Samuel Úria: “todos os palcos que conseguir “agarrar” vou agarrar como se fossem os últimos”
Em O Muro, Contenção ou Aos Pós, o artista de Tondela cruza memórias e canta histórias. Em breve, poderemos vê-lo de regresso aos tão ansiados concertos.
Se não soubéssemos que tinha sido escrito e produzido no ano passado, diríamos que o novo disco de Samuel Úria tinha sido pensado e criado em plena pandemia. Um artista completo, atento às dinâmicas do mundo, cruza-as com o novelo de ideias que se emaranham e desemaranham dentro de si mesmo, e brinda-nos com a bela poesia cantada com que alcançou um lugar dourado como um dos cantautores portugueses mais promissores.
Em Canções do Pós-Guerra, disponível a 18 de setembro, Samuel Úria está longe de ter que provar que é promissor, é já um artista de cartas dadas, e este novo disco é apenas um presente amadurecido que oferece ao mundo da sua mais pura essência musical. Tanto Muro, como Contenção, Aos Pós ou Tempo Aprazado têm videoclips na baixa pombalina, aquilo que parece ser também uma ode à Lisboa quase deserta destes tempos estranhos. Samuel Úria sobe ao palco do Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa, a 6 de outubro e ao da Casa da Música a 7 de outubro.

Canções do Pós-Guerra também poderia ser Canções do Pós-Pandemia. Vivemos tempos de luta para os artistas?
É curioso que o título tinha sido escolhido ainda antes do confinamento, ainda nem havia casos de coronavírus em Portugal e não se esperava toda esta reclusão e tudo aquilo que se seguiu. Foi quase profético. O disco foi todo gravado entre o verão e o inverno 2019, excepto janeiro, quando ainda houve uma sessão. Quando o disco começou a ser idealizado, ainda pensámos que pudesse sair no final do ano passado. Estava tudo marcado para abril deste ano, agora os concertos começam em setembro (espero que se realizem!).
Este disco nasce de um lugar de esperança? Que histórias se escondem por trás das suas composições?
Não sendo propriamente autobiográficas, porque nem todas partem de relatos que aconteceram comigo, as canções partem do meu interior. É um disco bastante pessoal. A ideia e o conceito do disco nascem da amplitude lexical do próprio conceito do pós-guerra. Existe um pós-guerra muito definido no contexto literário, pela malta que começou a escrever depois da Segunda Guerra, sobretudo na poesia, e eu andava a ler alguns autores desse período. Mas depois o pós-guerra pode contemplar tudo: uma data de conflitos, sejam eles bélicos, sejam eles interiores. Até o meu guerrear com as minhas próprias características. Eu apercebi-me que essa amplitude do conceito me permitiria escrever canções que de alguma maneira fossem histórias de sobrevivência, de conflito ou de recordações dolorosas.
Diria que é o seu disco mais amadurecido, no sentido de representar com força a essência Samuel Úria?
Tem piada, porque para mim é engraçado perceber que é esse o entendimento que as pessoas têm das canções que saíram. Como neste disco há menos características festivais ou pop, e até menos sintetizadores, só isso torna o disco mais sério e pesado em alguns momentos, e isso é fácil de conectar com amadurecimento. Eu tendo a concordar. Eu acho que é um disco fruto da idade, quando o escrevi estava a completar 40 anos, provavelmente a efeméride e o número redondo pesaram nos motivos escolhidos, ou numa espécie de responsabilidade que se intrometeu na minha vida, ao pensar que metade já passou. Não é um disco de crise de meia idade, mas é um disco que transparece bem que não estou a brincar aos pequeninos. Se calhar há uma responsabilização, consciente ou inconsciente, e o som pode soar mais amadurecido.

Em Contenção fala-se sobre ir e ficar, sobre contenção e expansão. Estamos sempre nesse limbo, nas nossas vidas?
Às vezes, quando a ação está definida e quando há um objetivo em mente, é importante pensar sobre o momento em que se passa à ação: foi isso que quis, também, passar através do disco. Antes de as coisas estarem completas e depois de elas serem uma ideia há ali um momento cristalizado, que é um momento de alguma tensão, e que para mim musicalmente, ou artisticamente, fez-me sentido explorar. A fração de segundo em que as coisas deixam de ser ideia e de estarem completas, mas há uma ação e uma determinação, é algo bom de se explorar artisticamente.


Aos Pós, por sua vez, deixa margem para uma crítica social e política. Inspirou-o todo o cenário apocalíptico que vivemos nos últimos anos?
Como eu pessoal e socialmente não sou insensível àquilo que me rodeia, mesmo que não haja um cariz absurdamente ou absolutamente ideológico naquilo que eu escrevo, há um cariz de reflexão sobre o que me rodeia, e isso terá que transparecer para as canções. E se hoje em dia estamos todos bastante alarmados com o que se passa politicamente, a minha escrita do ano passado ou de há alguns anos possivelmente já reflecte alguns indícios daquilo que estamos a sentir. Eu há pouco brincava a falar de profecia, mas não o é. É uma antevisão, porque eu sou um veículo do que se está a passar e muitas vezes sintetizo vaticínios que não estão dependentes da minha inteligência ou clarividência, simplesmente estão dependentes de eu andar ao sabor das coisas que se estão a passar e, muitas vezes, ser mais observador do que pensador. Na observação está muitas vezes contido tudo aquilo que vai acontecer.

Como antecipa o ansiado regresso aos palcos? E o que é que gostaria que mudasse depois da pandemia?
Já dei alguns concertos mas o que se avizinha, que é mostrar canções novas e apontar a palcos um pouco maiores, deixa-me um pouco ansioso, o que não me é característico. Sinto uma vontade enorme de estar em palco, escrever canções, tocar - claro que no resto do tempo também, aliás sinto-me um privilegiado por estar numa profissão que é o trabalho mais visível. Mas agora estou com uma vontade redobrada, e antevejo que os próximos tempos não sejam fáceis por não existirem apoios.
É preciso apoiar cada vez mais a classe dos artistas?
Claro que eu também percebo mas por um lado também me aflige - que o que vai acontecer é a nossa economia, nos próximos tempos, relegar para ainda mais dispensável tudo o que tem a ver com trabalho cultural e artístico, infelizmente. Por perceber que os tempos vão ser difíceis, também tenho a percepção de que todos os palcos que conseguir agarrar vou agarrar como se fossem os últimos onde vou tocar. Nesse sentido estou ainda mais motivado, assim como os meus músicos também o estão. Se for preciso, morremos em palco.

*Disponível em CD, vinil, download e streaming a 18 de setembro.
