Dating em Lisboa. “Voltei a encontrá-lo na secção dos frutos secos.”

Mulher encontra ex-namorado na secção de frutos secos em Lisboa. Foto: IMDB
16 de dezembro de 2025 às 10:01 Maria Pestana

Peguei nos espinafres e esbarrei nele. “Desculpe. Com licença.” Virei-me, peguei na caixa de tomates cherry. Vi a sua mão na mesma caixa que agarrava. Esbocei um sorriso. Ele largou. Eu peguei e meti na cesta – não trinquei. Ele sorriu também. Deu um passo atrás. Dirigi-me à secção dos queijos. Abri a porta, tirei uma burrata. Fechei a porta. Virei-me. “Diria que vamos fazer a mesma receita”. Tirei os phones dos ouvidos. “Desculpe?”. “Disse que até parece que vamos fazer a mesma receita. Espinafres. Tomates. Burrata.” Só nesse momento olhei verdadeiramente para ele. Pareceu-me relativamente mais velho, talvez na casa dos cinquenta anos. Charmoso, cabelo grisalho. Dava ares do Cotrim de Figueiredo – um cota perfeitamente fazível, desde que mantenha a boca fechada e não nos tente impingir ideologia liberal. “Talvez, quem sabe?”, disse, mas não esperei pela resposta. Peguei na cesta e fugi. Às vezes, gosto de fazer destas. Faz-me sentir empoderada por alguma razão. Ou talvez só desejada. Se não rebentar a bolha da realidade sentir-me-ei para sempre desejada ao recordar aquele instante. 

Voltei a encontrá-lo na secção dos frutos secos. E na dos congelados. De todas as vezes, fez por captar a minha atenção. Batia com o cesto no meu. “Ups, veja lá se lhe amolguei a bagageira”. Tentei parecer séria, sorrir pouco. Sabia que bagageira era somente um sinónimo de outra coisa que ele gostaria de amolgar.  Porque é que a relação entre homens e mulheres é sempre tão visceral? Não passava de uma mera ida ao supermercado, no entanto, regressei a casa a pensar nas coisas perversas que um estranho me queria fazer. Já na caixa, ainda me lançou um “Veja lá se não se esquece de nada!”. Ao qual respondi “Estou certa de que levo tudo o que preciso”. Tradução: levo o que cá vim buscar, comida e produtos de higiene. Só mais tarde me lembrei que tinha duas caixas de preservativos – estavam em promoção -, esparramadas dentro do cesto. Devia parecer que ia fazer uma orgia para a qual ele queria ser convidado.  

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Antes de sair faço sempre a lista de compras. Bananas, tomates cherry, espinafres, burrata, kombucha – gosto de beber em copo de pé alto e fazer de conta que é champanhe -, leite vegetal de amêndoa, pistácios, pizza de mozarela, preservativos – nunca são demais -, e pasta de dentes. O peixe compro no mercado, no sábado de manhã, e o pão também, pois só compro do feito com massa mãe. Gosto sempre de assar um peixe no forno ao fim-de-semana. Faço com batatas, coloco umas tiras de cebola e pimento e polvilho tudo com caril. Se estiver sol preparo a mesa no exterior e almoço no terraço, aproveito os pequenos prazeres da casa que ainda considero “nova”. Foi o que fiz nesse sábado. Depois, saí para beber um café. Subi a rua e fui ao quiosque no jardim. Levei um livro comigo. Pedi um café cheio e uma água com gás, sem gelo, só com limão. Sentei-me a ler O Retorno, de Dulce Maria Cardoso. Depois dos 50 anos da libertação de Angola, fiquei interessada em saber mais sobre o processo de descolonização.  

Estava sentada com o meu livro quando o vi chegar ao balcão do quiosque e pedir qualquer coisa. Enfiei a cabeça no livro, fiz de conta que nada vi. “Importa-se que me sente aqui? Não há mesas vagas.” Levantei a cabeça do livro. Olhei-o fixamente. Olhei em redor. Exceto duas velhotas que conversavam, uma família que corria atrás dos putos que trepavam pela fonte, e mais duas ou três pessoas, as mesas estavam todas vagas. “Com certeza. Porque não? Não vai ficar de pé!” Ele sentou-se. Mexeu o café com um pau de canela. “Então, vai-me dizer como é que se chama ou vamos continuar nisto?” Respirei fundo. Pousei o livro sobre a mesa. “O que é que quer?”, perguntei. “Conhecer a minha vizinha. Já não se conhecem os vizinhos, infelizmente. Se precisar de sal pede a quem?”  “Não peço, a minha mãe sempre me disse que o sal não se pede emprestado. Dá azar”, respondi. Ele soltou uma grande gargalhada. “Azar… e você é a sorte grande ou a terminação?”

Cedi, porque a carne é fraca e a curiosidade mata, mas todos precisamos de morrer um bocadinho, de vez em quando, para nascermos de novo. Por isso, estiquei a mão. “Maria”, apresentei-me e baixei a guarda. Ele apertou devagarinho, como se me quisesse medir o pulso ou a firmeza de carácter. Conversámos toda a tarde. E mudámos do café para o vinho. O Vitor era, de facto, cinquentão. Morava umas ruas ao lado de mim. Tinha um filho de 19 anos a fazer Erasmus na Bélgica. E estava a divorciar-se. Depois de anos a viver um divórcio silencioso, de lidar com a culpa de se sentir desligado do casamento, de se refugiar no trabalho para compensar o vazio, aproveitou a saída de casa do filho para admitir o óbvio e confrontar os factos. Ela tinha reagido mal. Ele questionava-se sobre como poderia ter reagido ao pedido de separação com surpresa. “As pessoas veem o que querem e vivem relações que só existem nas suas cabeças. Passam tanto tempo a fantasiar que se tornam reais”, comentei a dada altura. “Há anos que não sentia o menor desejo por ela, nem a procurava na cama. Ela achava que era da idade, quando eu ainda acordo todos os dias com tesão”, explicou a brincar. 

Pôs-se noite enquanto conversávamos. Quando me tentei despedir, o Vitor sugeriu que jantássemos. “E se te fizesse a tal massa com burrata? Abrimos mais uma garrafa. Tenho um pinot noir que me ofereceram que deve ser incrível.” Concordei, não me apetecia ir para casa comer uma pizza congelada ou um prato de sopa. E estava realmente a gostar da conversa. O Vitor tinha uma certa piada, aliada aquele charme mais velho, uma cortesia que se vê pouco hoje. Era confiante, mas cortês. Senti uma atração imediata. Fomos para sua casa. Ele abriu o vinho e colocou umas azeitonas pretas numa taça, para petiscarmos enquanto tratava da massa. Sentei-me ao balcão. Tinha uma bela casa. “Herança dos meus avôs. Eu só tratei da remodelação há uns anos. Tive sorte.” E teve. Da sua sala de estar tinha vista sobre a Ponte 25 de Abril, as luzes cintilantes no escuro da noite. Como as luzes da Árvore de Natal decorada que tinha à janela. Achei bonito. Coloquei o novo disco da Carminho. Comentei como gosto de ouvir Fado, agora ainda mais, desde que me mudei e que efetivamente sinto que faço parte de um bairro lisboeta.  

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Jantámos. “Esquecemo-nos do manjericão!”, brincou, mas a massa estava boa de qualquer modo. O vinho também era bom. Como romântica idealista, e bebida, não consegui evitar que a minha mente esbarrasse na ilusão de que tinha de mudar de casa, mudar-me para este bairro, frequentar aquele supermercado, para me cruzar com esta pessoa e viver esta experiência em particular. Foi bem no meio da ilusão que alguém meteu a chave na porta, fez rodar o trinco e entrou. “Ah, tens visitas, desculpa. Não sabia! Boa noite! Sou a Teresa!” Ouvi tudo de rompante, enquanto recebia já dois beijos nas bochechas. Ela foi ao quarto, deixar as coisas. Ele aproveitou para me pedir desculpa. “Devia ter-te dito. Ela ainda mora aqui. Está à procura de casa, mas está tudo tão caro… Mudou-se para o quarto do nosso filho, claro, e agora paga-me renda, simbólica, mas paga.” Ainda nem tinha bem terminado de falar quando ela regressou, tirou um copo de pé alto do armário, serviu-se de um pouco de vinho e sentou-se à mesa. 

Inicialmente, fiz de conta que não compreendia o que estava a acontecer, quando era óbvio. Ela marcava posição. Eu podia ser completamente compreensiva em relação à dificuldade de arrendar casa neste momento, mas não em relação ao facto de ela forçar a sua presença num espaço que já não deveria ser o seu. Ele ficou calado. Baixou os olhos. Ela quis saber quem eu era. Eu vi claramente que não pertencia ali, mas respondi de forma cordial. Expliquei que era vizinha do Vitor e conversei com a Teresa durante um pouco. O Vitor aproveitou para ir levantando os pratos da mesa. Desculpou-se por não ter sobremesa. “Acho que há gelado de noz”, disse a Teresa, mas não se levantou para o ir buscar. Entretanto, o Vitor foi à casa de banho e a Teresa aproveitou para esclarecer o que eu já tinha depreendido. Sorriu-me. Fez balançar o copo, chegou-se a mim, pousando a sua mão sobre o meu braço como se fossemos confidentes, e disse cheia de si: “Sabe, o Vitor está confuso, isto é uma fase, mas quando essa fase lhe passar eu vou continuar aqui.” Eu desmanchei-me a rir. O Vitor regressou da casa de banho e perguntou qual era a piada. “A Teresa diz que estás a passar por uma fase e que ela está de pedra e cal, que não vai sair daqui.” Ele ficou petrificado. Os olhos confusos, os punhos cerrados de raiva. “O quê? Teresa, estás a delirar? Que conversa é essa? Eu quero-te fora daqui!” Levantei-me, peguei no casaco que tinha deixado caído sobre o sofá. “Oh Vitor, dado que somos os dois proprietários, o que achas de eu me mudar para aqui e arrendar o meu apartamento à Teresa? Matávamos dois coelhos de uma cajadada só!”, comentei descontraidamente enquanto me vestia. O Vitor soltou uma gargalhada do tamanho do mundo. Pareceu descansado. A Teresa assumiu o espanto e a raiva. Fulminou-me como pode com o olhar. Não contava com a minha traição. Despedi-me do Vitor com um beijo molhado na bochecha e antes de sair disse: “Amanhã, no Jardim, à mesma hora?” Saí um pouco aos tropeços, mas convicta de que haveria de arrancar a Teresa daquela casa, nem que fosse só pela provocação.  

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