Histórias de Amor Moderno: “Eu, do lado de cá, soluçava de choro. Sentia-me profundamente triste. Sabia há muito que ele ia casar-se”

“Uma discussão pequena a propósito de ananás na pizza, daquelas que, normalmente, terminariam com acusações de incoerência de preconceitos contra ananases, desencadeou uma imprevisível sucessão de eventos que levou ao fim da minha relação com o Edgar.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Num momento de desespero, Clarinha implora a Edgar para não casar com Sandra Foto: "The Way We Were"
06 de setembro de 2025 às 08:10 Maria Olívia Sebastião

Lembro-me daquele momento e sinto vontade de me enrolar sobre mim mesma, enfiar-me debaixo dos lençóis, tapar-me e esconder-me para que nunca mais me encontrem. Há poucas coisas de que me arrependa mais na vida do que ter feito aquele telefonema. E, por certo, não há nem uma que me faça sentir maior embaraço. Que vergonha.

Em abono de mim mesma, posso alegar que fiz aquele telefonema à beira do desespero. Sentia-me perdida, sentia-me também injustiçada, embora não saiba exatamente porquê - de algum modo, achei que os astros se haviam alinhado, em determinado momento, de maneira a estragar-me o destino, a emendar erradamente aquilo que me cabia, que me pertencia no futuro. No caso, tirar-me definitivamente o Edgar.

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Eram, talvez, oito da manhã, talvez menos. Peguei no telefone e liguei-lhe. Não quis correr riscos enviando-lhe uma mensagem que ele pudesse ignorar. Não. Peguei e telefonei-lhe. Se me quisesse ignorar, teria de ser ostensivo. Mas eu conheço perfeitamente o Edgar, sabia que a sua consciência não suportaria a dúvida, a incerteza, a questão “o que será que ela quer?” a tilintar-lhe tortuosamente na cabeça enquanto, diante do altar, prometesse amor eterno à rapariga nova com quem decidira inadvertidamente casar.

“Estou, Clarinha? O que é que tu queres?” Atendeu-me a chamada no seu modo típico, que mistura a doçura de quem tem bom coração com a rudeza de quem não mede muito bem as palavras nem tem tato para os sentimentos alheios. Eu, do lado de cá, soluçava de choro. Sentia-me profundamente triste. Sabia há muito que ele ia casar-se, o Edgar tinha-me contado a novidade há mais de seis meses. Na altura, quando soube da notícia, não me senti afetada. “Muito bem”, disse-lhe eu, “seguimos as nossas vidas, cada um para seu lado, espero que tenhas sorte, que sejas feliz”.

Não garanto que tenha sido completamente honesta quando lhe desejei a felicidade, mas também não menti: disse-o, talvez, com displicência, sem pensar no que dizia, no significado que tinham as palavras. Disse-o porque me pareceu bem dizê-lo, soou-me pacificador e elegante. E, de qualquer modo, naquele momento não sentia amor nem saudades do Edgar. Por outro lado, também não sentia que o tivesse perdido.

Mas na manhã do casamento senti tudo de maneira diferente. Num instante, parecia estar diante da mudança irreversível, do passo definitivo, da perda impiedosa e sem emenda possível. “Edgar, meu amor, não te cases… peço-te, suplico-te, imploro-te… não te cases.” Fez-se silêncio. Depois ouvi-o suspirar, a seguir respirou fundo.

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Parecia começar a hiperventilar. “Edgar?” Conseguiu, por fim, falar. “Oh, Clarinha… é tarde demais, minha linda. Gosto muito de ti, sabes disso, mas a vida continuou. Vou casar com Sandra.” Imaginem, “Sandra”. “Vou casar hoje”, acrescentou ele, pronunciando o “hoje” de maneira especialmente carregada.

Estávamos na casa de família que o meu pai e os meus tios têm em Sesimbra: uma discussão pequena a propósito de ananás na pizza - parece uma piada, mas não é, tudo começou aí (eu queria ananás) -, daquelas que, normalmente, terminariam com risada, piadas, acusações de incoerência nas preferências e de preconceitos persecutórios e discriminatórios contra ananases, desencadeou uma imprevisível sucessão de eventos que levou ao fim da minha relação com o Edgar.

Hoje, quando penso nisso, sinto que talvez não fosse assim tão imprevisível essa sucessão de eventos - ou, pelo menos, o desfecho a que conduziu. Uma simples pergunta fez tudo ruir: “Porque é que nunca posso escolher o que me apetece?” Eu fiz a pergunta com inocência dissimulada, como se me fizesse de engraçadinha. O Edgar não entendeu desse modo e respondeu com a rudeza que o caracteriza. “Clara, tu fazes sempre o que bem te apetece e nunca me prestas contas.” A resposta deixou-me agitada, tocou-me num ponto sensível. “Mas eu tenho de te prestar contas? Não estava a par dessa novidade”, ripostei.

Menos de vinte minutos mais tarde, o Edgar pegou na mochila e disse “bom, o melhor é ir-me embora”. Eu, sentada na cama, lembro-me que estava a chorar, mas não era mesmo choro, eram daquelas lágrimas de uma certa tristeza inconfessada, lágrimas de coisas que trazemos guardadas dentro e que estão à espera de saltar cá para fora, mas nunca saltam. Peguei no telefone, olhei para o Edgar e encolhi os ombros, como quem diz “tu é que sabes”. Ele fechou a porta do quarto. Segundos depois, ouvi-o sair e bater com a porta da rua, o que aumentou a minha fúria.

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O mais retorcidamente curioso era tudo isto acontecer no sítio onde, cinco anos antes, nos tínhamos conhecido e apaixonado. Foi em Sesimbra que nos vimos pela primeira vez e começámos a conversar. E, ao fim do segundo dia de conversa, sabia que estava perdidamente apaixonada por ele e ele por mim. E nunca até esse último dia voltámos a Sesimbra, nem sei porquê - talvez devêssemos tê-lo feito, mas se calhar tivemos medo do adágio palerma que diz para nunca voltares ao sítio onde foste feliz. Decidimos regressar ao sítio onde nos uníramos durante essas férias, precisamente para assinalarmos o 5.º aniversário do nosso namoro. E foi então que tudo acabou com o Edgar a sair disparado de casa, depois de alguns gritos, às nove da noite, a caminho provavelmente de um táxi ou de um autocarro que o levasse dali para fora.

Não me lembro de termos discutido mais nenhuma vez ao longo desses cinco anos. Tivemos uma relação muito pacífica, muito harmoniosa. Passeámos muito, conhecemos mundo, viajámos, explorámos cidades, procurámos restaurantes, acampámos em vinhas de Bordéus, dormimos em estações de comboios. Estivemos sempre sintonizados. O Edgar entendia-me bem, era bom para mim, apesar do seu feitio, por vezes rude, indelicado, pouco polido.

Dávamo-nos muito bem, eu e o Edgar. Sabíamos onde e quando ceder um ao outro, intuíamos com facilidade o que o outro desejava ou temia ou lhe desagradava ou divertia. Estranhamente, ou talvez não tão estranhamente assim, o conforto trazido por esta harmonia quase sincronizada criou em mim - possivelmente, em nós - uma falsa sensação de segurança a toda a prova. Perder o Edgar não era sequer uma possibilidade no meu horizonte. E acredito que, para ele, perder-me fosse uma questão praticamente distópica.

O conforto em excesso tem consequências estranhas. E, de novo, corrijo: talvez não sejam assim tão estranhas. Eu é que as estranhei, naquela época. Tendo-o como adquirido, sentindo-o como intocável, dei por mim a sentir outros desejos. A vida quer-se com desafios. Sem eles, acabamos por desejar o que não temos e o que não devemos - não porque o desejemos de verdade, mas porque desejamos ser desafiadas.

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Envolvi-me esporadicamente com um colega de trabalho. Não foi sério. Não foi sequer uma relação. Foram duas escapadelas silenciosas, duas quebras de compromisso, duas facadinhas inconsequentes num matrimónio nunca concretizado. Duas pequenas pedras deixadas cair no charco plácido de uma monotonia até então sem ondas.

A minha traição fez-me bem. Reavivou-me sentimentos, alguns deles já eu esquecera que existiam. Devolveu-me paixão. O medo de ser descoberta permitiu-me sentir de novo medo de perder o Edgar. A libido agitou-se, o meu sexo acendeu-se, o desejo e a volúpia voltaram a mim. O único senão de tudo isto foi não ter sido correspondida. O Edgar continuou a ser apenas o tipo adorável e inabalavelmente decente com quem eu me dava, com quem eu vivia e com quem eu me deitava. Éramos grandes companheiros um do outro. Mas ficávamo-nos por aí, não havia o corpo-a-corpo que o meu corpo pedia.

Quando, em Sesimbra, discutimos pela única vez na nossa vida, não fazíamos amor havia mais de oito meses. E, nos últimos dois anos, devemos ter feito quatro ou cinco vezes, não mais. Eu sentia-me a murchar de novo. E, da parte dele, sentia uma distância fatigada, como se ignorasse ostensivamente os meus avanços e os meus desejos. O ananás na pizza não foi o princípio do fim, não foi sequer um pretexto. Foi a pedra que tínhamos no sapato - e, nessa noite, decidimos descalçar-nos.

Lembro-me de, durante a curta e intensa discussão, lhe ter perguntado se alguma vez me tinha traído. Não, claro que não, que dizia eu, sempre teve olhos para mim e só para mim, que injustiça aquela mera suposição. “Gostava que o tivesses feito, preferia que tivesses desejado alguém diferente e depois percebesses que me preferias a mim.” Não me soube responder. Até hoje, não sei se me revelei, se fiz com que ele percebesse que eu o traíra. Penso que não. Acho que continua, até hoje, na saudável ignorância de quem não precisa de saber.

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O Edgar casou mesmo com a Sandra, apesar de eu ter implorado, de eu ter suplicado, de eu me ter humilhado. Passaram quase 18 anos desde essa manhã de sol de primavera e desse telefonema embaraçoso. Hoje, não o teria feito. Talvez - um talvez muito reticente - lhe enviasse uma mensagem a desejar-lhe as maiores felicidades e, com alguma maldade, a acrescentar que estava sempre a tempo de mudar de ideias, com uma piscadela de olho feita de ponto-e-vírgula e parêntesis fechado, como se fazia na altura, antes do advento dos smartphones.

Às vezes, muito pontualmente, trocamos mensagens. Sei como vai a vida do Edgar, como estão as duas filhas lindas, como corre o seu negócio, como cresce a quinta e a produção. Como está a Sandra, como estão os dois. Onde foram passear, por onde viajaram. Eu continuo sozinha desde aquela noite em Sesimbra, quando acabámos tudo. Talvez eu espere, em segredo, que ele mude de planos quanto ao casamento. Eu sei que ele ainda gosta de mim.

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