Histórias de Amor Moderno: “Os rapazes vêm e vão, e vão e vêm, o mundo não para só por causa de um deles”

“Uma pessoa quando fica e a outra se vai embora engole uma montanha de ressentimentos.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB / O Grande Showman
09 de março de 2024 às 07:00 Maria Olívia Sebastião

Mensagem de um número privado: "Cíntia Passarola, é para avisar que o circo chegou à cidade." Só há uma pessoa à face da Terra que me chama assim, "Cíntia Passarola". O Igor. O Igor é uma pessoa do passado. E quando diz que "o circo chegou à cidade" isso não é só uma forma de dizer que está por aqui. É mesmo em sentido literal. 

Cresci numa família de artistas circenses. A minha mãe era contorcionista e partenaire do meu padrasto nos seus números de ilusionismo - "de magia", corrigia-me ele, "porque iludir o olhar das pessoas é uma forma especial de magia". Ele era também domador de leões. É normal nas pequenas companhias de circo que as pessoas se multipliquem nas performances e se distribuam nas tarefas. O meu padrasto hoje em dia é o mestre de cerimónias, além de tratar da bilheteira e da contabilidade. Já não consegue andar de banco e chicote em punho a dar ordens aos grandes felinos que, como ele, vão ficando mais velhos e tendo menos genica. A minha mãe morreu há alguns anos. De doença prolongada, como costumam dizer nas notícias. Foi de cancro. Nos pulmões. Nunca fumou até aos trinta e tal anos. Quando se lesionou na anca e foi obrigada a deixar de parte a nobre arte de contorcer o corpo, deixou de se cuidar. Ganhou peso, começou a beber e, mais tarde, a fumar. Só que era como se fumasse por todos os anos em que nunca tocou num cigarro, com uma avidez quase compulsiva, sôfrega, uns atrás dos outros. Quando a doença se declarou, não houve surpresas. O meu pai não sei quem é, nunca o conheci.

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Foi num ambiente de saltimbanco que eu cresci. De terra em terra, a dormir em roulottes, tudo atrelado, a caravana pela estrada fora, uma semana aqui, mais duas ali. As férias eram os intervalos entre espetáculos. Quanto maior o intervalo, maior a aflição, porque, ao contrário do que se diz, sem palhaços não há dinheiro. E sem dinheiro não havia mais nada. Cresci com o Igor, esse rapazinho que eu conheço desde sempre. Um ano mais velho que eu, o filho do meu padrasto só não é meu irmão porque não partilhamos o mesmo sangue. Mas nunca nos sentimos irmãos, apesar de termos sido criados juntos, desde que o meu padrasto veio para a companhia e conheceu a minha mãe. Dizia ela que se apaixonaram logo ali. Semanas depois, guardava-lhe as pombinhas brancas nos bolsos secretos da aba-de-grilo e os lenços infinitos no fundo da cartola.

Eu e o Igor vivíamos em liberdade. Brincávamos juntos, corríamos, andávamos pelo meio dos animais - menos dos felinos, claro -, trepávamos, rebolávamos, ajudávamos os crescidos nas funções deles. Éramos os melhores amigos e a maior companhia um do outro. À medida que íamos crescendo e ganhávamos força, começámos a subir aos trapézios e, com a rede lá em baixo, brincávamos, baloiçando de um lado para o outro sobre toda a pista. E depois fomos fazendo brincadeiras mais elaboradas em que passávamos de um trapézio para o outro e em que nos atirávamos para a rede, como se voássemos e, depois, numa cambalhota acrobática, aterrássemos com a ligeireza dos pássaros. Quer dizer, o Igor aterrava como os pássaros. Eu era menos graciosa, e era por isso que ele me chamava passarola, como aquela desenhada por Bartolomeu de Gusmão: pesada, redonda e movida a remos. "Salta, Cíntia Passarola, dá aos remos e voa", gritava-me ele, brincando, mas sem gozar. Era a sua maneira de me incentivar. E foi assim que fomos concebendo o nosso próprio número. Tinha 13 anos e ele 14 quando o estreámos. Fez grande sucesso enquanto durou.

A proximidade entre nós, a intimidade, a confiança e as horas que passávamos juntos em exercícios, a puxar pelo físico, tudo isto numa idade em que ambos íamos despertando para o desejo e para a sexualidade, começou a dar-nos problemas. Obviamente, sentíamo-nos muito atraídos um pelo outro. Só que nunca o verbalizávamos, simplesmente não falávamos do assunto, levávamos a vida para a frente, um dia após o outro, e fingíamos que nada se passava. Até que um dia, a meio de um exercício, nos beijámos mesmo. Com fome. Quando a boca procura com cegueira e apetite o objeto diante dela e esse objeto se devolve esfomeado, torna-se muito difícil de abrandar, quanto mais de travar. Só que estávamos em cima da rede, depois de um treino de aterragem com salto mortal para a frente. Estávamos à vista de todos. E alguém gritou "hei!" e então foi como se a realidade tivesse congelado de repente para se fraturar em pedaços pequeninos logo de seguida.

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Envergonhados, descemos da rede, cada um para o seu canto. Só que, mais cedo ou mais tarde, o meu canto iria ser o canto dele, já que vivíamos juntos. O pai dele e a minha mãe tiveram, essa noite, uma conversa séria e dura connosco. Que não podia ser, que éramos como irmãos, que estas coisas eram perigosas. Nós não éramos irmãos, tentei eu argumentar. Não quiseram saber, era demasiado esquisito. Mas então e o que sentíamos? Não importava? Enquanto eu falava e gritava e chorava, o Igor permanecia quieto, como se estivesse envergonhado. Ou então como se se quisesse vingar. Não sei bem. Só sei que estava fechado na sua cabeça, com os seus pensamentos sérios. A convicção das suas ideias descia-lhe cara abaixo, nas pontas dos lábios, nos ângulos retos dos sobrolhos, nos olhos semicerrados que quase lhe saíam do rosto como as línguas dos batráquios.

Eu ia fazer 15 anos daí a pouco, o Igor tinha os 16 acabados de fazer. Viajámos para sul e acampámos junto a uma cidadezinha do sotavento algarvio. O Igor disse-me "vou-me embora, não quero mais continuar aqui, não consigo". Ele tinha ambições, sonhos. Queria ser trapezista do Cirque du Soleil, queria fazer testes, audições, experiências, queria ter aulas, queria aprender, experimentar e viajar. Eu, uma passarola, só queria fazer o nosso número humilde tão bem quanto conseguisse. Não tinha os sonhos que ele tinha, muito menos a sua habilidade, o seu físico, a sua leveza. Mas não aceitei que ele me quisesse deixar. "Não consigo continuar aqui, Cíntia", disse-me. Explicou que gostava de mim, jurou-me que me amava, e que isso ainda dificultava mais as coisas, já que os nossos pais nunca nos deixariam em paz.

Na manhã seguinte à conversa que tivemos, subimos aos trapézios e começámos o treino. Caí mais de uma dúzia de vezes. Não tinha forças. Não tinha genica. Interrompemos o treino, o Igor estava muito frustrado, chateado. Nem falou comigo. E eu só conseguia chorar, não fazia mais nada. A minha mãe, sábia como só as mães, deixou-me sossegada e, quando vinha ao pé de mim, tentava consolar-me. "Não chores, Cíntia, acalma-te. Os rapazes vêm e vão, e vão e vêm, o mundo não para só por causa de um deles", dizia, com voz funda e grave, muito tranquila. Sorria, às vezes, provavelmente lembrando-se dos seus próprios desgostos. Ao fim da tarde, ouvi uma mota aproximar-se da roulotte, "Cíntia", gritaram lá de fora, "Passarola, sai daí". Era o Igor. Saí a correr, saltei para a mota, abracei-me a ele. Arrancámos dali e fomos, estrada fora. Nunca vou esquecer-me da sensação do vento nos cabelos e no rosto, eu com os braços apertados na barriga dele. Parámos muito tempo depois, e depois de muitas voltas para trás e para diante, como se gastássemos os quilómetros até ficarmos vazios e cansados. Estávamos no pinhal de Monte Gordo. Beijámo-nos como da primeira vez e depois amámo-nos com o corpo todo, pela primeira vez, eu e ele. Foi ali, com o marulho a remexer delicadamente o silêncio da noite, que os nossos suspiros e respirações mais profundos aconteceram como nunca antes tinham acontecido. 

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O regresso ao acampamento foi muito difícil. Eu estava desconfortável, magoada, diferente. E estava, ao mesmo tempo, ausente, sonhadora, perdida num momento lá atrás, com as ondas a ir e a vir, a ir e a vir. E a minha mãe agarrou-me pelos cabelos quando desmontei da mota, eu tinha gotas de sangue nas meias e por dentro das pernas, e chamou-me nomes. O meu padrasto pegou no Igor pelo pescoço. Não sei o que lhe fez. Acho que lhe bateu.

No dia seguinte, o Igor partiu, como dissera que ia fazer. E eu fiquei. Uma pessoa quando fica e a outra se vai embora engole uma montanha de ressentimentos tão grande que era capaz de construir com eles um continente inteiro, todo novo, de raiz. De vez em quando, o Igor mandava-me mensagens, mas eu não lhe respondia. Só muito mais tarde me autorizei a ler as suas mensagens, mas depois apaguei-as todas, apaguei-lhe o número, tentei desfazer-me dele e das minhas memórias. As mais belas. As mais dolorosas. E a vida andou para a frente. 

Alguns anos mais tarde, já eu adulta, o meu padrasto deixou os leões. E chegou o Aparício - o nome dele é João -, o domador das grandes feras! Um doce. Um homem bom. Dez anos mais velho que eu, soube olhar para mim e tomar conta do meu coração desfeito. O Aparício trabalha ainda, além dos leões, os malabares e faz também truques de ilusionismo - "de magia", diz ele, e faz-me lembrar da minha infância. Ficámos juntos. Tenho por ele um amor bom, distinto. Não aquele amor cheio de fogo, de paixão e de explosões no ar. É o contrário. É um amor pacífico, sossegado, quase silencioso. Diria que sou feliz, até.

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"Estou no sotavento com a minha companhia de circo. E já vi que a tua está por aqui também." As mensagens do Igor continuaram a chegar. Os verões no Algarve são assim, há espaço e público para todos, as companhias encontram-se muitas vezes nas mesmas zonas. E nós coincidimos ali, no mesmo sítio onde há mais de vinte anos fugimos de mota para o pinhal e guardámos para sempre o barulho do mar, devagarinho, a deixar-nos cicatrizes no coração. "Achas que te posso ir ver?", perguntava ele na mensagem. "Claro que sim", respondi-lhe, pela primeira vez em muitos, muitos anos. "O bilhete custa 15 euros. Ainda não esgotou."

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