O que é um ano? O que são 365 dias? São estações, folhas gordas e verdes, depois douradas, seguidas de ramos nus e despidos. São aniversários, Páscoas, Natais, correndo ao sabor do tempo com a cadência despreocupada de um calendário largando, também, as suas folhas em direção a mais um ano cumprido. Exceto o que passou que foi tudo isso e muito mais.
O ano de 2017 foi o do meu "nascimento" como mãe quando o Thomas, o meu filho de então três anos e meio, recebeu o diagnóstico de autismo. Não foi um diagnóstico inesperado. O Thomas nasceu forte, ágil e saudável, em 2014. Mas os anos passaram e as palavras não surgiam. As birras jorravam inesperadas e longas, imbuídas de um desespero pouco comum. O sono nunca se cumpria a noite toda, mesmo com rotinas e com especialistas. A nossa rotina de pais passou a ser feita de turnos, para o outro poder dormir. As saídas faziam-se sempre de carrinho porque a noção do perigo na estrada estava simplesmente ausente. Dar a mão prazenteiramente não era uma opção, pois se o Thomas estava livre era sempre para correr sem nunca parar. Os nossos olhos de pais nunca baixavam a guarda enquanto ele corria, rebolava, saltava nos sofás ou abria os joelhos, em sangue, sempre sem chorar pois nada o parecia magoar. O seu pequeno nariz estava sempre enfiado na fonte de um cheiro particular como se o quisesse absorver todo, como se a sua vida dependesse disso. Os seus dedos ondulavam em frente aos olhos em movimentos constantes e, quando o seu nome era chamado, a cabeça raramente virava para responder. Os brinquedos e os peluches acumulados ? "para ver se deste ele gosta" - permaneciam intocados debaixo de uma fina camada de pó e de angústia. "E hoje, esteve bem? Brincou com alguém?" A frase era repetida diariamente pelo fim da tarde quando o íamos buscar à creche. "Esteve bem, sim, a brincar sozinho. Mas sabe como é, as crianças levam o seu tempo. Não se preocupe, eles crescem ao seu ritmo."
Eles crescem ao seu ritmo, sim. Mas o ritmo do Thomas era outro. O ritmo do Thomas eram horas passadas à frente do YouTube com um fio de esparguete seco a servir de arco de violino, a observar e a imitar orquestras a tocarem concertos inteiros. Com um ano e meio, o fio de esparguete pontuava com precisão as Quatro Estações, de Vivaldi, ou os concertos de Brandenburgo, de Bach. As tardes podiam voar e o Thomas permanecia, entoando a melodia e mais tarde sem ela, agitando o fio de esparguete no ar à cadência da música ausente, mas presente nos seus ouvidos. As palavras não vinham, as outras crianças eram adereços toleráveis nas horas dos seus longos dias, mas outras linguagens emergiam. O Thomas não sabia pedir sumo, mas debitava frases completas ouvidas em desenhos animados e sabia os concertos de música clássica de cor. E nós, que os conhecíamos também, entrávamos assim no nosso espaço privado de entendimento e esperávamos. Esperávamos pelo dia em que seríamos ouvidos e validados. O dia em que alguém nos ia finalmente dizer que o ritmo do Thomas não era o de mais ninguém.
Naquele dia, ouvir as palavras dos especialistas foi confirmar essas suspeitas sem grandes alaridos. Não o sentimos como uma tempestade, mas talvez como uma chuva fininha, antecipada, para a qual nos havíamos preparado de sobra. Chegámos a casa, fizemos as malas e deixámos Londres. No dia seguinte partimos de férias, rumo a Portugal. Afinal de contas, nada mudara. Agora, finalmente, teríamos apoio e mais recursos para lidar com a situação. Nada mudara, mas nada jamais seria verdadeiramente igual. Lentamente, debaixo de um sol abrasador, com os pés na água do mar e o mundo à nossa volta a girar, absorto na sua mundana normalidade, a nossa chuva começou a cair, já não fina e silenciosa, mas persistente. Gotas grossas a deixarem marca na pele bronzeada. Todas as tropelias do Thomas, as corridas intermináveis, as acrobacias performativas para os pais das outras crianças, todos os seus comportamentos socialmente diferentes, sempre canalizados e contextualizados por nós para o proteger, apoderavam-se de mim com uma força desconfortável. Sentia-me irritada comigo mesma, com ele, sabendo de antemão que tudo aquilo que ainda podia passar por comportamento de criança pequena tinha os dias contados.
Lentamente, debaixo daquele sol incandescente, a tomada de consciência de que a nossa vida mudara ganhou forma. As lágrimas teimavam em correr por detrás dos óculos escuros ou à noite enquanto lavava os dentes ou ajeitava o lençol por cima do seu pequeno corpo adormecido, molhando os seus caracóis macios. Tudo mudara porque a esperança remota de que a sua diferença talvez se enquadrasse num atraso de crescimento estava finalmente extinta. E agora, na verdade, estávamos de luto pela nossa viagem como pais, imaginada, desenhada, colorida pelas experiências de tantos outros pais antes de nós. A nossa viagem não seria mais a mesma. A raiva, a dor, a aceitação, todas as fases desse luto, não pelo nosso filho maravilhoso, mas pela nossa experiência como pais, estavam agora a emergir. No entanto, nesse preciso momento, tínhamos uma escolha: passar o resto dos nossos dias a chorar a perda do nosso itinerário imaginado ou estender na mesa um novo mapa, redesenhar a viagem, reimaginar a nossa parentalidade e seguir em frente.
Aprender, reconstruir e renascer
Um ano volvido, renascidos como pais em vivências, planos e aprendizagem, começámos a ver o mundo por outro prisma. Mas um ano é apenas o começo. Como se escolhem as palavras? Como se absorvem os conceitos e as definições ao mesmo tempo que remendamos um coração partido? Como se vive a diferença sem discriminar? Qual a linguagem correta a utilizar? O que é facto, o que é adereço ou simplesmente falso? Como se educa o mundo em que o nosso filho vai viver, ao mesmo tempo que aprendemos também? Como se faz isto tudo enquanto se processa a dor do que se perdeu e se abre a porta a uma nova vida e a tudo o que também se ganhou? As respostas não vieram rapidamente e, certamente, não as encontrámos nos livros, nos documentários e nos grupos de apoio, mas sim nos episódios diários da nossa nova história, no supermercado, na rua, nas festas de aniversário, nos parques infantis. De início, explicar a diferença aos outros não me parecia importante. O meu filho tinha direito a estar e a existir sem justificações da minha parte. No parque, sentada ao lado de uma outra mãe enquanto o meu filho trepava e rodopiava, mantive a minha distância até ao momento que a filha dela, da mesma idade que o Thomas, decidiu que era a mim que me ia contar como estava ansiosa pela festa de anos do irmão, nessa tarde, e que iam beber sumo, mas não muito porque a mãe não deixava. Sorri e assenti. "Mas que bom", disse, a voz falhando à medida que um nó apertado me enchia a garganta.
Depois, já era a mãe que comentava as coisas engraçadas que as crianças dizem. Eu ponderei entre assentir e consentir ou falar e contextualizar. E falei. "O meu filho é autista e ainda não fala muito", disse eu, sem explicar que, aos três anos, ele não sabia pedir sumo, muito menos falar do que a mãe permitia ou não em festas de anos. E ela ouviu, sem julgamentos, dizendo apenas que na turma da sua filha também havia um menino autista, o que era ótimo porque ensinava à criança a importância da diferença e da diversidade. Bem-intencionada, com o coração no lugar certo, o que aquela mãe me acabava de dizer era que o meu filho e outros como ele serviam um propósito educacional, como adereços numa lição sobre a deficiência. E, no entanto, como poderia eu julgá-la? Na verdade, antes, eu era como ela. No passado, eu teria dito algo semelhante, estável na minha metade do mundo onde tudo era previsível, observando, a uma distância segura, a metade dos outros, a metade das experiências sobre as quais sabia pouco, mas também não queria realmente saber mais. Mas, agora, o meu filho vivia nessa outra metade e isso fez-me pensar sobre como, durante anos, eu contribuíra para manter o mundo assim, nesse apartheid da diferença, onde as portas de entrada e de saída são distintas e apenas nos cumprimentamos com acenos de cabeça ligeiros e sorrisos mornos de pena e de exclusão, sem nunca darmos as mãos.
Antes do Thomas achava que olhava a diferença e a deficiência com uma atitude informada e aberta, deitando uma moeda na caixa da instituição de caridade mais próxima antes de seguir caminho junto da maioria, dita normal. Sem grandes pensamentos sobre o assunto, olhava a diferença em pequenos vídeos inspiracionais no Facebook, em que pessoas com deficiência superam obstáculos, servindo assim o propósito de levantar a minha moral, tipo ‘Se eles conseguem, quem sou eu para me queixar da vida?’. Que coragem, que motivação! Nunca parei para pensar como esta visão desumaniza e diminui as pessoas com deficiência ou com habilidades diferentes, reduzindo as suas experiências, obliterando, ou pelo menos ofuscando, tudo o resto que as torna pessoas inteiras e transformando-as em mascotes de inspiração para os restantes. A pessoa com deficiência, merecedora de pena ou de admiração pela sua deficiência, objetificada de uma forma ou outra. Mas e a pessoa que reside para além dessa deficiência e que vive debaixo destas camadas de julgamento social? Sair dessa narrativa é uma tarefa hercúlea. Ao dar os primeiros passos no nosso novo caminho, comecei a perceber o quão importante a linguagem é. As pessoas são deficientes ou têm deficiência? O meu filho é autista ou tem autismo? Se eu disser que tem autismo estou a dizer que o autismo é algo com o qual vive, mas que não o define. Se disser que é autista estou a colocar-lhe um rótulo que lhe retira oportunidades e convida ao julgamento. Mas, ao mesmo tempo, se eu disser que tem autismo estou a negar algo que efetivamente o define, pois o seu cérebro está conectado de maneira diferente do meu, desde o seu concebimento e assim será para sempre. O autismo não se apanha, não é uma doença, e a maior parte dos autistas considera que essa condição é parte integral da sua identidade e, por isso, preferem o termo autista.
Em termos práticos, caberá ao Thomas decidir como prefere ser identificado, mas, por ora, a responsabilidade de respeitar e de promover a sua neurodiversidade é minha. Eu escolho, por isso, dizer que o meu filho é autista porque não quero abafar, moldar ou adaptar as suas características inerentes, tudo aquilo que o faz ser ele, em detrimento de usar um termo soft, de fácil digestão para a sociedade que o rodeia. Sim, no ano que passou eu mudei de opinião relativamente a não ter de explicar às pessoas nada sobre o meu filho. Sim, o meu filho tem o direito a existir sem justificações, mas as pessoas não nascem ensinadas e, como seres humanos, tememos e fugimos daquilo que não entendemos. Por isso, cabe-me, como mãe, oferecer essa informação, esse contexto para as pessoas poderem depois mostrar aquilo de que são feitas: seres inteiros, abertos e inclusivos, ou seres limitados, com ideias feitas, organizados em caixas, por cores, jamais dispostos a serem perturbados na ordem desse apartheid que separa os diferentes dos ditos "normais". Na verdade, é fantástico como, rapidamente, conseguimos separar o trigo do joio, fazendo novos amigos ou evitando perder tempo com quem não o merece. Sim, temos desafios e, por vezes, as lágrimas caem. Alguns dias são pesados, difíceis, como tentar andar em areias movediças com pesos nos tornozelos. Aprender significa abrir a mente e questionar o que achávamos saber, mas quando se abrem as portas também se convida uma certa vulnerabilidade e as emoções variam, de forma quase selvagem, da esperança confiante ao desespero sem luz ao fundo do túnel. Juntei-me a vários grupos de apoio no Facebook, comprei os livros, percorri os websites, a informação e a desinformação de mãos dadas com casos de sucesso e dificuldades extremas, estatísticas, terapias adequadas, terapias abismais, supostas terapias que mais não são do que puro abuso, tudo a unir-se num vórtice de pontos de interrogação e de angústia que me manteve acordada pelas noites dentro. Seguir por essa via implica arriscarmo-nos a perder de vista a própria vida enquanto estamos ocupados a antecipá-la.
Entender o autismo e mudar o disco, partindo da narrativa da diferença
O espectro autista é vasto e a ignorância sobre o que é, na verdade, o autismo também. A neurodiversidade é um desafio e, ao mesmo tempo, uma verdadeira dádiva, repleta de visões e de capacidades diferentes que, se suportadas e respeitadas, promovem não só a integração dos autistas na sociedade, como a sua própria evolução. Por isso, tentar formatar os autistas para não destoarem na sociedade é retroceder e eliminar a diferença, em vez de a celebrar e de promover a inclusão. Quando eu vejo terapias que anunciam os seus sucessos em normalizar comportamentos, em vencer o nevoeiro do autismo, em acabar com o mundo de isolamento, com os comportamentos físicos como as estereotipias (movimentos repetitivos que os autistas usam para se acalmarem ou para canalizarem a sobrecarga sensorial do mundo que se lhes apresenta caótico), sinto arrepios na coluna. "Normalizar", "endireitar", condicionar para não destoar. Esta não é a nossa rota. Queremos que o nosso filho viva a sua diferença de forma confortável e livre, e que não se sinta confinado e delimitado por ela porque não está doente. Apenas é diferente. Se nós somos neurotípicos, por definição, o Thomas é neurodivergente.
O seu cérebro funciona com um sistema operacional diferente do meu e, por causa disso, o mundo é vivenciado e processado de maneira distinta. Viver a vida como um autista é, efetivamente, descodificar um mundo onde as palavras "ordem" e "linearidade" simplesmente não existem e, no entanto, continua a ser necessário viver nesse mundo à velocidade dos outros para quem as suas regras e as normas sociais são tão naturais como beber um copo de água. Quando ouço o clássico "Estamos todos no espetro de uma forma ou de outra" apetece-me recomendar a essa pessoa que experimente passar o dia a tentar falar Português com Gregos com acesso ocasional a vocabulário armazenado em sítios diferentes do cérebro, eletrificados, onde por vezes há curtos-circuitos enquanto uma banda de heavy metal toca em alto e bom som. Porque apesar de todos os autistas serem diferentes e não partilharem todos da mesma experiência sensorial ? o espetro é vasto e os desafios variam ?, muitos processam o mundo assim e grande parte tem problemas com excesso de informação e interação social a um nível que uma pessoa neurotípica nunca terá. Um autista navega num caos sensorial durante grande parte do tempo e luta para viver num mundo que não está construído para ele ou para ela. E, no entanto, tem tanto a contribuir. Mesmo sem palavras porque há muitos autistas não verbais. Os autistas têm tudo a dizer.
Num dos grupos a que pertenço há uma rapariga autista, de 26 anos, que falou durante um tempo e, um dia, deixou de conseguir usar as palavras. Simplesmente não consegue falar. No entanto, é eloquente quanto baste a nível escrito, foi aceite na Universidade de Cambridge e está a tirar cursos de farmacologia e de neuropsiquiatria. Cambridge não durou porque, apesar de entender fórmulas complexas, ela não consegue lidar com o caos sensorial, nem participar em situações sociais sem ajuda. E, claro, a ajuda pouco existe. A inclusão, essa quimera longínqua, está longe de ser uma realidade e, por isso, pessoas como ela acabam a viver em residências para doentes mentais onde são submetidas a mais caos e mais desentendimento, levando a comportamentos violentos e situações de marginalidade. Esta rapariga tem um QI de 160 e, no entanto, acaba muitas vezes detida pela polícia na sequência de fugas motivadas por meltdowns sensoriais porque vive sem ser respeitada na sua diferença. É este o mundo que queremos? Um mundo em que pessoas com neurodiversidade, muitas vezes com capacidade de contribuir de formas válidas e importantes para o avanço da Humanidade, continuam a ser marginalizadas porque as queremos moldar ao nosso ambiente em vez de adaptar o ambiente às suas necessidades? Certamente que não.
Como mãe, eu não posso mudar o mundo, mas posso abrir brechas sísmicas nas placas tectónicas da sociedade, passar a mensagem, bater às portas, pedir apoio, educar, mudar mentes, lutar e nunca desistir porque o meu filho merece que eu olhe além das cercas e veja o mundo todo que ele pode e deve ter. Ele merece que eu o faça sem pensar que um diagnóstico é o fim do caminho, sem sermos vítimas, sem vivermos suspensos nas angústias das estatísticas, antecipando cenários e perdendo de vista a vida que é para viver agora. O Thomas é um rapazinho que usa o nariz como caixa de ritmo de uma peça de música que sabe de cor, que vê geometria, cores e números e os utiliza para comunicar quando as palavras não vêm, que todos os dias nos surpreende com as suas conquistas, desafiando as fronteiras dos nossos corações com cada sorriso e abraço apertado. E porque celebramos todos os momentos, todas as vitórias na batalha para o integrar no sistema educativo ou simplesmente o momento em que ele, finalmente, pede "Sumo, por favor", temos magia à nossa volta todos os dias. E há tanta magia para agarrar quando deixamos os rótulos de parte e nos permitimos a viver a nossa vida. Eu sei que os dias não serão sempre de sol, que muitas vezes haverá implosões com a força nuclear que só um meltdown sensorial pode ter, mas estamos a caminho, temos um mapa e sabemos onde fica a estrada. O resto pertence ao horizonte.
ABC DO AUTISMO
O autismo é:
Uma desordem do desenvolvimento que afeta a comunicação, as relações sociais e a forma como o mundo é vivenciado, com desafios sensoriais.
Um espetro vasto. Conhecer um autista é conhecer um autista. Os autistas são todos diferentes e têm dificuldades e habilidades distintas.
O autismo não é:
Uma doença física ou mental.
Um atraso cognitivo, ainda que possa ser acompanhado pelo mesmo ou por outras síndromas.
O autismo não tem cura, não se apanha como uma doença, nem é adquirido através de vacinas ou de medicamentos.
Um meltdown:
Não é uma birra. É uma perda de controlo total, uma resposta intensa a uma sobrecarga de informação sensorial como uma garrafa de Coca-Cola agitada cuja tampa é depois retirada.
*Joana Mateus é jornalista e autora do blogue Mind The Mummy (www.mindthemummy.com). Vive em Londres com o marido e Thomas, o filho de quatro anos e meio.