Behén outono/inverno 2024 Não te Quero: “Esta coleção fez-me lembrar porque comecei.”
De mãos dadas com as suas raízes ribatejanas, os novos designs de Joana Duarte são um passo em frente através da mais poderosa das afirmações. E por falar em “não”, conversámos com a criadora sobre tudo o que não se vê nos escassos minutos que dura um desfile na ModaLisboa, mas que também veste a marca. Fotografia de Sebastião Vences
Foto: Sebastião Vences13 de março de 2024 às 13:46 Patrícia Domingues
É com uma simpatia nervosa que Joana Duarte nos telefona dias antes da apresentação do seu desfile. "Posso-te ligar? Estou a bordar." A contrarrelógio para que todo o trabalho do último ano ganhe vida na passerelle da ModaLisboa, a criadora e fundadora da Behén está com as mãos ocupadas (a bordadeira de Viana do Castelo não conseguiu terminar os bordados a tempo), há peças a viajar da Madeira na bagagem de desconhecidos, há pão para moldar e uma check list que só se torna terminável quando as luzes se acendem e ups, já não há nada a fazer. "A minha avó e mãe bordam, mas eu nunca tive de pegar em coisas como agora", conta. "Estou a adorar, já pensei montes de vezes: ‘vou-me dedicar a isto’. Tens de parar e estás só a fazer aquilo. É relaxante dentro destes caos." O caos refere-se aos quatro anos de Behén e à coleção Não te Quero que chega à casa de desfiles lisboeta depois de um ano de interregno de apresentações – esta é, aliás, uma das novidades da marca, que ‘não quer’ as típicas seasons dos calendários e se rege pelas suas próprias necessidades, passando a apresentar-se uma vez por ano. São largos os meses de pesquisa e contactos, experimentação, assentar de poeiras e concretização, que se conciliam não só com outros projetos, mas com o universo paralelo exclusivo e muitas vezes remoto das bordadeiras que assinam consigo as suas criações (e que antes de tudo, têm de ter tempo para digerir as ideias originais da designer).
A Behén nasceu de uma gaveta de habilidades esquecidas, que encasulavam as técnicas de bordado portuguesas ao contexto doméstico, desconectadas de uma geração que cresceu com os olhos postos na coolness do que se fazia lá fora. Hoje soa melhor e veste bem, recolocada numa visão fresca pop que já catapultou a criatividade de Joana para um lugar de merecido destaque. Pelo meio as, chamemos-lhe assim, oportunidades de uma exigência comercial. Por muito boa que seja a leitura, teremos sempre de começar pela capa, só que para se ser excecional nesta indústria não basta ser bonito. Tem de se questionar, refletir, dar respostas e voltar a baralhar, provocar, causar mixed feelings e ser relatable e desejável, tudo ao mesmo tempo - aquela confusão mental que surge quando vemos uma manta tradicional ribatejana no formato de uma mini minissaia, por exemplo. E depois do ‘hmm’ passar a ‘uau’ começamos a descascar a mensagem, os ‘quero-te’ da Behén. Numa edição da ModaLisboa que se batizou For Good, analisemos também o bem: Joana resgata técnicas ancestrais complexas para que, mais do que guardadas no baú, não entrem em vias de extinção, e também nos traz narrativas emocionais familiares, contadas por mulheres. Há cuidado, técnica e ADN costurados a cada peça e em Não te Quero essa preocupação está à vista sobre linhos e gangas num mapa geográfico português de estilo, nos Bordados da Madeira, de Viana e da Glória do Ribatejo, passando pelas mantas de Minde e fazendo paragem em São Vicente do Paúl com as meias em crochet. Há histórias e História, há drama e pronto-a-vestir, há inovação e ancestralidade, há amor e sexo nas definições de Rita Lee e, pasme-se, há seriedade sem se levar demasiado a sério.
"Estou sempre a fazer pesquisa, já me tinha cruzado com este talego bordado a ponto cruz há cerca de dois anos e ficou sempre na minha pasta de referências. O ponto em específico interessava-me, viria de uma região, Glória do Ribatejo, mas depois de trabalhar com as entidades de lá percebi que não pertencia (embora no museu onde estive esteja identificado como tal). Quando estava no terreno já muita gente - bordadeiras e investigadores - me diziam que tinha de ir à Glória do Ribatejo e sendo de Santarém era estranho não conhecer. Há muita gente que não sabe o que se passa na Glória e o que fazem em termos de técnicas artesanais. É um sítio único porque muito do que se passou foi particular à região e acabou por determinar as técnicas e a maneira como as pessoas se vestiam. Nunca me cruzei com outro tipo de indumentária como a daquela região, nos trajes tradicionais e folclore não há igual, tanto em termos de técnica como visualmente. Por exemplo, também tens a secção do lenço dos namorados: quando a relação acabava, iam para a rua e rasgavam o lenço. Estas coisas acabaram por influenciar narrativas do que é a coleção. Os bordados com que me cruzo têm normalmente mensagens como ‘quero-te’, ‘amo-te muito’, ‘espero por ti’, ‘amizade’. E foi a primeira vez que me cruzei com uma peça que levou muito tempo a ser bordada – é super minuciosa – só para dizer: ‘não te quero’. É um contraste, achei divertido. A pessoa demorou imenso tempo a fazer isto só para oferecer a alguém e dizer-lhe que não a queria."
"Esta coleção de outono/inverno 2024 é um voltar ao core. No último ano estivemos a rever tudo o que fizemos até agora e a dedicar-nos à parte do fitting, moldes e acabamentos. Quisemos voltar a pegar em peças chave, mas tentar abordagens diferentes. Houve também um esforço comercial. Isto é uma luta interior em termos de negócio porque tens de combinar várias frentes. Apresentar em desfile só funciona se tiveres um lado de negócio muito bem estruturado. Para o projeto resultar e continuar tem de ter esta parte bem pensada, e é o que temos estado a fazer em backstage, tentar perceber as peças. Há um pensar muito diferente de quando comecei o projeto, era muito naïve. Há sempre peças para o show únicas, porque quero testar e acho interessante, mas depois há as outras que comercialmente têm de resultar. Foi um limar as arestas. O desfile não é nada se as peças não resultarem no dia-a-dia."
"Quando comecei a desenvolver a coleção percebi que podíamos começar com uns pequenos testes para potencialmente incluirmos os bordados da Glória na coleção. É sempre uma questão porque é uma técnica com a qual nunca tinha trabalhado, as bordadeiras não estão habituadas a fazer trabalhos para fora, a nível comercial, e portanto não sabia como a coisa ia correr. Isto passa por um processo longo, tive de ir lá muitas vezes, ver as técnicas, os materiais, e depois claro que há o desafio do nosso lado no qual tenho tentado apostar nas últimas coleções que é trazer materiais diferentes dos que as bordadeiras estão habituadas. Eu sabia que a escolha da ganga ia ser um desafio muito grande mas queria mesmo testar até que ponto a ideia funcionava e tentar que as bordadeiras estivessem disponíveis para o fazer. São os bordados da Madeira na ganga da TrofiColor, mas como neste material é difícil fazer um ponto miudinho, foi em lã e com um ponto mais largo."
"Testámos outras shapes mas vão no seguimento das da última season. A minha mãe ajudou-me na última vez, nesta fiz sozinha. O pão surge de uma pesquisa sobre o pão enquanto identidade cultural, enquanto identificador português. E, principalmente, sobre o papel das mulheres na massa."
"Os cintos são feitos na Glória. O mais giro destes cintos é que é obrigatório ter uma mensagem gravada. Normalmente eram oferecidos aos soldados quando iam para fora e diziam ‘amo-te muito não sei quantos’ ou ‘lembrança para o soldado’. Eu não sabia o que iam bordar e as bordadeiras bordaram o que acharam que tinham de bordar: ‘Não te quero Behén ModaLisboa 2024’. Estes que estou a usar são réplicas, que é o que estão a fazer na Glória – o que a associação faz é uma recolha do que a comunidade tem em casa e aos poucos vai tentando replicar para fazer um museu arquivo."
Foto: Sebastião Vences
Foto: Sebastião Vences
Nem tudo são rosas bordadas a ponto cruz
"A questão do tempo deixa-me sempre triste no final porque gostava de ter tido mais tempo para explorar as opções com as técnicas. Não há tempo porque não é só a coleção, temos outros projetos, e funciona muito por tentativa/erro. Há materiais que não resultam, há mil e uma variáveis que podem acontecer. Nesta coleção quando comecei a fazer pesquisa, não só nos bordados mas a parte da tecelagem, eu sabia que queria trabalhar com as mantas do Ribatejo. As tradicionais são feitas em lã nos teares manuais e eu achava que era por aí que queria ir (é como acontece nos Açores, por exemplo). Só que com esta técnica aquilo ficava muito grosso e era impossível costurar fazendo as peças assim. Demorei algum tempo, mas encontrei uma empresa que faz as mesmas mantas, num processo semi-industrial, mas com as mantas em algodão e que já permite outro tipo de confeção. Se for mesmo sincera diria que a estrutura de um negócio em si, em termos de modelo, não é fácil. Já não é fácil numa indústria criativa, quanto mais integrando técnicas que são difíceis."
Foto: Sebastião Vences
Foto: Sebastião Vences
These boots were made for walking (na ModaLisboa)
"Os sapatos são fundamentais, têm de acompanhar o esforço da coleção em si. Às vezes as pessoas não se apercebem desta parte, que também temos de pensar nisso. Costumamos comprar os sapatos em segunda mão e criamos com os desperdícios do corte, tal como algumas carteiras. Esta estação trabalhámos com a fábrica de calçado Penha no Norte que nos fez a confeção dos sapatos de homem, foram todos feitos a mão."
"Tudo leva muito tempo. Para chegar à Glória, para ganhar a confiança das pessoas levou muito tempo... Também tem a particularidade de não haver uma intenção comercial: quando faziam estas técnicas não faziam para vender. Os bordados não são preparados comercialmente, como noutros lugares como a Madeira. Para chegar à associação que me está a ajudar tive de passar por muitas pessoas. Começou pelo Tiago Pereira, d’ A Musica Portuguesa a Gostar Dela Própria, que me estava sempre a dizer para investigar sobre a Glória, depois outra pessoa que me fez chegar à Rita Pote, que é investigadora. O trabalho que estão a fazer lá a nível de proteção do património é só espetacular."
"Quando pensei na ideia das cuecas era só uma brincadeira para o cartaz, mas agora já me perguntaram: ‘Joana, não queres mesmo vender?’ Nunca tinha pensado, mas sim (risos). Foi a nossa primeira vez a trabalhar com bordado industrial. A minha relação com as redes sociais é um bocado amor/ódio, a forma como planeio o que quero comunicar é consoante o que acho que faz sentido dizer. Não vou dizer nada que não sinta, por isso não há propriamente um plano de comunicação, é muito orgânico."
Foto: Sebastião Vences
Quero-te muito
"Sabes que nunca ninguém me pergunta isso, quais são as coisas boas [deste trabalho]. Obviamente que existem ou não continuava a fazer isto, apesar do esforço que é. Isto não passa para fora, mas muitas vezes ficas presa em coisas e regras que não te permitem [avançar]. Esta coleção foi um bocado isso, eu queria acima de tudo que fosse divertido para mim desenvolvê-la. Não é fácil falar de uma coleção porque todas são uma aprendizagem para mim, o projeto não tem assim tanto tempo. Esta coleção ensinou-me a não esquecer a parte divertida. E o que me levou a começar."