"Desde o momento em que tive o período, que foi bastante jovem, sinto que perdi o controlo sobre mim. Foi traumático. Senti que a minha infância estava, de certa forma, a ir embora, mas mentalmente a minha cabeça ainda existia neste espaço de criança. Quando comecei a receber atenção através do meu corpo – seja de colegas da escola ou piropos e carros a apitar –, era estranho e assustador, porque, enquanto continuava a ser uma criança de 13 anos, as pessoas e os adultos tinham reações como se não fosse. Aconteceu com tanta frequência e intensidade que comecei a achar que essa atenção era uma coisa positiva e comecei ativamente a procurá-la. Acabei em situações para as quais não estava preparada. Achava que o meu valor dependia da atenção que recebia através do meu corpo.
Depois de experiências de abuso sexual e hipersexualização, acho que a única tática que consegui encontrar para ultrapassá-las foi passar por uma grande fase de experimentação em termos da minha aparência. Mudar o meu cabelo, a forma de vestir – nunca com uma direção definitiva, nem a tentar seguir uma tendência ou tentar ser outro tipo de pessoa, mas tentando encontrar o que me fizesse sentir bem sem ser pensar no que podia ser apelativo aos olhos dos outros.
Sentia muita raiva e tentei transformá-la em algo construtivo – não digo que tenha conseguido sempre, mas era essa a intenção. Durante o período de Covid, no qual estávamos dentro de casa, houve uma segurança em poder reavaliar-me e uma certa obrigação em estar apenas comigo, sem julgamento exterior (positivo ou negativo). Comecei a refletir sobre todas as coisas que condicionavam o meu corpo, deixei crescer os meus pelos, rapei o meu cabelo, comecei a vestir coisas nas quais estava verdadeiramente confortável. Fui testando para ver como as coisas mudavam, em mim ou nos outros, e o que percebi é que as pessoas vão ter sempre opiniões, mas, se estiveres bem contigo, não tem esse impacto. Isso retira-lhes esse poder. Se estás confiante e tens a coragem de o fazer, a probabilidade de alguém te dizer alguma coisa é muito pouca.
Consciente ou inconscientemente, sempre fui atraída pela figura feminina. Na faculdade, comecei a olhar para artistas dos anos 70 e 80, um dos momentos fortes em termos de performances e que simbolizou quase um build-up, uma panela de pressão que teve de ser libertada. As pessoas podem olhar para essas performances e achar que é loucura, mas eu vejo-as como uma necessidade de digerir essa loucura para ela não te consumir. Comecei a pesquisar sobre vários performers e conheci algumas pessoas que já tinham explorado esse território e comecei a fazer, primeiro para poucas pessoas, agora para muitas. Nessa altura, conectei-me de novo com o barro, que também tinha sido algo que tinha trabalhado quando era mais nova, e parece que tudo começou a fluir. O que mais gosto no barro é que é muito semelhante à nossa pele, ao nosso corpo, no sentido em que cresce e diminui, estica e parte. Outro dos factos que me despertou a atenção foi o de algumas tribos africanas constituídas só por mulheres conseguirem subsistir através do barro, da venda de peças, e daí terem ganhado a sua independência.
Também queria tentar fazer performances porque era quase como um teste: ‘Será que posso mesmo relacionar-me com o meu corpo e num espaço com outras pessoas e ter este controlo de volta?’ Ao início, era desconfortável colocar-me nesta posição em que nunca mais tinha estado desde que era um bebé, que estava nua na praia e a brincar e enrolada na areia. Aí, és só uma criança e estás a explorar o mundo através do teu corpo, tal como os animais. A performance não é a única forma de o fazermos – de atingir esse estado quase infantil, natural, nativo – mas para mim é. Por nunca ter tido oportunidade de expressar a minha angústia, ou ter tido tentativas de comunicar – mas as pessoas não sabiam como digerir ou o que dizer –, sinto que, finalmente, posso contar o meu segredo num lugar seguro onde vai ser aceite. Parte dessas performances foi expressar o que me aconteceu e estar num lugar onde as pessoas vão recebê-lo sem acontecer nada. No bom sentido. Sem ter pessoas a não acreditar ou a serem rudes, isso também é bastante healing. Sendo um contexto em que não só estou nua, como a interagir com o barro, as pessoas veem essa vulnerabilidade e percebem. Não têm outra resposta a não ser serem empáticas. Cada vez mais temos tendência para ser duros e frios uns com os outros, mas acredito que a única forma de nos entendermos é ao sermos vulneráveis."
Texto originalmente publicado na revista anual da Máxima, de novembro de 2024.