Por que é que antes de falar, o que veste já disse tudo
Recorremos aos descendentes de Freud para provar que a moda, além de não ser fútil, esconde razões que a própria razão desconhece. Um look vale mesmo mais que mil palavras.
"Há mais de vinte anos que só uso preto, branco ou cinzento. Não existe um antes e depois, existe uma evolução natural. Ou, como prefiro dizer, uma disciplina maior. A roupa define quem somos. Quando entro numa sala, sei que transmito uma série de mensagens, mesmo que fique em silêncio. Quanto maior o rigor, mais claras são as mensagens.” E que mensagens são essas? “Respeito próprio e pelos outros. Que a minha imagem esteja alinhada e represente de forma correta a pessoa que sou. Procuro sempre ter uma presença discreta e sólida, que fale por si. Tenho consciência de que o modo como me visto fala mesmo quando escolho permanecer em silêncio." Matos Fernandes, gestor de eventos, tem um estilo único, altamente reconhecível: sóbrio, discreto, formal. Não é um uniforme, ainda que tenha uma certa solenidade. É elegante e distinto, uma assinatura visual que se adequa à sua personalidade. “Os fatos que uso transmitem uma certa ideia de disciplina. Criam uma imagem que se repete diariamente e que direciona a atenção para o que tenho a dizer e não para o que visto. Essa uniformidade, no entanto, acabou por criar uma imagem muito própria. No fundo, é uma imagem absolutamente intemporal. As únicas regras que tenho são simples. Alfaiataria. Double-breasted suit. Cortes à medida. Preto, branco ou cinzento. Óculos escuros. Relógio.” Esta noção do poder do vestuário enquanto forma de expressão esteve presente desde cedo. Transportá-la para a idade adulta, e usá-la a seu favor, foi uma evolução natural. "Sempre tive essa consciência. Mas foi talvez quando estudei Business Communication que ganhei uma noção mais clara desse conceito. A roupa é uma espécie de arquitetura do que somos. Uma assinatura. No fundo, é um código próprio que é reflexo dos nossos valores e prioridades", resume.
Pode parecer mais ou menos óbvio, mas a roupa é uma das principais formas de comunicação não verbal, transmitindo mensagens diretas (ou indiretas) sobre quem somos e como nos sentimos. Ela fala por nós antes mesmo de abrirmos a boca. Não é tanto um caso de aparência, é de perceção. “O que vestimos é a forma como nos apresentamos ao mundo, especialmente hoje em dia, quando os contactos humanos são tão rápidos. A moda é uma linguagem instantânea." As palavras de Miuccia Prada resumem a ideia, cada vez mais estudada e debatida, de que as nossas escolhas de indumentária são influenciadas pelo modo como associamos a roupa à nossa identidade e aos nossos sentimentos e, por isso mesmo, têm um enorme impacto no nosso bem-estar. Quem é que nunca fez certas perguntas como: "Até que ponto é que o que tenho vestido se adequa à minha personalidade?", "Como é que este look afeta o meu estado de espírito?" ou "Que mensagem estou a passar com esta roupa?". Bem, é possível que nunca tenha pensado nisto. É possível que seja alheio a estas nuances, e que viva sem a preocupação de construir uma narrativa visual que se adeque à sua biografia. No entanto, até isso poderá ser encarado como uma declaração anti- moda. “Não quero saber o que pensam sobre a camisola com borbotos que enfiei à pressa hoje de manhã." Recado entregue. Ainda assim, não há como negar o fascinante poder de transformação que existe em algo tão simples como “aquela” peça que invariavelmente nos multiplica a confiança. E isso não tem nada de frívolo.
Vem isto a propósito de dois eventos que, atualmente, trazem à baila a importância da relação (nem sempre assumida) entre moda e psicanálise: o podcast Fashion Neurosis, da designer inglesa Bella Freud, e a recém-inaugurada exposição Dress, Dreams, and Desire: Fashion and Psychoanalysis, patente no The Museum, do Fashion Institute of Technology (MFIT), em Nova Iorque, até janeiro de 2026. Esta última, resultado de cinco anos de investigação, é mais um prodígio de Valerie Steele, curadora principal do museu, que aproveitou para relembrar que “a moda é uma lente privilegiada através da qual nos vemos a nós próprios — e pela qual os outros nos veem. Longe de ser superficial, a moda pode ser entendida como uma 'superfície profunda', que comunica os nossos desejos e ansiedades inconscientes, sem que nenhum de nós esteja totalmente consciente das mensagens que transmite". Mesmo para quem não está nem aí para o que veste. Nas notas que acompanham a mostra, Steele (a quem Suzy Menkes apelidou de "Freud da moda”) descreve-a como sendo “a primeira a explorar a história cultural da moda e da psicanálise". É também a primeira a interpretar o estilo por meio das lentes das principais ideias da psicanálise sobre o corpo, a sexualidade e o inconsciente. E justifica essa afirmação: "Todos nós falamos Freud, quer saibamos disso ou não", escreveu o historiador Peter Gay.
As pessoas da moda de certeza que falam Freud: Marc Jacobs desenhou o vestido Freudian Slip [Lapso Freudiano]. John Galliano criou uma coleção de alta-costura para Christian Dior intitulada Freud or Fetish [Freud ou Fetiche]. A Prada, por exemplo, apresentou um filme no Festival de Cannes, em 2014, intitulado A Therapy. Foi realizado por Roman Polanski e conta com Helena Bonham Carter no papel de uma paciente que fala sobre o pai e Ben Kingsley no papel do psicanalista que, a certa altura, pega no casaco de peles dela e começa a acariciá-lo enquanto se olha ao espelho. "O que é que tudo isto significa?", pergunta a personagem de Carter. Não oferecendo todas as respostas, e sugerindo talvez ainda mais perguntas, Dress, Dreams, and Desire: Fashion and Psychoanalysis junta perto de 100 peças de vestuário de designers como Azzedine Alaïa, Jean Paul Gaultier, Alexander McQueen, Thierry Mugler ou Rick Owens. Está lá um bustier de couro vermelho de Issey Miyake, um soutien em cone de Jean Paul Gaultier, e uma réplica do vestido Versace que Jennifer Lopez usou nos Grammy de 2000. "O que vestimos", esclareceu Steele à Associated Press antes da inauguração, “pode envolver-nos como um abraço. Pode proteger-nos como uma armadura. E pode tornar-nos mais sensuais, seja enquadrando partes do corpo nu, seja enfatizando, por exemplo, as curvas e os músculos do corpo.”
Uma forma de pensar que, arriscamos, se coaduna com a de Bella Freud. "Pode dizer-me que roupa está a usar hoje e porque é que a escolheu?" É assim que começa cada episódio de Fashion Neurosis, o podcast da designer inglesa em que cada convidado se deita no divã e “explora a conexão entre moda e identidade". Jonathan Anderson, Haider Acermann, Juergen Teller, Nick Cave e Zadie Smith foram alguns dos nomes que já passaram pelo "consultório" da filha do pintor Lucian Freud — e bisneta de, adivinhou, Sigmund Freud. Tal como contou à edição brasileira da revista Elle, Bella tinha dez anos quando "tomou consciência do poder emocional e psicológico da roupa”. Estava a usar uma camisola de tricot que a fazia sentir insegura, mas tudo mudou quando vestiu uma camisola uns tamanhos acima do seu. "De repente senti-me ágil, forte e empoderada." O set e o contexto de Fashion Neurosis, que imita a prática da terapia clássica, tanto na essência como nos pormenores (há uma campainha que toca, um relógio que parece fazer tique-taque, o tradicional sofá), são um piscar de olhos ao legado do seu bisavô — que, refira-se, já tinha aparecido antes na sua carreira. Um dos primeiros bestsellers de sua marca, lançada em 1990, foi um pullover estampado com a palavra "Psychoanalysis" mais tarde, veio uma fragrância com o mesmo nome. E depois há o fio que junta tudo isto: Bella e o pai escreveram um poema juntos, quiçá inspirados pelas teorias do próprio Sigmund, cujas linhas finais expõem essa relação crucial entre moda e identidade que Fashion Neurosis procura debater: "Um facto indiscutível permanece: dentro do teu guarda-roupa está pendurado o teu cérebro." A ideia para o podcast surgiu ainda antes da pandemia, mas foi deixada em standby até outubro de 2024, quando arrancou com um convidado de peso: Rick Owens. Bella queria mostrar que a moda não era só superficial. "Sempre me interessei pela forma como as pessoas decidem o que mostrar e o que esconder com as suas roupas.” O sucesso destes diálogos intimistas não se fez esperar. A dose semanal de Fashion Neurosis tornou-se um bálsamo num mundo de caos e ruído.
Infelizmente, e ao contrário do que sugere o mito, nem todos os terapeutas têm um consultório com paredes de cores neutras — que além de refletirem a luz, preferencialmente natural, não impõem emoções aos pacientes —, onde o silêncio impera e o único objeto de tamanho impositivo é um maravilhoso divã de veludo ou cabedal. Casos há, e são muitos, em que as salas nas quais se discorre sobre o tema mais complexo do ser humano (o confronto consigo mesmo) são espaços caóticos, cheios de tralha, onde cadeiras desconfortáveis guardam segredos de mil e uma vidas. Foi num desses locais que Helena*, uma jornalista de trinta e poucos anos, se encontrou em meados dos anos 2010. Estava em pleno ano sabático (outra forma, mais elegante, de assumir que não tinha trabalho), regressada de uma temporada no estrangeiro, e a adaptação a Lisboa não era a melhor. Aqueles 50 minutos semanais eram preciosos. “No outro dia, aconteceu uma coisa estranhíssima, doutora", atirou. "Há uns meses comecei a ir a uma pastelaria ao pé da minha casa. Vou de manhã e à tarde, sem falta, porque não tenho máquina de café. Mas como está frio, e é mesmo ali ao lado, não tenho paciência para me arranjar. Normalmente ponho só um casaco comprido e um gorro. E uns óculos de sol. Depois há dias em que os meus pais vêm cá, e aí faço um esforço. Desses dias, evito as calças de fato de treino, as camisolas polares, pinto os lábios de vermelho. Pareço outra pessoa. E pelos vistos o senhor Zé, que habitualmente me vê num estilo mais relaxado, também acha que sou outra pessoa! Estive umas semanas sem aparecer com os meus pais, nessa outra versão melhorada, e do nada ele disse-me: "Há muito tempo que a sua irmã não vem cá!" Fiquei sem ar. Peguei na chávena de café, encolhi os ombros e esbocei um sorriso pateta, incapaz de lhe contar a verdade sobre a minha irmã, a minha melancolia e o meu annus horribilis. Agora não sou capaz de lá ir." A Teresa, que além de terapeuta tinha uma paciência de anjo, ouviu tudo atentamente e, no fim, comentou: "Já reparou que aqui também tem sido mais ou menos assim? Quando começou a vir às sessões, raramente tirava o seu kispo preto.”
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