Lutadores do novo mundo
Novos Talentos da Moda, Os Burgueses são a dupla do momento. A família foi cenário, a arte é inspiração, tudo é ofício, em duas histórias de vida e uma saborosa conversa.

Os Burgueses, em jeito de moda de autor a quatro mãos, ou um novíssimo conceito de marca, em moda, contemporâneo e sedutor. Invenção de Mia Lourenço e Pedro Eleutério, nascidos em 1985 e lutadores de esperança, a driblar a crise. Estrearam há um ano na 36.ª ModaLisboa, surpreenderam na 37.ª, a abrir a festa no Palácio do Município. Tons claros, peças casuais, a desfilar como ópera urbana, For a New World, felicidade, sonho e imaginação a sugerir liberdade e transparência, cinema e ciência de ficção. Neste mundo novo, Os Burgueses receberam o Fashion Awards Portugal 2011 na categoria Melhor Novo Talento. Logo depois, numa manhã de Lisboa, conversaram sobre a casa e os ambientes, a vocação e o traçado de vida. Sobre a visibilidade e a exigência. Atenção, leitoras. Os Burgueses estão aí, a abrir o mundo. Vamos ver.
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A FAMÍLIA, O AMBIENTE, A FORMAÇÃO
Mia – Nós não queríamos ser como os pais queriam.
Eleutério – Em vez de arquiteto, escolhi moda…
Mia – Essa foi a nossa primeira afinidade.
Em coro - Enquanto família, crescemos juntos, tenho de agradecer aos meus pais.
Mia – Lá em casa o estudo era importante. O meu pai, engenheiro da Galp, estudou e trabalhou desde os 14 anos. Eu fazia desenho desde pequena, a minha irmã também gostava de desenhar. Desenhar era a minha forma de me exprimir, as Barbies eram inspiração. Tenho 23 Barbies, três Kens, duas Kellys. Adolescente, eu adorava fazer a minha roupa. Desde a primária cosia um botão, a minha avó costurava, eu fazia roupa para as bonecas. Passava muito tempo com a minha avó e as primas, íamos todas à fábrica da Dancake de comboio. Eu vestia-me de uma maneira diferente, mas não para chamar a atenção sobre mim. Andei na Escola Secundária da Portela, agrupamento de artes, ainda pensei numa escola profissional de moda.
Eleutério – Os meus pais são um engenheiro e uma contabilista com filhos artistas. O herói da minha infância era o meu irmão, dois anos e meio mais velho. Ele é músico, sempre foi uma pessoa muito criativa. Em pequenos fazíamos rádio e espetáculos de magia e música para os pais, a nossa sala era dividida em duas, tinha um arco, fazíamos um cortinado. Desde miúdo fui sempre muito ligado a arte. Tive oito anos aulas de pintura no Palácio dos Anjos, Centro Cultural de Algés, e mais três anos de aulas de violino. Os pais levavam-nos ao teatro, guardo os programas e os bilhetes dos espetáculos, descobri o musical em Jasmim ou o Sonho do Cinema. Depois fiz o curso internacional de teatro e dança, aos 14 anos fiz dança clássica no Centro de Dança de Oeiras, com o António Laginha. Eu achava que ia ser ator de musicais, fiz sapateado. E fiz remo dos dez aos 20 anos, ia às competições (éramos quatro Pedros a remar, passei então a ser chamado Eleutério). Aprendi e habituei-me a gerir o tempo. Fazia dança, remo, violino, tinha espetáculos e competições às sextas e sábados. E tinha de estudar. Os pais eram disponíveis e muito presentes. Chegámos a ir ao Algarve para uma competição de remo e voltávamos para o espetáculo no teatro à noite. Fiz o Auto da Compadecida, do Ariano Suassuna, encenado pelo António Terra, no Teatro Tivoli.
Mia – Não me esqueço da grande viagem que fiz a Paris aos dez anos e a Londres aos 12. Londres é a minha cidade, Lisboa é a minha casa.
Eleutério - Eu viajava muito com os meus pais, uma vez chegámos ao Algarve a uma casa alugada para as férias. A minha mãe não gostou da casa e disse: ‘Vamos para Itália.’ Entrámos no carro e fomos. Fiz uma viagem à Suécia, onde vi uma cidade onde havia grupos de pessoas, todas com um estilo. Pela primeira vez pintei o cabelo, e na volta a minha mãe pagou-me a pintura encarnada do cabelo.
COMO ACONTECEU
Mia - Éramos colegas na mesma turma da Faculdade de Arquitetura, fazíamos o curso de Design de Moda.
Eleutério - No 3.º ano da Faculdade ficámos amigos. No 4.º ano, em 2006, fui para Fortaleza, no Brasil. Estava cansado da forma como aqui se estudava moda. Aquele era o único sítio disponível, em um ano aprendi muito.
Mia – Acabámos o curso em 2008, eu estava em Londres, comunicávamos pelo Skype, a imaginar o projeto.
Eleutério – A Mia foi para Londres fazer um workshop de sapatos. Eu fiquei e fui estagiar na Isilda Pelicano, estilista de peles. Decidi desistir de tudo o resto e focar-me em moda, aprender o máximo. Logo no primeiro ano comecei a desenvolver o projeto Os Burgueses. O António Terra encomendou-nos a ideia e o guarda-roupa para uma peça, Navalha na Carne. Perguntei à Mia: ‘O que achas de avançarmos?’ Pensámos, falámos, deambulámos pela cidade, fizemos um portfólio em junho de 2009 e em setembro de 2009…
Mia - … fizemos uma pequena empresa de eventos de moda.
Eleutério - Quisemos estar com outros artistas, da Associação de Artistas ARTinPARK, no Spazio Dual.
Mia - Avançámos os dois, começámos a desenhar coleções juntos.
Eleutério – Para mim, a inspiração máxima foram os musicais. O primeiro foi o Rei Leão na Broadway, aos 15 anos, Evita. E também Madonna. Courrèges, Mc Queen, Matthew Bourne. Chanel. David Lynch. Björk. Almodóvar vai ficar. Os gémeos que fazem grafitis nas paredes. Havia uma vibração muito grande, as imagens e os concertos eram um mundo muito próprio. Existe um renascimento. E há espaço para consagrar coisas novas.
CONCEITO E ORIGINALIDADE
Eleutério - Os Burgueses é inspirado numa ópera urbana. As nossas coleções estão ligadas a uma peça de teatro. A ideia é a de que a pessoa é o ator ou atriz, a rua é o palco. As coleções contam uma história como se fosse uma ópera, elas acompanham o espetáculo. O teatro levou-nos juntos a pensar que somos todos atores de drama ou de comédia.
Mia - E nada como um bom guarda-roupa para viver a vida. Esta é a nossa grande originalidade. O nosso conceito é difícil de explicar. Temos um lema: tudo na vida é um ponto de inspiração.
Eleutério – Um ponto, é o início, é a ponta do icebergue. A partir de uma imagem há um filme, uma história. Há um painel e faz-se uma pesquisa.
Mia - Há um desenho, depois muitos desenhos e reúne-se tudo.
CRIAR E CONCRETIZAR A COLEÇÃO
Eleutério – Primeiro, escolhem-se os tecidos, a matéria-prima. Depois, vemos as tendências do mercado, as cores, a estrutura do tecido.
Mia - Os tecidos servem para experimentar a conceção, as formas.
Eleutério - Fazem-se os moldes com pano cru e papel vegetal, desenha-se e recorta-se o croqui.
Mia – Se tudo estiver certo, passamos para o tecido original.
Eleutério - Às vezes, apesar de termos a coleção quase pronta, voltamos atrás.
Mia - Nada é fixo nem determinado.
Eleutério - Num mês ou dois, tudo pode mudar.
Mia – Depois, costuramos à máquina e à mão.
O PRÉMIO E O SUCESSO
Eleutério - O sucesso é momentâneo. Mas o que gostamos de fazer é isto, o que nos motiva é o reconhecimento.
Mia – É um dia a dia acrescentado.
Eleutério - Sabe bem ganhar um prémio. Nem ficámos para a festa, no outro dia tínhamos uma reunião às dez da manhã. A vida continua, não podemos parar. Apesar de toda a crise, aparecem coisas muito boas em arte.
Mia – Fico contente por ver pessoas a arriscarem.
Eleutério - Ainda há muitos que não perderam a esperança.
Mia - Quem se aguentar agora vai estar ótimo depois.
OS PIERCINGS OU A PARTE ESTÉTICA DA VIDA
Mia - O meu piercing vem de uma atriz de cinema, Fairuza Balk, que tinha um piercing no nariz e eu, adolescente, adorei ver no filme The Craft (O Feitiço).
Eleutério – Os meus vêm de uma viagem à Suécia, tenho quatro na orelha esquerda, feitos de aros abertos e fechados, e uma tatuagem no pulso esquerdo, com um símbolo do I Ching.
UM RECADO
Eleutério - Façam aquilo de que gostam, mas tenham a noção da realidade.
Mia - Nós criámos uma empresa, para transformar o projeto em realidade. Trabalhamos muito. Fazemos tudo, até limpar o chão!
