional para que visitasse e conhecesse o Miguel. O convívio na cadeia, durante as visitas, fez-me conhecer melhor o Miguel, muito para além daquela figura da rua, do reguila lutador e encantador que um dia se cruzou com o azar e com o destino. E comigo. E agora, que faltam poucos meses para que ele tenha a oportunidade de vir cá para fora juntar-se à família inesperada, que o espera desde o primeiro dia, sinto mais amor por ele do que alguma vez senti.
*se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.