Dalila Carmo - Pulsão de atriz

Dalila Carmo vive, aos 37 anos, um momento ímpar.

Dalila Carmo - Pulsão de atriz
13 de abril de 2012 às 16:32 Máxima

Falar com Dalila Carmo sobre Florbela é como navegar num mapa de insondáveis “cumplicidades”. Não só pela própria intimidade e o espírito da vida tumultuosa da poetisa mas sobretudo pelo “estado de graça” que a atriz manteve com o realizador Vicente Alves do Ó e os atores deste singular triângulo amoroso: Ivo Canelas e Albano Jerónimo, respectivamente, irmão com quem viveu uma relação de especulado incesto e o marido em distante tormento. Uma longa conversa numa esplanada com vista magnífica sobre Lisboa, que a atriz diz ser “a cidade mais bonita do mundo”.

À hora marcada, a rapariga que diz orgulhosamente ser de Mafamude, no Porto, já bebia o seu chá no terraço do Hotel Bairro Alto. Sempre sorridente, irá desfolhar as arestas do projeto que a fará entrar em digressão pelo país “levando o filme às costas”. Isto antes de embarcar em novos projetos de cinema e televisão ainda por divulgar. Parar é que não.

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Como conviveu com Florbela Espanca? Foi fácil entrar nesta personagem tão dilacerada?

Adorei o projeto, por isso não tive ainda a distância suficiente para o abordar. Foi tudo muito intenso e muito bonito para toda a gente. Mas da mesma forma que aprendemos a mostrar a personagem, aprendemos também a desmontá-la.

Era um projeto com esta dimensão que procura?

Sim, era. Foi um trabalho de cumplicidades. Para além do papel em si avassalador - ela era enorme! –, foi um longo processo, mas sempre em ambiente de família. É um trabalho que me continua a trazer muitas imagens. E que me há de acompanhar durante muito tempo.

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Florbela foi uma mulher que soube sofrer. Sofreu até ao fim, por amor... Como é que a vê?

É giro dizer isso, “soube sofrer”. Realmente testou esses limites até à exaustão. Ela precisava de viver a vida em alta velocidade. Foi uma aventureira, uma exploradora. Uma visionária. A forma como se expunha a escrever era algo muito pouco habitual nas mulheres da altura. A Florbela rasgou os padrões todos da época. É interessante como toda a gente parece ter uma verdade absoluta sobre ela. Toda a gente acha que a conhece. Mas ela era um poço de contradições. Chegou a escrever que não se conhecia. Ela andou sempre à procura dessa verdade, dessa essência. Eu acho que também devemos fazer essa procura. E não vê-la com esse retrato fechado.

Poderá ser esta procura um convite para as nossas leitoras redescobrirem esta escritora?

Sim, ela é completamente atual. Morreu muito cedo, mas deixou muitas perguntas no ar. Acho que todos nos apaixonámos por ela.

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Como foi esse reencontro com o Vicente (Alves do Ó, o realizador)?

Já tinha trabalhado com ele em Quinze Pontos da Alma. Temos uma visão muito cúmplice das coisas, mesmo quando não estamos de acordo. Eu não consigo separar-me da Florbela, nem do Vicente. Eu adoro o Vicente Alves do Ó.

Porquê?

Ele faz-me viajar. Ele tem uma capacidade de contar histórias, de projetar personagens. A cabeça dele não pára. Acho que nunca tive um processo de trabalho que fosse tão pacífico. Sabia o que ele esperava de mim. Entendemo-nos com pouco. É um realizador de pessoas.

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É interessante o filme estar ancorado na intimidade entre Florbela e o irmão Apeles. Calculo que com o Ivo (Canelas) tenha sido um momento de pura química?

Sim, com o Ivo, com o Albano. Andámos os três num estado de graça.

Há muita informação sobre os irmãos?

Não. Há muita especulação, muito sensacionalismo. Mas pessoas que tinham a certeza desse amor incestuoso. Mas acho que o Vicente pegou no filme sem folclore.

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O filme aborda também o período em que a Florbela viveu o seu writer’s block. O que me leva a perguntar se já lhe aconteceu ter esse bloqueio da representação?

Sinto isso todas as semanas. Acho que isso é comum. É um caminho muito subjetivo, mas também é tortuoso. E questiono muitas vezes a profissão que escolhi.

A sério? Como foi esse momento?

Cada vez mais. Na adolescência, quando tomei a decisão de ser atriz. Foi aquela vertigem do desconhecido. Em 1990, no Porto. Fui motivada por uma necessidade de autodescoberta. Achava que o teatro me iria ajudar a descobrir a mim própria. O prazer pela exposição é também o prazer por partilhar. Depois apaixonei-me. Não foi bichinho nenhum... [risos]

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Sentiu-se atraída por essa vertigem?

Acho que faz parte da profissão do ator sentir essa vertigem, não nos viciarmos numa coisa. A televisão traz esse perigo subjacente. Temos de saber distanciar-nos. Tem de haver espaço para a contemplação, para viajarmos. Termos vida em nós.

A propósito de um filme que fez antes, Quero Ser Uma Estrela, apetece perguntar se está preparada agora para essa exposição e reconhecimento público. Ou seja, está preparada para ser uma estrela?

Acho que todas as pessoas que trabalham em artes performativas precisam do público. São áreas que vivem desse diálogo. Se não houver interlocutor, esse diálogo fica incompleto.

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É interessante essa passagem pelo Actor’s Studio, em Nova Iorque. Uma decisão de ir ao local certo para aprender o método de representação...

Ainda ontem fui ver A Minha Semana com Marilyn, onde se fala muito do método de representação do Lee Strasberg e o confronto com a escola inglesa...

Não deixa até de existir uma ligação entre estes dois filmes, já que se evoca e recria uma figura...

Sim, mas a Marilyn está completamente presente no imaginário coletivo: a voz, o corpo. Há um registo muito presente da Marilyn que não temos da Florbela. Gostei muito do filme e da Michelle Williams, mas não vi o corpo da Marilyn.

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No entanto, em Florbela vemos o seu corpo nu. Foi complicada essa exposição física?

A cena fazia sentido. Sobretudo porque confiava em quem estava a realizar e a iluminar. Temos de servir o trabalho. Se fosse o corpo pelo corpo faria várias capas de revistas masculinas... [risos]. Mas fora do contexto das personagens que interpreto não tenho muito interesse em fazê-lo.

Trabalhou com Manoel de Oliveira, João César Monteiro, João Botelho. O que mais a marcou nessas experiências?

Foram todas experiências muito especiais. Vale Abraão, do Manoel de Oliveira, foi a minha primeira longa-metragem. Foi muito especial. E curioso, pois a primeira pergunta que me fez foi se eu depilava as sobrancelhas... [risos]

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E o que respondeu?

Que não. Até hoje nunca o fiz, são muito certinhas.

Curioso, pois achava o João César mais inclinado a fazer essa pergunta...

Mas o João César fez-me um pedido diferente: pediu-me pentelhos...

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A sério? [risos]

Sim, foi na Comédia de Deus, e pediu a todas as atrizes um envelope com os ditos... É um clássico.

Já o João Botelho não o vejo capaz de ter uma conversa de pelos... [risos]

Muito mais contido... Mas foi muito engraçado, porque a minha personagem em Tráfico era descrita como alguém que tinha umas “formas que ameaçam romper a farda”. Por isso, almofadaram-me com algodão debaixo do meu vestido de cabedal, para parecer mais redondinha... Acabei por ter histórias divertidas com todos eles.

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Agora que vive entre Madrid e Portugal, sente que a vida é mais complicada?

Talvez um pouco, por isso aproveito agora uns tempos para matar saudades. Tenho muitas saudades disto. Sinto-me muito ligada a Lisboa, acho que é a cidade mais linda do mundo. O facto de estar fora ajuda-me a dar maior valor.

Aprecia o dolce far niente, a calma de não fazer nada?

Gosto dos meus momentos em que estou sem fazer nada, mas também sofro porque gosto de trabalhar. Tenho uma pulsão doentia: tento não fazer nada, mas dói-me imenso. Gosto de trabalhar, mas sou muito frágil, por isso preciso de grandes recuperações. Por isso, não fazer nada é muito complicado. Tenho necessidade de produzir.

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Pode-se ligar isso também a uma necessidade de ter filhos?

Sinto. Acho que sim. Mas acontece quando tiver de acontecer. Acima de tudo gosto da vida.

Percebe-se que está feliz...

Sim, sim, acho que sim. Tenho muita sorte. E só vivemos uma vez.

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