A notícia talvez não fosse totalmente inesperada mas foi com emoção que Portugal soube da morte de Eunice Muñoz, aos 93 anos. Mesmo o país que não vai muitas vezes ao teatro mas que não deixa de sentir Eunice como património seu - a atriz de talento imenso, claro, mas também a nossa companhia de décadas e a mulher que não se deslumbrou com o sucesso e que foi sempre senhora de si, das suas escolhas. A mulher que, na dúvida, foi à procura de respostas e não receou o julgamento dos outros.
Era assim há muito tempo. Em 1991, o público que corria ao Teatro Nacional Dona Maria II para ver Passa por Mim no Rossio aplaudia empolgado quando se evocava Estevão Amarante. Era a memória do ator, muito popular, sobretudo no teatro de revista das décadas de 20 e 30, mas há muito desaparecido, quem despertava tal entusiasmo? Ou as palmas iam todas para a atriz que o recordava no seu jeito gingão e malandro, Eunice Muñoz?
Até aos 26 anos, Eunice não pensou realmente a sério nessa profissão" espantosa, cruel e melindrosa" (como ela admitiu numa entrevista ao semanário Sete, em 1991). Estava no palco, achava ela, porque jamais conhecera outra vida. Era inevitável, dir-se-ia.
Nascera na Amareleja, no Alentejo, a 30 de Julho de 1928, no seio da Companhia de Teatro Desmontável Mimi Muñoz, também conhecida por Troupe Carmo. A Mimi era a mãe, mas não se esgotavam aí os antecedentes da menina no mundo espetáculo. Os avós maternos também eram atores e os paternos, artistas de circo. O avô Muñoz fora, aliás, uma figura singular: Violinista de ofício e intrépido por temperamento, fugiu com a mulher da sua vida (uma Cardinali) que fazia volteio a cavalo no circo da família dela.
Aos 5 anos, os pais lançaram Eunice ao palco. Mas ela começou por detestar a ideia e não foi com grandes certezas que, depois de descoberta por Sales Ribeiro, estreou no palco do Dona Maria II, como jovem promessa da Companhia Rey Colaço/Robles Monteiro.
Essa estreia aconteceu a 21 de Novembro de 1941, na peça de Virgínia Vitorino, Vendaval, e punha a miúda de 13 anos em palco com as grandes divas da época, Palmira Bastos, Amélia Rey Colaço, Maria Lalande e Lucília Simões. Nos anos seguintes, concluiria o curso do Conservatório com 18 valores, ao mesmo tempo que se afirmava no palco mais importante de Lisboa à época, o Nacional. Tornou-se uma pequena "estrela" e foi, nessa qualidade, que, em 1944, O Século Ilustrado, uma revista de grande circulação, lhe dava capa, sob o título "A beleza no nosso teatro". Pouco depois, ver-se-ia também a fazer Cinema, ficando famoso o seu papel de Beatriz Silva, dama da corte, em Camões, de José Leitão de Barros, que lhe valeria o Prémio de Melhor Atriz, em 1946. Nesse mesmo ano, casaria com o arquiteto Rui Oliveira do Couto (1917 - 1998), que conhecera nas filmagens de Camões, já que o noivo colaborava na cenografia. Um ano mais tarde, nasceria a filha de ambos, Susana.
Uma mulher em busca de si
Ao contrário do que se esperava das mulheres portuguesas no ideário da ditadura, Eunice não só continuaria a trabalhar depois do casamento e dessa primeira maternidade, como separar-se-ia alguns anos depois, numa época em que atitudes como esta eram apontadas a dedo, por uma horda de almas escandalizadas. A 6 de fevereiro de 1956 casar-se-ia pela segunda vez, desta vez com o engenheiro Ernesto Borges, com quem teve 4 filhos, Joana, Pedro, Maria e António.
Esta ousadia levá-la-ia também a questionar a sua vida profissional, mesmo no auge do sucesso. Aos 23 anos, Eunice surpreendeu tudo e todos ao anunciar que queria experimentar outras opções. Tornou-se empregada de uma conhecida loja de cortiças em Lisboa, a Mr Cork, e depois secretária de direção duma empresa. Estava-se em 1951 e Eunice só voltaria ao teatro em 1955, depois de ter percebido que este era, afinal, uma paixão, e não o fruto de uma circunstância familiar. O seu regresso far-se-ia em beleza. Pela mão do empresário Vasco Morgado e do figurinista Pinto de Campos, interpretaria a peça de Jean Anouilh, Joana d’Arc. no já desaparecido Teatro Avenida, em Lisboa, pela qual Eunice receberia mais um prémio de interpretação. Nos anos seguintes, seguir-se-iam novos papéis de excepção em peças como A Desconhecida de Pirandello; O Milagre de Ann Sullivan, de William Gibson; Fedra, de Racine; As Raposas, de Lilian Helmann; O Homem que Fazia Chover, de Richard Nash; António Marinheiro, de Bernardo Santareno ou Oração, de Arrabal, para apenas referir algumas das mais importantes.
Seria também durante a preparação de Fedra, no Teatro Experimental de Cascais, dirigido por Carlos Avillez, que Eunice conheceria o que viria a ser o seu terceiro marido, o poeta António Barahona da Fonseca, tradutor do texto dramático. Depois da atriz se divorciar de Ernesto Borges, os dois casariam em 1970, segundo o rito islâmico na mesquita de Lourenço Marques (Moçambique), adotando os nomes de Mina e Muhammad Rashid. Desta união nasceria a filha mais nova da atriz, Eunice António.
Em 1978, quando o Teatro Nacional Dona Maria II foi reorganizado após a interrupção ditada pela Revolução de Abril, Eunice foi um dos nomes chamados a integrar o elenco residente. Aí fez peças tão importantes como A Casa de Bernarda Alba, de Lorca; Play, de Samuel Beckett e um sempre muito lembrado Mãe Coragem e Seus Filhos, de Brecht. Ao mesmo tempo, nunca deixou de responder aos convites que lhe foram fazendo para Cinema, participando em filmes como Manhã Submersa, de Lauro António; Matar Saudades, de Fernando Lopes ou Tempos Difíceis, de João Botelho.
Com esse arrojo tranquilo com que sempre vivera, entregou-se à televisão com o profissionalismo que punha em tudo. Em 1993 estrear-se-ia em telenovela, como protagonista de A Banqueira do Povo, de Walter Avancini, ao lado de Alexandra Lencastre e Rogério Samora, entre muitos outros. Seguir-se-iam mais títulos, sem que a atriz alguma vez hesitasse em associar-se a este formato tido por mais popular, tão esgotante no esforço exigido aos atores como pouco reconhecido pela crítica. Mas, apesar da agenda apertada e do tempo que passava, nunca deixaria realmente o teatro. Em 199, fez A Maçon, peça escrita para ela por Lídia Jorge, no "seu" Dona Maria II e, em 2001, A Casa do Lago, de Ernest Thompson, com encenação de Filipe La Féria. Mas dois dos seus maiores êxitos em palco ocorreriam em 2007 e 2009, respectivamente A Dúvida (ao lado de Diogo Infante, com encenação de Ana Luísa Guimarães) e o monólogo O Ano do Pensamento Mágico, de Joan Didion, com Diogo Infante, desta feita, na direção.
Uma queda aparatosa seguida dum cancro na tiróide, que lhe roubaria boa parte da sua maravilhosa voz, não ditariam ainda o afastamento. Uma vez mais, Eunice não se rendeu.
Só se retiraria há cerca dum ano, ao comemorar 80 anos de carreira, rcom a peça A Margem do Tempo, em que contracenou com uma das netas, Lídia Muñoz." Nessa altura, foi também condecorada pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada, três anos depois de ter recebido a Grã Cruz da Ordem de Mérito.
Na sua página de facebook, o diretor do Teatro Nacional Dona Maria II, Pedro Penim, evoca hoje tudo o que Eunice significa para aquela casa que assistiu a tantas noites do seu triunfo: "Era sempre especial para o teatro receber a Dona Eunice, esperar que ocupasse o seu camarim. Foi lá que a vi pela última vez, feliz, recebendo os seus convidados, sorrindo para todos, confortando-nos com a sua existência basilar. Quando a Eunice vinha ao Dona Maria havia um rumor jubilante no ar, os trabalhadores estremeciam, o teatro zunia, os dourados trepidavam. Porque a Eunice é a coluna. Para sempre alicerce do teatro português, para sempre eixo da nossa história contemporânea."
Palmas, muitas palmas de pé para Dona Eunice. Atriz, mãe, avó, património de Portugal.