Joana Gomes Cardoso: “Acredito mais na sociedade civil do que nos partidos políticos”

Perante desafios é capaz de atravessar oceanos –assim é Joana Gomes Cardoso, comissária-geral de Portugal na Expo Osaka 2025. Já foi jornalista, dirigiu a Amnistia Internacional em Bruxelas e em Lisboa. Tem um percurso sólido na área da Cultura em Portugal. Esteve em muitas reuniões em que foi a única mulher.

Foto: Gonçalo F. Santos
09 de janeiro de 2025 às 07:00 Maria João Veloso

Na sala de estar, a luz e a sombra de um quase outono, um piano fechado e um livro de lombada larga que tem inscrito (Haruki) Murakami, destaca-se no meio da estante na qual repousam os outros livros. Tantos. Joana, espontânea, sem maquilhagem, gosta de contar histórias e de pessoas.

2025 será um ano diferente para a antiga jornalista. Como comissária-geral da Expo Osaka, irá para o outro lado do mundo durante uns meses. Quando foi sondada para o cargo, o Japão era uma memória antiga – viveu em Tóquio entre os 14 e os 16 anos.

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Enquanto refletia sobre a possibilidade de aceitar (ou não) o desafio, tudo a ligava àquele país. "Gosto de pensar no Japão como um vulcão que estava adormecido dentro de mim", explica. Um amigo oferecera-lhe O Elogio da Sombra, do escritor japonês Tanizaki, que, entretanto, se tornou um livro de cabeceira.  "Li o livro e identifico-me tanto com o que está ali. É engraçado como, com esta missão, o Japão voltou em força à minha vida." Não era assunto de que falasse com os dois filhos. "Agora, estamos todos a aprender japonês e tornou-se um projeto de família."

Foto: Gonçalo F. Santos

Viver no Japão no princípio dos anos 90 não foi fácil. Não havia internet, apenas faxes, telefonar para Portugal era caro e as cartas demoravam cinco dias a chegar ao lado de cá. Aterrou na capital japonesa a meio do ano letivo e, nos primeiros tempos, sentiu-se muito infeliz. "Vinha das pradarias da Suíça e achava tudo horrível. A minha mãe dizia-me: olha para cima. No caso de Tóquio há obras de arquitetura extraordinárias." Acabou por fazer amigos, mas, quando finalmente estava adaptada, mudou-se para outra cidade.

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Hoje, constata que os dois anos em Tóquio a marcaram de forma profunda. "A estética japonesa diz-me muito. Gostar de arquitetura tem que ver com o facto de me confrontar com aquela arquitetura tão diferente da nossa." Dá o exemplo do conceito de imperfeição wabi-sabi: "Quando uma taça se parte, colam-na e abraçam a ideia de imperfeição. No fundo, é saber lidar com o que corre bem e com o que corre mal. Sou um bocado assim, perante os momentos difíceis vou em frente."

Seja na Gulbenkian como consultora de assuntos culturais e coordenadora de projetos especiais, seja como comissária de Portugal na Expo Osaka 2025, Joana garante: "Em tudo o que faço está presente tudo o que já fiz."

Se o jornalismo lhe trouxe mais-valias à vida profissional, ter emprestado o quarto a refugiados timorenses que iam depor às Nações Unidas – em Genebra – fê-la abraçar a causa dos Direitos Humanos. Quando foi vice-presidente da Amnistia Internacional em Lisboa percebeu o quão frágil é a sociedade civil portuguesa, e deixa a promessa: "Um dia vou querer voltar a trabalhar a sociedade civil. As democracias são mais saudáveis, se a sociedade civil tiver força."

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Filha do historiador António Monteiro Cardoso e da diplomata Ana Gomes, a comissária passou a adolescência entre cidades cosmopolitas como Genebra, Tóquio e Londres. Até aos onze anos viveu parte da infância com os avós paternos, no bairro de Alcântara. Uma costela transmontana que a fazia ter os pés na terra. "Tive uma família presente e estável. Os meus pais separaram-se quando era pequena, mas ficaram sempre muito amigos. O meu pai vivia cá, nem viajava especialmente. Viajou sobretudo para me visitar. Com a minha mãe, tive outras vivências. Foi bom ter tido os dois lados. Andei na escola primária de Alcântara, a partir dali frequentei escolas internacionais. Tive acesso a situações que jamais teria noutro lado." Numa semana era convidada para ir ao backstage de um concerto dos Depeche Mode, em Tóquio, e na outra levava um banho de realidade pura e dura, em Lisboa.

Outra memória que reviveu no Japão foi um dos sabores da infância: o sabor dos rebuçados que comia há 30 anos. Essa foi uma das muitas sensações que teve quando regressou a Osaka, já a propósito da exposição mundial. "Dei por mim nas ruas da cidade a sentir-me uma adolescente. Tive alguns flashes que me transportaram para os anos 90", lembra. Andou sozinha. Ela e o seu "japonês meio enferrujado".

O caminho de Joana fala por si. A mãe era viciada em notícias e ela cresceu com a televisão e a rádio sempre ligadas. Desde os 14 anos que queria ser jornalista como Christiane Amanpour. A repórter da Guerra do Golfo ou do Cerco de Sarajevo. Tinha uma ideia romântica do jornalismo. "Era essa cobertura de cenários de conflito que me interessava." Estudou Relações Internacionais com esse objetivo, ainda hesitou em mudar para diplomacia, uma área que lhe era familiar, mas era a ideia de andar no terreno que lhe interessava. Identifica-se com Calamity Jane, como referiu num questionário Proust ao jornal Público. "Gosto de estar no terreno e é irónico, hoje estou bastante longe disso", conclui.

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Mas nem sempre foi assim. Por causa de uma escala de 48 horas que fez na Índia, tornou-se – com pouco mais de 20 anos – correspondente da CNN em Nova Deli. "Os meus pais tinham um amigo em Nova Deli. Pedi para fazer uma paragem na capital indiana. Foi uma revolução na minha cabeça. Aos 15 anos, fui sozinha ao Taj Mahal." Dez horas de autocarro, num tempo sem telemóveis. "Tive a maior sensação de liberdade da minha vida, fiquei fascinada. Há um livro de Salman Rushdie, Os Filhos da Meia Noite, e sinto que aos 15 anos, sem grande perceção do perigo, vivi tudo aquilo."

Foto: Gonçalo F. Santos

Do tempo de produtora júnior em Nova Deli, recorda uma noite eleitoral em que ganhou o Partido do Povo Indiano. "Estávamos em Old Delhi – um bairro com muita gente –, e acontece aquele clássico da Índia, que parece invenção:  aparece um elefante. Criou-se um fenómeno de massas. As pessoas, a fugirem do elefante, caíram-nos em cima. Caímos todos. Sair dali foi complicado. Felizmente o operador de câmara era experiente e forte. Tínhamos os tripés e, graças a isso, conseguimos sair dali. Mas foi complicado. Acho que nunca contei isto à minha família."

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Como colaboradora da CNN nas Nações Unidas, recorda uma história divertida. Calhou receber Ali Alatas – diplomata indonésio – numa altura em que Portugal e a Indonésia estavam praticamente de relações cortadas. Explicou a questão ao chefe, que lhe disse: "Estás a brincar? Mais uma razão para o ires receber." Consideraram-na norte-americana. Quando se volta a cruzar com a comitiva indonésia, estava Jaime Gama, então ministro dos Negócios Estrangeiros, que a chamou com familiaridade: "Joana!"

Ali Alatas perguntou a Jaime Gama: "Sabe quem é esta senhora?" E o estratega português lá lhe respondeu. Neste caso era "só" a filha da figura cuja influência foi enorme na independência de Timor-Leste.  Se a delegação indonésia não achou muita graça, Alatas observou, com humor: "Vocês portugueses estão por todo o lado."

Em várias alturas da vida viveu fora de Portugal, por isso impunha-se a pergunta. O que lhe ensinou Lisboa, no regresso à base? A resposta é imediata: "Durante uns anos dei explicações a crianças do Primeiro Ciclo, na Cova da Moura, e essa experiência abriu-me os olhos para uma realidade que desconhecia completamente." Presidente do Conselho de Administração da EGEAC entre 2015 e 2022, Joana diz que este cargo fê-la olhar para a cidade de forma mais política. Preocupam-na os índices baixos de participação cultural dos portugueses e tentou conciliar os horários dos espetáculos com os dos transportes públicos.

Um dos seus orgulhos são os concertos Gulbenkian no Parque Vale do Silêncio, "uma zona belíssima que até então ninguém usava". Aí descobriu as marchas populares. "Fiquei mesmo fã.  A dimensão popular e bairrista da cidade através das marchas tem uma expressão fortíssima." Grande parte dos marchantes já nem sequer vive em Lisboa e, na televisão, não se percebe a "dedicação e o carinho que está ali."  Descobrir este sentido de comunidade foi importante para Joana, que vinha de Bruxelas, onde foi correspondente de Estudos Europeus e, mais tarde, diretora do gabinete europeu da Amnistia Internacional. "Vivi em Lisboa até aos 11 anos. Toda a gente se conhecia, havia pelo menos vinte pessoas a brincar na rua depois da escola." Voltou ao país com esta ideia romântica. "Fui morar para o Bairro Alto, com a típica síndrome do emigrante, que vinha à procura das suas raízes. Os meus filhos eram grandes entusiastas dos arraiais."

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Foto: Gonçalo F. Santos

As políticas públicas interferem muitas vezes na sua agenda, quando o objetivo é tornar a Cultura mais acessível aos que não a têm de forma imediata. Ou quando se verifica que há ainda quem tenha medo de entrar no teatro ou num museu. A paridade de género, a falta de representação étnica, a mulher portuguesa ter uma vida particularmente difícil, ou estar numa reunião em que é a única mulher são questões que a preocupam mais do que ser ainda "a filha de" nos títulos de alguma imprensa. "Não tenho redes sociais, não vejo televisão, não faço googles sobre mim própria. Como comissária – mesmo sendo um lugar não remunerado –, houve quem quisesse transformar isso numa nomeação política."

Polémicas à parte, o Pavilhão Português inspirado nos oceanos e de autoria de Kengo Kuma "irá mostrar muita arquitetura portuguesa". Joana sublinha que não teve nada que ver com a escolha do arquiteto japonês. "Quando cheguei, ele já tinha sido selecionado."

Se há a previsão de que 80% dos visitantes da Expo Osaka 2025 sejam japoneses, "temos de mostrar um Portugal que eles tenham vontade de conhecer". É certo que já existem japoneses interessados por fado, Mísia ou guitarra portuguesa, mas é, no entanto, também urgente, "dar o salto para lhes mostrarmos que somos do presente".

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Estreitar laços e suprimir a enorme distância geográfica não será tarefa fácil, "mas somos mais próximos do que imaginamos". Ser em simultâneo o país que tem uma ligação histórica, mas cujo maior desafio é projetar-se como uma sociedade contemporânea e de futuro. Por cá, quer desenvolver, em paralelo, o programa Osaka Portugal. De Freixo de Espada à Cinta ao Algarve. "Há histórias insólitas sobre o Japão em vários pontos do país. Estou muito feliz com a representatividade geográfica que vamos conseguir", argumenta.

Em 2025, Joana fará 50 anos. Tranquila com o seu percurso profissional, salienta que tem trabalhado com pessoas de cores políticas diferentes. "Não sou de nenhum partido, acredito mais na sociedade civil do que nos partidos."

Texto originalmente publicado na revista anual da Máxima, de novembro de 2024.

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