Das 501 de Steve Jobs ao blusão de Albert Einstein. Histórias das peças mais emblemáticas da Levi's contadas por quem as achou

A casa de São Francisco apresentou, no Mudec, durante a Milan Design Week, uma exposição com três dezenas de peças. Aprendemos que a história da Levi’s é feita de denim, de rebites, de desafios e de soluções. E conversámos com os dois responsáveis pela mostra.

Foto: @LEVI´S
16 de maio de 2024 às 18:54 Diego Armés

Ele com umas socas colossais, exuberante, avant-garde; ela com um ar mais reservado, capaz de passar despercebida com o seu look simples e quotidiano. Eles, Paul Dillinger e Tracey Paney, são as pessoas responsáveis pela exposição Icons, Innovations & Firsts da Levi’s no Mudec - Museo delle Culture de Milão. A mostra, que esteve aberta ao público entre 5 e 26 de abril, coincidiu com a Milan Design Week, que se realizou de 16 a 21 de abril, e integrou a programação oficial da mesma.

Aparentemente diferentes, Paul e Tracey têm no entanto muito em comum, a começar pelo facto de serem os guardiães do ADN da marca Levi’s. Se Tracey, Historiadora e Coordenadora do Arquivo, conserva e estuda as peças do passado, Paul, Head of Global Product Innovation, pega no conhecimento que daí resulta e transforma-o em ferramenta para as criações futuras. Aproveitámos para conversar com cada um deles e ficámos a perceber que, na Levi’s, passado, presente e futuro estão cosidos com pontos muito fortes. Porque naquela casa tudo é feito em função da necessidade. E a necessidade aguça o engenho.

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Conversa com Tracey Paney:

Foto: @LEVI´S

Depois de ver a exposição, há uma pergunta que se impõe: sabe quem pintou aquelas Prison Pants? Ou não conseguiu encontrar a pessoa?

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Sim. É melhor eu contar a história. Eu adquiri essas calças. O nome do prisioneiro está no interior da peça, mas nós cobrimo-lo.

Porque não estão autorizados a divulgá-lo?

Porque não conseguimos pedir-lhe autorização. Eu comprei a peça a um homem que a comprou ao prisioneiro. Ele foi libertado em 2013 e foi para São Diego. O ex-prisioneiro estava então à porta de uma casa de póquer e precisava de dinheiro. Tinha com ele uma guitarra. Estas calças estavam guardadas dentro da caixa da guitarra. Ele tentou vender a guitarra a um homem, que disse "não quero, obrigado, mas posso comprar essas Levi’s". Esse homem comprou-as e depois contactou-me. Portanto, nós sabemos o nome do ex-prisioneiro, mas não temos maneira de o contactar. Sei, de um modo genérico, onde é que ele esteve preso, algures no Norte da Califórnia, mas é tudo quanto consegui descobrir sobre ele.

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Como é que procura, encontra e, por fim, faz para adquirir todas estas peças?

De várias maneiras. Não disponho de tempo suficiente para as procurar a todas eu própria. Recebo dicas de fãs [da Levi’s], respondo a muitas perguntas de pessoas que me escrevem, que me enviam emails, e isso acaba por me levar a algumas das peças. Esta chegou-me por email. O homem mandou-me uma fotografia, eu olhei para a imagem e ele contou-me a história. Mais tarde, falámos ao telefone e só depois tomámos a decisão de as adquirir. Outras peças são adquiridas em leilões. As 501 de Steve Jobs foi em leilão, o blusão de Albert Einstein foi em leilão. A peça que temos aqui atrás [Gold Medal 501 & Olympic Torch, 1984] que foram usadas por [Brad Alan Lewis] um remador olímpico para percorrer a milha em um minuto. Esse remador doou as calças ao arquivo. Ele remou com elas vestidas e fê-lo no âmbito de uma campanha de consciencialização para a doença do irmão. Soube que quis doá-las e entrei em contacto com ele, acabando por aceitá-las no arquivo.

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E em relação às peças mais antigas? Algumas são praticamente arqueologia.

Alguns deles já estavam no arquivo antes de eu ter assumido estas funções. Posso falar-te acerca destas aqui (Lot 201 Miner Jean, 1901-1922), porque não sabemos ao certo de onde vieram as mais antigas. Estas aqui foram compradas por nós em 2003 e vieram do Japão. É por isso que temos ali aquela revista. A revista é japonesa. Podes ver o estado em que elas estavam antes de as termos adquirido. As Levi’s são um sinal de estatuto no Japão e a pessoa que as comprou cortou as pernas das calças para lhe servirem melhor, porque elas estavam compridas, e também removeu o emblema e depois coseu-o. Esta peça entrou no nosso radar em 2003 e depois acabámos por comprá-la. Mas sabemos que tiveram uma segunda vida no Japão. Por norma, sou muito cuidadosa em relação às pessoas a quem compro as peças. Por vezes, faço alguma pesquisa logo à partida para perceber se a história faz sentido, para evitar ser enganada - porque acontece. Normalmente, durante o processo, só pago pela peça depois de a ter podido ver de perto, ao vivo.

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Quais foram as peças mais difíceis de adquirir?

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Bom, difícil, por causa do dinheiro, temos o blusão de Einstein, que foi muito caro. Há outras peças que são difíceis porque o proprietário não quer, a princípio, desfazer-se delas, porque são muito passionais em relação às peças. As Viola [401 Jean, década de 1930] demoraram vários anos. Não queriam vendê-las, então eu convidei-os para uma visita aos arquivos, passámos algum tempo juntos, mostrámos como usávamos as peças, como as guardávamos, acabaram por ceder. Mas a Levi’s é incomum, porque as pessoas podem tornar-se muito apaixonadas pela marca e pelas peças de roupa. As coisas tornam-se muito pessoais e, quando sentem as peças a um nível pessoal, nada mais importa, não querem saber quanto lhes podemos pagar pelas Levi’s. Não que tenhamos um orçamento ilimitado. Às vezes, é preciso construir uma relação de confiança com os proprietários.

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E agora uma pergunta diferente, que talvez eu não devesse fazer, se calhar eu devia saber isto: de onde vem a designação 501?

Ah, sim, é uma boa pergunta. Originalmente, chamávamos-lhes overall ou, por vezes, XX ("double x"), por causa do tipo de tecido que era usado. Em 1890, a empresa incorporou e criou um inventário, um sistema de rastreamento. 501 era apenas um número de três algarismos para identificar os melhores produtos. Qualquer peça que fizesse parte da série 500 era do melhor. Os 501 eram os nossos primeiros pares de overalls. Os 507 foram os primeiros blusões da série 500.

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Então, a Levi’s tinha as séries 100, 200, 300…?

Bom, não todas. Tínhamos a série 200, que era menos cara, podias comprar o mesmo estilo, mas o emblema era em pano em vez de ser cabedal. As Viola são uma versão dessas. Têm um emblema que não é em pele. Uma estudante universitária [a proprietária original], sem muito dinheiro, provavelmente, optou por uma segunda linha. Estas são umas 401, são únicas. Não sabemos muito acerca delas, porque não as temos no nosso catálogo. Porém, como têm o emblema em tecido, eu sei que não são topo de gama, pois nesse caso teriam o emblema em pele.

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Como chegou à escolha, a esta, em particular, para esta exposição?

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Nós queríamos mostrar um espectro, que fosse dos primórdios até à atualidade. E é o que aqui temos, das peças mais velhas até às [Upcycled by] Miu Miu, que são, penso eu, do ano passado. Também queríamos integrar algumas das melhores peças que permitissem compreender onde é que nós começámos. Por isso, a secção de Firsts foi relativamente fácil, conseguimos identificar as peças rapidamente. Também quisemos integrar ligações a Milão, a Itália. Temos as casas de moda de Milão, temos [Andy] Warhol, com A Última Ceia. Algumas das escolhas são deliberadas, porque queríamos estabelecer essa ligação. Também queríamos encaixar os três temas: Icons, Innovations, Firsts. São todos um pouco diferentes, mas também se sobrepõem, estão ligados. Permitem-nos fazer comparações, não estritamente cronológicas. As 501 da Levi’s podem ser incorporadas nas três secções. Com esta seleção, conseguimos combinar os temas e ter a oportunidade de comparar.

Todas as peças presentes são design em estado puro. A função é importantíssima nestas peças. É transversal a toda a coleção.

É verdade. E acredito que essa é uma das grandes forças da Levi’s e a razão pela qual a marca tanto dura.

Conversa com Paul Dillinger:

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Como é que o passado inspira as coleções, no que respeita a inovação?

Quando tens uma peça de vestuário icónica, que as pessoas adoram, e essa peça pode mudar ao longo do tempo e durar 150 anos, isso cria um desafio interessante para o design. Para onde é que devemos olhar? Podemos olhar para a beleza dos detalhes, para o que inspirou, para como as pessoas a adaptaram. Para mim, o que guardo é esta noção de que o meu trabalho não é desenhar para conseguir ter atenção agora; a minha tarefa é desenhar grandes peças vintage do futuro.

Portanto, existe logo uma projeção de legado quando imagina as peças?

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Sim. Até porque há muitas decisões de design que, feitas quando desenhas em busca de atenção, não se vão aguentar muito tempo. Tu e eu de certeza que temos um monte de coisas nos nossos roupeiros, más ideias, talvez, mas que foram ideias mesmo boas naquele momento. Tenho uma camisa verde incrível, de um designer britânico, é verde esmeralda, de seda. Comprei no momento, porque era o verde mais choque que eu alguma vez tinha visto. Nunca usei aquela camisa. Custo enorme, zero valor real. E certamente sem valor para daqui a cinco ou dez anos. Por isso, a inspiração que vou buscar ao Arquivo quando faço o restauro de peças, algumas com 150 anos, serve-me para imaginar como fazer peças de vestuário que perdurem. E também para me certificar de que não estou a desenhar um novo problema.

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Há qualquer coisa em comum, parece-me, entre aquelas calças, as Homer jeans, e aquele casaco pós-moderno, o Integrated Electronics Jacket. Tudo parece estar adaptado às necessidades reais de quem os usa no dia a dia.

É isso mesmo. A nossa patente, portanto aquilo que faz com que as Levi’s existam, é que os jeans se desfaziam em pedaços e nós inserimos rebites de cobre para os tornarmos fortes e assim resolvemos o problema. Problema, oportunidade, solução… Levi’s. E é isso. É só isso. A outra oportunidade é, se olharmos para as Circular 501 e para as Plant Based 501, descarbonizar materiais e resolver o desperdício. Porque as Circular são feitas de 40% de renováveis, de velhos jeans.

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Portanto, os novos desafios são de ordem ambiental e têm que ver com sustentabilidade?

Certo. Mas as peças são ambas 501 e se não lesses as letras pequeninas não terias a menor ideia [da forma como foram feitas]. Não é suposto saber-se. Porque a inspiração do design não tem nada a ver com atenção. Tem a ver com função e com não comprometer a função ao criar valor ambiental. Descarbonizar, sim, mas não deixes o consumidor saber. Resolve primeiro o desperdício criando sistemas circulares. Tu não precisas de saber disso. Eu preciso, mas tu não. E é esse o verdadeiro trabalho do design de hoje em dia. Se trabalharmos só em busca de atenção, para o Instagram, para tirar selfies, se for só isso que fazemos, então vamos sufocar no nosso desperdício. Se nos aplicarmos a encontrar soluções que se resolvam a si mesmas, como não produzir desperdício, que se resolve a si mesmo quanto a reduzir as emissões de carbono, esse é o grande trabalho do designer. O pensamento criativo deve ser alinhado com a busca por soluções, tal como aconteceu com os rebites. É a solução que interessa.

Não é complicado, o teu trabalho? Por um lado, queres fazer roupas que durem uma vida inteira; por outro, bem, a Levi’s vive de vender novas peças de roupa.

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Sim [risos], na teoria isso é um dilema. Esta empresa criou uma categoria e tornou-se uma marca líder global. Tudo a partir de um estilo e de uma cor: os jeans 501, prontos a vestir. Nós sabemos que existem oportunidades económicas a partir da produção responsável e ética. Foi por isso que lançámos a campanha no ano passado, e no ano anterior, "buy better, wear longer" ["compre melhor, use por mais tempo"]. Temos de lançar a mensagem, de usar a nossa voz e então conseguiremos influenciar comportamentos. Se há coisa em que o negócio é bom a encontrar o consumidor no ponto onde ele está. Por isso, encorajando o consumidor a ir até ao sítio certo, havemos de decifrar o enigma. Não estou preocupado com [a possibilidade de] arruinar o nosso plano de negócios por fazer produtos de qualidade. Se as minhas preocupações estivessem a sabotar as nossas vendas por fazer coisas que são demasiado boas… eu desejo já que isso aconteça [risos]. Não, esse nunca será o problema. A questão é, quando fazemos um bom trabalho, como é que contamos essa história, como é que encontramos o consumidor que se preocupa, como é que influenciamos comportamentos para chegarmos a um compromisso? E, no fim de tudo, como é que conseguimos regulamentação que faça o resto?

O que é que acontece quando uma peça vanguardista, como o Integrated Electronic Jacket, se torna obsoleta assim tão rapidamente? O que é que fazem com ela?

[Pausa para reflexão.] O que se faz com essas peças varia de país para país e tem a ver com a data de validade de um produto de acordo com a legislação. Uma vez expirado, há que separar as partes [neste caso específico] e reciclar a teconologia, reciclar os tecidos. Nem tudo é desperdício. E o que aconteceu com o nosso mais recente [Commuter Trucker Jacket with Jacquard by Google] é que o blusão recebia atualizações através das apps durante a noite. Armazenava dados sobre a atividade durante a semana e durante o fim de semana, criámos um interface que o tornava mais valioso para usar ao fim de semana, em que se podia ver as alterações, para que o utilizador compreendesse melhor a utilidade e a forma de usar. E durante a noite o casaco ficava ainda melhor. Entretanto, vieram as leis da privacidade a proibirem-nos de saber o que é que estava a acontecer [com o utilizador]. Mas foi um pioneiro em muitos aspetos.

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Há sempre um desafio novo.

Sempre um novo desafio. Mas durante quatro anos, aquela peça de vestuário foi constantemente ficando melhor e melhor.

Dirias que foi uma criação bem-sucedida, esse blusão?

[Risos] O sucesso pode ser medido de muitas formas. Quando trabalhamos com tecnologia, todas estas inovações refletem a melhor tecnologia do momento, só que os momentos mudam depressa.

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Ok. Mas foi um sucesso de vendas?

A versão 2 saiu para a maioria dos mercados europeus em março de 2020. Que mais aconteceu em março de 2020? O mundo inteiro parou de fazer compras e todas as lojas fecharam. Por isso não sei, não sabemos o que podia ter sido. Mas imagina todos aqueles blusões, com as suas baterias e as suas caixinhas, ao fundo da loja, a fazer bip bip bip, meses a fio, e nada acontecia. Porém, significa grande inovações e grande avanço em tecnologia de micro-encapsulamento à prova de água. Porque esta peça de roupa é impermeável, podes metê-la na máquina de lavar roupa.

E podemos ficar à espera de novos blusões, novas versões deste blusão?

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Estamos a explorar outras coisas muitíssimo excitantes. Eu tenho trabalhado nos modelos circulares, tenho trabalho nos modelos plant based, que é também trabalho que tem sido feito tendo em vista o conforto e a performance, porque a inovação não é feita de olho num só tópico, há vários. É importante falar destes dois. Porque queremos partilhar estas soluções e alargá-las o máximo possível.

O teu foco está agora nestes tópicos, na sustentabilidade?

Não, não é um foco principal. Isto tem de ser parte de tudo. Não é um foco no sentido de "eu tenho de fazer isto agora". Isto tem de ser feito em toda a parte a partir de agora. Há muito debate em torno da questão "é ou não é possível". Estas duas soluções, a descarbonização dos materiais e a viabilidade de uma grande percentagem ser reciclada, são ambos tópicos para consideração das políticas de produção de hoje em dia. Isto varia de país para país, de legislação para legislação, mas é da responsabilidade dos produtores menterem uma regulamentação que dê solução para a redução do desperdício. Essas duas soluções provam que muitas das coisas que muitas pessoas dizem que não podem ser feitas, podem absolutamente ser feitas. E não são apenas experiências, estão disponíveis para venda em todo o mundo. Estão nas lojas agora mesmo. Provavelmente, estão em saldos.

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