Já contaram os votos todos, os de dentro de portas e os de fora, e confirma-se que o Chega é a segunda força política com mais deputados eleitos, embora ainda tenha restado a alguns dos nossos emigrantes a consciência de que talvez não fizesse sentido premiar um discurso de ódio contra quem como eles, deixou o seu país de origem em busca de melhores condições de vida.
O país está, portanto, dividido ao meio, e ambas os lados sentem uma dificuldade quase intransponível de entender o que vai na cabeça do outro. Importámos dos EUA e dessa Europa fora o “fenómeno” do discurso de ódio, das fake news, da polarização, do ataque à pessoa em lugar de às ideias. Mais recentemente vence o extremo populista, o insulto e os rumores (não queria acreditar quando ouvi Ventura usar a acusação de Trump, mil vezes desmentida, de que os emigrantes comiam cães!), de forma semelhante, é preciso dizê-lo, a como nas últimas décadas se advogaram muitos dos excessos Woke, vindos de gente que cancelava violentamente quem se atrevia a discordar, criando um ressentimento crescente agora tão bem manipulado.
A questão é que em tempos de harmonia social, somos capazes de nos colocar no lugar do outro, mesmo que obrigue a algum esforço, e assim conseguir entender, ou pelo menos entender um bocadinho, porque pensa ou age desta ou daquela maneira, mas, quando os ânimos estão ao rubro, como agora, tornamo-nos incapazes de conversar. Ficamos imediatamente fora de nós, zangados, o sangue sobe aos neurónios, tapamos os ouvidos como uma criança quando a mandam para a cama e, o pior, é que não conseguimos separar a opção política de alguém da opinião geral com que ficamos dela — não nos parece possível que alguém inteligente e boa pessoa possa legitimar um discurso que vai contra todos os nossos valores mais sagrados. Como é que pode secundar a demagogia mais completa, deixando-se levar pelas emoções mais primárias? É seguramente burro, ignorante, talvez até mau.
E é assim que num instante que escapa à nossa vontade, nos tornamos iguais a eles. Sobranceiros, arrogantes, achando-nos melhores, mesmo que sejamos capazes de disfarçar esse sentimento de superioridade moral e intelectual. Mais, incendiados por dentro, passamos a ter uma ânsia não de convencer o adversário, mas de o esmigalhar. Não é bonito, mas confesso que o sinto sempre que vejo o desprezo de Trump pelas pessoas, pela liberdade, pela justiça, por instituições centenárias que representam o melhor que o mundo conseguiu construir. Ou, como reajo à crueldade e loucura de Putin ou a Netanyahu. É nisto que estou. É nisto que estamos.
Como recuperar a serenidade, sem deixar de lutar pelo que acreditamos, continuando a dar voz à nossa indignação, impedindo que o medo nos leve a conformarmo-nos e a deixarmos alastrar aquilo que consideramos o Mal?
A esperança está nas mulheres, claro. A análise do perfil dos eleitores dos diferentes partidos revela que as mulheres resistem melhor a conversas demagógicas cheias de testosterona, ao estilo do comentário futebolístico, e essa é uma boa notícia. Sabem por experiência própria que a vida não é simples e que as soluções dos problemas são necessariamente complexas e não vão lá com slogans vazios. Todos os dias gerem a vida familiar e a vida profissional, cuidam dos filhos, mas também dos pais e até dos avós, enfrentam injustiças salariais e discriminações e aplicam-se a encontrar respostas eficazes. Também estão mais próximas da nova geração, escutam os filhos e os amigos dos filhos, percebem os vazios que se criaram, a falta de apoio que em muitos casos sofrem da escola, a forma como são perigosamente influenciados pelas redes sociais. Não precisam de ler relatórios, nem de ver séries da Netflix para entender que, sobretudo os rapazes, andam à procura de causas e modelos que lhes deem sentido à vida, de atenção e respeito que os façam sentir amados e parte da comunidade, de ritos de passagem que alimentem a sua autoestima e evitem que se tornem presas fáceis de Andrews Tates e companhias. Acima de tudo, percebem que o discurso populista visa exatamente muitos dos direitos das mulheres, tão duramente conquistados.
O estudo “As bases sociais do novo sistema partidário português – 2022-25”, levado a cabo por Pedro Magalhães e João Cancela, dá-nos conta das preferências dos eleitores portugueses, segmentado por género, idade, escolaridade, e pode ser um primeiro passo para percebermos o que está a acontecer, e tornar mais eficiente o combate a um populismo que ameaça a democracia que há cinquenta anos conquistámos com a coragem de tantos. Simplificando, a AD conta com o apoio dos mais velhos, os pensionistas, o grupo etário que já viveu o suficiente para resistir ao Chega, mas que também tem os “vícios” de uma geração que os mais novos consideram causa de muitos dos males atuais. Quanto ao Chega, que já em 2024 foi o mais votado entre os homens com menos de 55 anos, reforça em 2025 a sua presença no eleitorado masculino. Quanto às mulheres, afastam-se de Ventura e preferem outros partidos, dispersando-se entre eles, mas com uma incidência geral mais à esquerda, esquerda que faz bandeira de licenças parentais pagas e mais prolongadas, de creches financiadas ou, por exemplo, do direito ao aborto.
Decididamente não podem cruzar os braços — o crescimento do populismo levou nos últimos dias os analistas políticos estrangeiros a concluir que Portugal deixou de ser a exceção ao movimento que corre o mundo ocidental, sinal de que a vacina contra o extremismo de direita com que a ditadura de Salazar nos inoculou dá mostras de estar a perder o efeito. Num tempo, em que também as vacinas estão na mó de baixo, assim como a evidência científica, exigirá muita persistência voltar a por a terra nos eixos ao ponto de que, desta vez, até o almirante encontrará mais dificuldades em imunizar-nos a todos...