Espéculo. Ao fim de 185 anos, duas mulheres criam novo design para o temido instrumento ginecológico

O espéculo original foi desenvolvido por um médico que fazia experiências, sem anestesia, em mulheres escravizadas. Agora, duas investigadoras da Universidade Técnica de Deft criaram um design que é não só mais confortável, como funciona melhor.

Novo espéculo Lilium promete mais conforto em exames ginecológicos Foto: DR
08 de agosto de 2025 às 10:08 Madalena Haderer

Nenhuma mulher debaixo do sol aguarda com satisfação e alegria uma visita ao . Algumas, com sorte, preferem-nos ao dentista, num exercício proverbial de “venha o Diabo e escolha”, e é tudo. Curiosamente, tanto num caso como no outro, o problema central são as ferramentas usadas. Se, à partida, ninguém sente um desejo incontrolável de passar 20 minutos a falar da sua vida sexual e reprodutiva, incluindo parceiros, práticas e fluídos, perante uma pessoa que faz perguntas invasivas, toma notas e pratica silêncios constrangedores, a verdade é que boa parte da relutância em marcar uma consulta de ginecologia está relacionada com o espéculo – aquele instrumento de tortura que o médico introduz no canal vaginal para conseguir ver o que lá se passa. Um apetrecho que mantém o mesmo design (perturbador) há 185 anos, mas que tem agora uma hipótese de ser renovado tendo os conforto das mulheres como valor central – se houver financiamento, claro.

O espéculo – um instrumento estilo bico de pato que separa as paredes vaginais abrindo caminho para o cérvix – é, tal como conhecemos hoje, muito semelhante ao que era há quase dois séculos. Regra geral, é feito de aço inoxidável (reutilizável e durável) ou de plástico (descartável, logo, poluente, mas mais confortável para a maioria das mulheres). O design, porém, é o mesmo há quase dois séculos. Reza a história que foi inventado por volta de 1840, por James Marion Sims, um médico norte-americano que queria observar o interior da vagina para estudar e tratar fístulas vesicovaginais – feridas entre a bexiga e a vagina, uma complicação comum no pós-parto na época – e fez as suas primeiras experiências com espéculos e técnicas cirúrgicas em mulheres negras escravizadas, sem anestesia e, naturalmente, sem consentimento. 

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Espéculo com novo design criado por investigadoras da Universidade Técnica de Delft Foto: DR

A contribuição de Sims para a ginecologia moderna é inegável, afinal, sem o espéculo não seria possível observar o colo do útero, fazer exames como o Papanicolau ou realizar procedimentos médicos como biópsias ou inserção de DIU, mas os seus métodos não deixam de causar consternação e horror. Não surpreende, portanto, que duas jovens da Universidade Técnica de Delft, nos Países Baixos, tenham desenvolvido um novo design de espéculo: o Lilium. Criado pela designer Ariadna Izcara Gual, como projeto de mestrado, em parceria com a investigadora Tamara Hoveling, o Lilium propõe uma alternativa menos invasiva e desconfortável ao espéculo metálico tradicional

Este novo modelo é feito de borracha TPV médica semi-flexível, que lhe confere a resistência mecânica necessária para suportar a pressão das paredes vaginais e, ao mesmo tempo, a flexibilidade para abrir as suas lâminas – ou "pétalas". O Lilium é composto por duas partes: a primeira consiste num exterior que parece formado por três pétalas – a imagem de uma flor tem como propósito causar conforto mental e familiaridade; e a segunda parte é um tubo usado para abrir suavemente as pétalas, fazendo lembrar um aplicador de tampão, permitindo inserção própria ou por um profissional de saúde – a inserção pela paciente pode ser útil em casos de ansiedade extrema ou stress pós-traumático. 

Novo espéculo, Lilium, visa conforto em exames ginecológicos nos Países Baixos Foto: DR

De acordo com as explicações de Ariadna Izcara Gual, disponíveis no site da universidade, o dispositivo melhora significativamente a experiência de utilização, como confirmado pelo feedback de oito participantes – questionadas sobre que design preferiam, o tradicional ou o Lilium, todas disseram preferir este último.

A designer também procurou feedback junto de cinco enfermeiras e dois médicos. Estes, ainda de acordo com o site da universidade, testaram o Lilium num modelo pélvico de treino e referiram ser mais fácil visualizar o colo do útero. Estes profissionais de saúde deram o exemplo de mulheres com obesidade, que tendem a ter prolapso da parede vaginal, o que dificulta a visibilidade com os espéculos atuais – o design com três pétalas do Lilium resolve este problema, dizem. Além disso, com o espéculo tradicional, os profissionais de saúde precisam, por vezes, de usar os dedos para abrir ligeiramente as paredes vaginais e proporcionar mais conforto à paciente, mas com o Lilium, isso não foi necessário.

A Universidade Técnica de Delft refere ainda que o Lilium foi concebido com preocupações ambientais em mente, podendo ser desinfetado, esterilizado e reutilizado de forma segura e rápida, uma vez que é composto apenas por dois componentes. 

Resta saber agora se a designer e a investigadora conseguem obter os apoios necessários para desenvolver e comercializar o Lilium. De resto, quem já teve uma má experiência com um espéculo tradicional, não pode deixar de desejar que assim seja.

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