Está a tornar-se um 'coronaholic'?

Beber um copo enquanto espera que a epidemia do novo coronavírus passe é aceitável. Passar a fazê-lo diariamente pode ser alarmante. Saiba como manter uma relação saudável com o álcool.

Foto: IMDB | NBC Studios/Universal Television
08 de abril de 2020 às 06:00 Aline Fernandez

É bem provável que já tenha vivido este cenário. Através das aplicações Zoom, House Party ou WhatsApp, sentou-se para conversar com alguns amigos neste período de quarentena para evitar o contágio do novo coronavírus, cada um com o seu copo e nas suas respetivas casas. Provavelmente já viu e riu dos vídeos e fotografias de pessoas a brindar consigo mesmas ao espelho. Tudo parece muito engraçado, mas a mudança de rotina de trabalho e a falta de horários fixos podem ser consideradas pontapés para um maior consumo de álcool.

Com o stress e a ansiedade causados pela pandemia atual, beber ajuda a bloquear esses sentimentos, tanto cognitiva quanto quimicamente, mascarando as emoções. Obviamente que todos sabemos que a bebida alivia a curto prazo, mas traz malefícios a médio e longo prazo. "Aumenta a ansiedade, aumenta a depressão e aumenta um conjunto de doenças físicas relacionadas ao seu consumo", aponta João Marques, Presidente da Sociedade Portuguesa de Alcoologia, diretor clínico da Clínica do Outeiro, em Gondomar, e médico psiquiatra na Casa de Saúde Santa Catarina, no Porto.

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Culturalmente, Portugal é associado ao consumo de álcool desde sempre, beber um copo não só é socialmente aceite como estimulado. Estamos a falar de um país onde até pouco tempo se davam sopas de cavalo cansado às crianças ou se ouviu falar numa tia ou avó que o fazia. Estatisticamente os portugueses estão acima da média europeia do consumo de álcool per capita. "Somos dos que mais bebemos. E se olharmos para todo o mundo, a Europa é o continente onde há mais consumo de álcool", alerta João. Então, se já bebemos tanto, como ficamos no meio desta pandemia?

O isolamento é um dos estágios definidos do alcoolismo, portanto pode favorecer o aumento do consumo de bebidas alcoólicas. "Mas nem todos os isolamentos" se aplicam, explica à Máxima João Marques, e detalha: "está muito dependente da nossa idade e da nossa etapa de vida." Para os mais jovens, em geral, tem sido benéfica [a quarentena] em relação à redução do consumo de álcool, já que o seu uso se relaciona a festas e convívios à noite com amigos, fora de casa – o que tem não tem acontecido nas últimas semanas. "Há um estudo recente que mostra isso: neste último mês há uma baixa significativa do consumo de álcool, cannabis, haxixe e de outras drogas – mas principalmente álcool e cannabis – nos mais jovens". Porém o consumo dos mais jovens é muito diferente de outras faixas etárias, que já se habituaram a levar o álcool para dentro de casa e a consumi-lo esporadicamente. "Os mais velhos estão mais isolados, perderam a sua rotina e têm aumentado o consumo", assegura o médico psiquiatra.

"De facto, esta mudança de rotina que fomos obrigados a pôr em prática é um potenciador para o maior consumo de álcool. Por várias razões, uma delas é porque não tivemos tempo de nos adaptar a esta mudança, foi uma coisa quase do dia para a noite", começa por explicar João. E toda esta adaptação exige de nós recursos, ou seja, temos que saber como nos vamos adaptar a uma situação e isso traz reações humanas normais mais intensas, como a ansiedade, o receio e a dúvida do futuro. "Faz com que nos sintamos mais angustiados e o álcool surge como medicamento", refere João Marques, a explicar que quando recorremos à bebida alcoólica nessas alturas aliviamos exatamente todas esses sintomas e "damo-nos uma falsa sensação de bem-estar".

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João completa que é, por isso, que nos processos de adaptações de vida que exigem uma resposta imediata "o cruzar com o álcool não é uma boa situação, porque o álcool diminui este mal-estar e potencia o seu consumo", o que fará com que a pessoa beba cada vez mais. "Bebo, alivio o meu mal-estar, logo vou continuar a beber", explica, detalhando a lógica do processo de má adaptação, que poderá evoluir para um consumo patológico. Por outras palavras, não se deve utilizar o álcool como medicamento. "De facto é um medicamento. O álcool é uma substância que quimicamente é muito semelhante aos ansiolíticos, vulgo o Xanax ou o Valium, que aliviam o mal-estar e a ansiedade", explica-nos o médico psiquiatra. Numa altura destas, em que andamos ansiosos, angustiados "se eu beber um copo de vinho ou um copo de outra bebida alcoólica o efeito é como um Xanax, o que não é um bom mecanismo, porque passa o efeito e vou ter a tendência de ir buscar mais um bocadinho."

Foto: Instagram @enrico_barberis_negra

O isolamento é o aperitivo perfeito para acompanhar o álcool?

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"Ficar sozinho é sempre um fator de risco para qualquer patologia a nível de saúde mental. Quando estamos sozinhos, sem ninguém, claro que não ficamos bem", reforça Mário Marques, psicólogo e presidente dos Alcoólicos Anónimos há 18 anos. Seguindo as instruções das autoridades públicas para o isolamento social, os grupos dos Alcoólicos Anónimos em Portugal suspenderam as suas habituais reuniões físicas. Porém, isolamento não significa falta de ajuda e o programa de recuperação têm-se feito com reuniões via Skype, acessíveis aos membros da organização e a qualquer doente alcoólico que cumpra com o requisito de querer deixar de beber. O anonimato de cada participante continua a ser assegurado.

"Costumava-se dizer que o álcool era o maior antidepressivo que se vendia em Portugal. Sobretudo aos homens que não iam ao psicólogo e ao psiquiatra e procuravam no álcool uma espécie de antidepressivo para curar as suas angústias", lembra Mário. Mas os tempos mudaram e não significa que esteja a tornar-se alcoólico só porque está a beber um copo para aliviar a tensão. "Eu conheço muitos alcoólicos que bebem para aliviar uma tensão emocional, como conheço muitos alcoólicos que bebem porque gostam." A primeira razão pela qual um alcoólico bebe é por isso mesmo, porque gosta de beber e gosta do efeito que o álcool lhe transmite, explica-nos o psicólogo, reforçando que o alcoolismo é uma doença crónica e que não tem cura.

"E outro aspeto muito importante é que é uma doença progressiva, portanto a pessoa vai bebendo e instala-se ao longo do tempo. E a pessoa para atingir o determinado efeito que procura – pode ser desse alívio da tensão emocional, como pode ser a procura de uma adrenalina, de ficar eufórico, por exemplo – é uma procura desenfreada da intensificação das sensações". Mário explica que uma pessoa sem dependência pode conversar com um amigo e sentir-se bem e preenchido, porém o alcoólico irá procurar uma bebida para intensificar àquela sensação de bem-estar.

O efeito do consumo do álcool pode ser negativo proporcionalmente ao seu consumo. "Também as consequências vão aumentando do ponto de vista psicológico, físico, social, espiritual e etc...", enumera o presidente do AA.

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Encontrar outras formas de aliviar a tensão

"Aqui o truque será um bocadinho aceitar que eu tenho de organizar a minha vida de uma forma diferente e tenho que implementar uma nova rotina", sugere João Marques, tal como há dias atrás, antes desse cenário pandémico. Se conseguir manter-se ocupado, aliviará consideravelmente o stress, que é potencializado pela ausência de atividade e pela perspetiva do pensamento abstrato – as tais dúvidas sobre o que vai acontecer consigo e com o mundo ao ver as notícias.

Tente organizar o dia de maneira semelhante ao que tinha, a começar pela hora que acorda e se vai deitar. E tenha uma ocupação de várias vertentes. "Uma prática, cognitiva, ou seja, de trabalho mais elaborado e outra física", afirma João. A atividade física regular ajuda a libertar algumas substâncias endógenas que têm o mesmo efeito que procura no álcool. "As endorfinas aliviam a ansiedade e dão-me prazer, se eu implementar nesta minha rotina um exercício por dia ajuda também a andar mais tranquilo e não tão stressado", refere o médico psiquiatra.

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Quem não consegue controlar-se tão bem, deve cortar o mal pela raiz e evitar ao máximo trazer álcool para casa. Limite o consumo e não tenha garrafas por perto, porque irá terminá-las mais facilmente. Outro bom truque é perguntar-se: 'Eu estaria neste momento a tomar um copo se não estivesse isolado?' Compare as suas atitudes num dia a dia dito normal e deixe a resposta guiar as suas ações.

E, claro, se for beber as orientações são as de sempre. Consuma, de preferência, vinho ou cerveja às refeições principais e junto a um copo de água. Na teoria, pode parecer óbvio, mas nesses tempos em que se fazem compras de pânico, procure opções sem álcool. Durma o suficiente com boa qualidade e opte por refeições nutritivas. Procure algo que possa preenchê-lo durante estes dias, como cozinhar, aprender um novo idioma, ler um livro, o que puder animá-lo nestes tempos difíceis que passarão.

Se não faz parte dos AA, está preocupado com o consumo de álcool durante este período e gostaria de falar com um profissional, há ajuda disponível sem precisar de sair de casa. Os Alcoólicos Anónimos têm uma linha de ajuda através do número 21 716 29 69, disponível todos os dias, das 10h00 às 22h00. Para mais informações e ajuda, visite www.aaportugal.org ou escreva para ajuda@aaportugal.org. Também pode contactar a Unidade de Alcoologia do seu distrito.

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