Entrei no metro, a carruagem não estava cheia, havia pessoas soltas, dispersas. É nestas ocasiões que mais gosto de andar de metro, quando é possível notar as características que distinguem as pessoas umas das outras, os seus detalhes. Quando as carruagens se enchem e as pessoas são demasiadas para o espaço existente, perdemos individualidade. Tornamo-nos pedaços indistintos de uma multidão uniforme em que as diferenças são apagadas pela impressão de que somos apenas muitos. As nossas formas e feitios diluem-se, ninguém se olha nos olhos, ninguém tem rosto, tal como ninguém tem tempo para reparar nos outros ou para pensar nisso. Assimilados pela enchente de gente, transformamo-nos na entidade genérica As Pessoas.
Nessa tarde sossegada de princípio de outono, sentei-me calmamente num dos cantos da carruagem e mais ninguém se sentou no mesmo núcleo de quatro bancos. Noutros tempos, teria aproveitado para pôr os pés em cima do assento da frente, mas deixei de o fazer desde que uma senhora muito mais velha me abordou com delicadeza e me repreendeu com educação, “o banco onde a menina põe os pés é o mesmo onde outras pessoas hão de sentar o rabo”, e sorriu para mim, talvez com bondade. Serviu-me de antídoto para o impulso.
Entre as pessoas que se espalhavam pelos assentos da carruagem, havia algumas que se distinguiam. Gosto muito de reparar em quem lê, tento adivinhar-lhes as leituras quando, obstinadamente, escondem as capas dos livros e os títulos. Uma rapariga, talvez de 17 anos, era a única pessoa a ler um livro em toda a carruagem. Não fui capaz de descortinar o título, mas consegui ler o nome da autora, Mieko Kawakami. Fiquei curiosa. Tomei nota. Trago sempre comigo um caderno de bolso, de capa dura, e uma esferográfica clássica, oferecida pelo meu pai quando entrei para a escola, há muitos, muitos anos.
Das personagens que compunham a carruagem durante a curta viagem entre duas estações, a que mais se destacava era, no entanto, um rapaz de cabelos compridos que não tinha nada nas mãos nem nos ouvidos que usasse para distrair: não estava a ouvir música, não olhava para o telefone, não folheava um jornal ou uma revista. Ia simplesmente absorto e, de vez em quando, olhava fixamente para um determinado ponto, chegava mesmo a sorrir como se estivesse a reagir à presença de alguém ou de alguma coisa.
A forma como ignorava o mundo em redor e se dedicava apaixonadamente àquilo que mais ninguém conseguia ver deixou-me intrigada. Notei que ia mexendo as mãos como se estivesse gesticular em direção à entidade ou ao que quer que fosse que estava a ver - ou a imaginar. Presumi que o fizesse de forma consciente, nada impulsiva, uma vez que parecia conter-se nos gestos e nas expressões faciais, como se soubesse que alguém o estava a observar, ou se temesse que o achassem maluco por estar a comunicar com o vazio.
Quando chegou à estação dele, saiu e eu fiz questão de sair atrás dele, para tentar descobrir um pouco mais. Deixei que ele ganhasse algum avanço, para que não desse pela minha presença. Não queria que achasse que o estava a perseguir. Em bom rigor, estava a persegui-lo, sim, mas há duas notas importantes a esse propósito: primeiro, não costumo perseguir pessoas; segundo, estava a segui-lo, mas não para o apanhar ou para lhe fazer mal, o que, tecnicamente, na minha opinião, não constitui uma verdadeira perseguição. O que me motivava era a curiosidade, não um desejo de o apanhar ou qualquer outra missão cuja finalidade fosse essa.
Depois de algumas ruas e esquinas, atravessando esplanadas, bancas de venda de frutas e flores, e outros obstáculos que o bairro tem disponíveis para nos atrapalhar a vida, acabei por perder de vista o rapaz. Talvez lhe tivesse dado demasiado avanço, permitido que se distanciasse mais do que eu conseguia recuperar. Fosse qual fosse o meu erro, este era apenas mais uma demonstração de que falo a verdade quando digo que não costumo perseguir pessoas: o meu falhanço atesta a minha inexperiência.
Dei meia volta para retomar o caminho por onde viera e regressar à estação de metro, mas, ato contínuo, esbarrei contra o peito de alguém. “Porque é que me estás a seguir?” Era o rapaz que olhava para o vazio e comunicava com o invisível. Não consegui responder. Fiquei assustada. “Vá, diz lá. Quem é que te mandou?” Ele disse isto e na minha cabeça começou imediatamente a tocar uma canção dos Nirvana, “just because you’re paranoid, doesn’t mean they’re not after you”. E então ri-me, porque achei piada ao meu pensamento, que foi logo escolher essa música.
“Estás a rir-te para quem?” Foi então que percebi que estava inadvertidamente a fazer o mesmo que ele fazia na carruagem de metro. “Espera, eu posso explicar. Podemos sentar-nos, tomar um chá, ou um café, conversar um pouco?” Olhou-me como se a proposta fosse altamente absurda, mas, contudo, sendo a única possibilidade em cima da mesa, resolveu aceitar.
Sentámo-nos. Expliquei-lhe que o vira no metro, que parecia estar a comunicar telepaticamente com uma entidade invisível, com qualquer coisa paranormal; contei-lhe que reparei nos gestos contidos e nos lábios franzidos, nas caretas subtis e nas mudanças de expressão, como se na cabeça dele decorresse mesmo uma conversa silenciosa com a dita entidade. Ele ia acenando que sim com a cabeça, não contrariou nada do que eu disse. Na verdade, parecia ir confirmando toda a minha descrição e as minhas suspeitas. “Já acabaste?”, perguntou por fim. Eu disse que sim e fiquei à espera. “Ok, vou contar-te o meu segredo.”
Falava com uma voz profunda, grave e baixa, quase sussurrada. Possivelmente, não queria que outras pessoas ouvissem a nossa conversa, muito menos a sua revelação. Contou-me que tinha uma espécie de poder sobrenatural - “que muitas vezes mais parece uma maldição, acredita” - que lhe permitia contactar pessoas que já tinham morrido e com quem se tinha cruzado na vida. Familiares, colegas de escola, amigos perdidos, uma namorada que perdera num acidente de bicicleta. Interrompi-o, “importas-te que peça uma cerveja?” Precisava mesmo de beber qualquer coisa que me ajudasse a digerir e a acalmar, tudo aquilo era demasiado surreal e, até, um bocadinho assustador.
“Quando me viste no metro, estava a conversar com essa minha namorada”, disse ele. “Nem tudo é mau nesta minha condição. Por exemplo, permite-me manter esta relação, apesar de todas as dificuldades.” Notei que ele fez um esforço para não se rir. “Como assim?”, perguntei. “Oh, sabes que as relações à distância não são fáceis de manter”, disse ele, “e ela está sepultada em Bragança.” E então riu-se à gargalhada. Fiquei sem reação, sem perceber nada do que estava a acontecer. Fui sorrindo, meio perdida, e perguntei-lhe se estava tudo bem. Na verdade, só estava à espera que se acalmasse para me explicar o que se passava - ou isso, ou eu iria embora, porque tudo estava a ficar demasiado estranho.
Quando, por fim, parou de rir, contou-me que tudo o que me contara anteriormente era uma absoluta invenção e que só quis ver a minha reação, pois tinha reparado em mim no metro, e que soube desde o primeiro instante que eu estava a segui-lo. Depois, explicou-me que, às vezes, fazia aquilo que eu o vira fazer: expressões, gestos, certos dias chegava mesmo a dizer uma ou outra palavra, ou até frases - mas porque se tratava de textos que imaginava e ideias que lhe surgiam; para não perder essas ideias e até para as explorar, ensaiava as situações até chegar a casa.
Chama-se Pedro e é guionista. E é a pessoa mais extraordinariamente criativa que eu jamais conheci. E estamos juntos desde que decidi persegui-lo nessa tarde tranquila no metro, há mais de três anos. E a namorada dele de Bragança? Existe, sim, tiveram uma relação à distância que não resultou, é verdade, mas felizmente ainda é viva. Não sei se teve algum acidente de bicicleta, nem me interessa. Eles não se falam desde que ela soube que eu e o Pedro começámos a namorar. Ficou com ciúmes. Azar o dela.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.