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Moda

Como Donatella Versace mantém jovem e relevante a sua marca de luxo

No dia do seu aniversário, partilhamos a entrevista da designer de moda que fortalece o legado da família a cada coleção.

Foto: Angela Weiss/AFP/Getty Images
02 de maio de 2018 às 18:00 Rosário Mello e Castro

Entre as muitas características que desenham a personalidade de Donatella Versace, não fazer o que se espera talvez seja uma das mais vincadas. A designer que agarrou a moda às nossas curvas e criou um guarda-roupa à medida do poder feminino não pede licença às tendências e quase não pestanejou quando, depois do assassinato do irmão, Gianni Versace, em 1997, segurou a rédeas de uma das marcas mais viscerais da moda italiana. American Crime Story: The Assassination of Gianny Versace, a série de Ryan Murphy onde vemos Penélope Cruz a calçar os saltos altos de Donatella, conta essa mesma história de intensidade e sobrevivência, mas não teve o envolvimento nem a aprovação da família. Donatella é uma designer de instintos. Num dia está a reinventar o arquivo da marca num desfile que juntou as supermodelos dos anos 90, para homenagear o legado do irmão, noutro está a trabalhar com alguns dos mais promissores criadores (Christopher Kane e Jonathan Anderson são apenas a ponta do icebergue). Tanto olha para a moda como a adolescente que o irmão vestia tal e qual uma boneca como gere um império que inclui a Versace, a Versus, uma coleção de Alta-Costura, outra para a Casa e várias linhas de acessórios. A Máxima conversou com a designer sobre o irmão, a juventude e o futuro da moda.

Para a primavera/verão de 2018 e no 20.º aniversário da morte de Gianni Versace, decidiu mergulhar, pela primeira vez, nos arquivos dos anos 90. Era o momento certo para voltar ao passado?

Decidi fazê-lo porque, finalmente, senti que podia… É como se tivesse sido perseguida por fantasmas do meu passado durante muitos anos, sabendo que seriam muito difíceis de enfrentar. Trouxeram-me recordações dolorosas. Ainda assim, senti que era o momento certo para lidar com tudo o que aconteceu. Percebi que tinha de me deixar levar para poder ultrapassar algumas coisas – com a escuridão vem a luz. E foi essa luz que vi quando estive perto de todas aquelas memórias e toquei nas peças que eu e o meu irmão criámos. Foi libertador. Depois, também fui convencida pelos mais novos que através das redes sociais me perguntavam, imensas vezes, sobre o meu irmão, enviavam-me imagens antigas, perguntavam-me sobre o trabalho dele, falavam-me de peças que encontravam em lojas vintage. Tudo isso me levou a pensar que este era o passo certo.

São peças que podiam ter sido desenhadas hoje…

Fiquei surpreendida quando me apercebi disso! Era a primeira vez que ia ao arquivo e que tocava nos trabalhos do meu irmão depois de tantos anos. Mas agora que penso nisso, não deveria ter ficado. Sempre soube que ele era um génio e que fazia coisas extraordinárias. Estava à frente do seu tempo. Repare como os designers estão, constantemente, a pegar em elementos que ele criou, como os prints em look total, as silhuetas, os cortes sexy… O Gianni fez tudo isso, no início dos anos 90. Não ligava a regras e, na verdade, quebrou-as todas. Conseguiu criar uma coisa única e original que vai além da moda e do tempo. Criou uma atitude, uma forma de estar que continua a ser relevante, agora.

Foi um desfile e uma homenagem, mas emocionalmente não deve ter sido fácil. Como foi pensar esta coleção?

Uma montanha-russa de emoções. Estaria a mentir se dissesse que não estava tensa. Aquele desfile deixou de ser "mais um" desfile. Na noite anterior, durante os ensaios, todos chorámos. Foi um processo de altos e baixos. O Gianni era um génio, mas mexer nos arquivos, olhar para tudo o que ele fez, selecionar as peças, recriá-las para o desfile, trabalhar as ideias dele através dos meus olhos foi terapêutico.

Vinte anos depois, como acha que a moda olha para o trabalho do seu irmão?

O Gianni foi, muitas vezes, criticado pelas suas escolhas corajosas, mas esse é o problema das pessoas extraordinárias. Já avançaram mais um passo do que os outros. E ele abriu caminho para muitos designers. Pense nos símbolos religiosos, na pele colada ao corpo, nos prints, nos drapeados… Ele imaginou um mundo onde a primeira regra é não haver regras porque ele não lhes ligava importância. Não foi fácil, mas, ao mesmo tempo, é por essa razão que as pessoas continuam a olhar para o que ele criou e a sentirem-se inspiradas por isso. O Gianni era adorado por muitos e, ainda assim, devo dizer que não estava à espera da reação que este desfile teve. Não esperava uma onda de emoção tão grande da parte do público com toda a gente a gritar e a aplaudir.

Foi também um desfile com uma mensagem de empowerment feminino. O que é que a moda pode fazer pelo feminismo, hoje?

Acredito que a moda é liberdade e autoexpressão. Falo com "milhões" de mulheres, em todo o mundo, e sei que a moda pode fazer a diferença na forma como vivem e que tem o poder de transmitir uma mensagem positiva. A Versace sempre defendeu isso, a ideia de dar poder às mulheres, ajudando-as a sentirem-se mais fortes e orgulhosas de si próprias. As mulheres já chegaram muito longe, mas ainda há um extenso caminho a percorrer.

Qual o papel da Versace nesse caminho?

A Versace é poder, independência e força. Sempre foi e sempre será. Sou mulher, por isso conheço bem os desafios que elas enfrentam, na sociedade de hoje. Sou sempre pela igualdade e nunca vou parar de incentivar as mulheres a lutarem pelo que já deveria ser seu. Acho que estamos, finalmente, a aprender a ajudar-nos umas às outras, a estarmos unidas na busca pelo que queremos. Há muito trabalho a fazer. Eu faço o que posso para contribuir, que é desenhar coleções que ajudam as mulheres a ser mais fortes.

A moda precisa de mais mulheres em posições-chave?

Claro que sim! São precisas mais mulheres em todo o lado. Na indústria da moda, como CEO de empresas financeiras, na política, como primeiras-ministras e presidentes. As mulheres conseguem tornar o mundo um lugar melhor, não por serem perfeitas mas por trazerem um novo ponto de vista a um mundo que ainda é dominado por homens.

Quando assumiu a direção criativa da marca, tudo parecia estar contra si, tinha um enorme desafio pela frente. Como foram esses primeiros anos?

Muito difíceis. Dolorosos, mesmo. Pelo que aconteceu e como aconteceu. Eu e o Gianni não éramos apenas irmãos, éramos melhores amigos. Tudo o que eu queria era fugir e esconder-me, só que não podia. Estava de luto, mas as crianças estavam a sofrer muito, a minha prioridade era protegê-las. Ao mesmo tempo, eu tinha uma empresa para gerir, o legado do Gianni, o nosso legado para manter, não podia desapontá-lo. Por isso, levantei-me, tentei ser forte e encontrar em mim a energia para fazer as coisas – sendo que o que me apetecia era fazer precisamente o contrário.

Como lidou com a pressão?

No início, senti-me presa à criatividade do meu irmão. Escondi-me por trás de uma máscara, camuflei os meus sentimentos porque precisava de andar para a frente, tinha de parecer forte. Sei que cometi erros, mas com o tempo percebi que não precisava de fazer o mesmo que ele. Em vez disso, tinha de fazer aquilo que eu lhe dizia para fazer, encontrar o meu caminho e a minha voz.

Até porque a vossa ligação à moda fervilhava com o tempo que passavam juntos. Como é que essa relação marcou a sua estética enquanto designer?

Aprendi tudo com ele. A estética dele é a minha, corria nas veias dele tal como nas minhas. Como a maioria dos italianos, crescemos rodeados de cultura, de ruínas antigas, vivíamos num museu ao ar livre. São as nossas origens, a nossa tradição, foi a partir daí que evoluímos. Em toda a Itália, em especial no Sul, consegue-se sentir essa cultura no ar. É impossível não nos sentirmos inspirados. E isso reflete-se em tudo o que fazemos, das cores às proporções das peças, feitas para transformar os corpos em estátuas clássicas, aos prints e cores que nos trazem imediatamente alegria e bom humor.

Acompanhou as profundas transformações da moda nos últimos tempos, o facto de se ter tornado tão democrática, por um lado, e tão acelerada, por outro. Como se mantém à frente dessas mudanças?

Não tenho medo do futuro. O que é novo, o que ainda não chegou, foi isso que sempre me motivou na vida e no trabalho. Sou a pessoa mais curiosa do mundo. Gosto de ver e aprender coisas, gosto que me ensinem aquilo que não sei. É assim que mantenho a cabeça fresca. Há pessoas que têm medo da novidade que para mim é entusiasmo.

Já disse, em entrevistas, que tem muito pouco tempo para a sua vida pessoal porque está sempre a trabalhar. O que a faz mais feliz?

Gosto de tudo o que faço, mas um dos meus maiores prazeres é trabalhar com jovens criativos. Mostram-me coisas novas, coisas que não sei. A inspiração pode vir de todo o lado! Um livro, uma canção, uma imagem antiga que tenha feito com o meu irmão. A minha equipa e eu somos muito curiosos e temos a mente aberta. São pessoas cheias de energia, vêm de todo o mundo e têm backgrounds diferentes. Isso torna mais fácil a partilha de ideias, há sempre perspetivas diferentes em relação ao mesmo tempo. Toda a gente importa. Trabalhar na Versace é mais do que um emprego: é fazer parte de uma família.

Como é um dia típico para si? Tem tempo para relaxar e não pensar em mais nada?

Chego ao escritório às nove e meia, mas não tenho uma rotina. Tento tratar de negócios de manhã para depois ter a mente livre. Estou sempre muitíssimo ocupada. Gosto de terminar tudo em cada dia para poder começar de fresco na manhã seguinte. Estou sempre a fazer coisas diferentes e entusiasmantes. Não estou tão stressada como se poderia pensar porque gosto do que faço. Mas diria que fazer pilates e brincar com os meus cães é a melhor forma de libertar as tensões.

O último desfile da Versus, irmã mais nova da Versace, contou com criativos de várias áreas [escolhidos em parceria com Jefferson Hack, da revista Dazed] e marcou o lançamento de uma bolsa de estudo em nome do seu irmão, na Central Saint Martins, de Londres. São ideias que vêm dessa abertura e proximidade que tem aos novos talentos?

É essa a minha paixão. Absolutamente… Tenho a oportunidade de trabalhar com alguns dos melhores designers de moda de hoje. Adoro conhecer jovens criadores e não estou a referir-me àqueles de que já se ouviu falar, mas sim dos que acabam de sair da Faculdade. Gosto de perceber como vão crescer. Há rapazes que acabaram de estudar e que chegam de todo o mundo para trabalhar no meu estúdio. Partilham connosco a sua energia, as suas paixões, a sua originalidade. É assim que me mantenho jovem e é assim que mantenho a Versace relevante.

 

Esta entrevista foi publicada originalmente na revista Máxima n.º 353, de fevereiro de 2018.

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