As maiores rivalidades da Beleza
Até onde vai o impacto das marcas de Beleza que conhecemos desde sempre? Do século XIX até ao novo milénio, algumas mulheres construíram impérios tão poderosos quanto a escolha do batom que usamos todas as manhãs. E fizeram-no do zero, como contam vários livros e até um musical da Broadway , 'War Paint', sobre a rivalidade entre Helena Rubinstein e Elizabeth Arden.

"Com o design dela e os meus produtos, podíamos ter dominado o mundo", terá dito Helena Rubinstein sobre a rival Elizabeth Arden. Não fosse a moral contrariar-nos, diríamos que o fizeram na mesma. Antes de muitas mulheres nos Estados Unidos e na Europa poderem votar, já Arden e Rubinstein eram milionárias. Sozinhas, sem a ajuda de pais influentes ou maridos ricos, conseguiram-no numa altura em que as grandes marcas começavam com experiências ao fogão e a indústria assentava em personalidades fortes e imprevisíveis. Da competição entre as duas, que nunca se conheceram, nasceram muitos dos cosméticos sem os quais não conseguimos viver, e também um livro, War Paint, escrito pela relações-públicas de moda, Lindy Woodhead, que em 2017 a Broadway transformou num musical com o mesmo nome (que teve na plateia da estreia outra mulher de poder, Hillary Clinton).
É uma história que explica boa parte da indústria de beleza atual e um legado que atravessa questões como o feminismo, as leis do trabalho ou o nascimento da publicidade moderna. Há quem prefira chamar-lhes convenções - a escritora feminista Angela Carter é sempre irónica nos textos onde nota o quão curioso é o facto de pintarmos os lábios de vermelho e os olhos de preto sem hesitar sobre nenhum dos seus significados - , mas isso só prova o seu poder.

Aos 26 anos e em plena viragem para o século XX, Florence Nightingale Graham viajou do Canadá para Nova Iorque com ideias de se tornar enfermeira (não fosse o seu nome sugerir isso mesmo). Mas o sangue assustava-a, por isso preferiu arranjar um emprego num salão de beleza, onde os tons do encarnado eram igualmente vibrantes, mas consideravelmente menos perigosos. Aos 29, já tinha lançado a sua própria linha de cosmética e mudado o nome para Elizabeth Arden, um piscar de olho à Rainha Isabel I, que adorava maquilhagem. Seguiu-se um império daqueles que não precisam de influencers, mas influenciavam por si mesmos, fosse a participar nos movimentos das sufragistas, a quem deu batons vermelhos, ou a impulsionar outras pequenas revoluções femininas. Foram as suas ideias, agora tão comuns como os primeiros kits de beleza de viagem, em 1917, ou as makeovers que oferecia às suas clientes.
Quase uma década antes de Arden abrir a sua primeira loja, Helena Rubinstein já começara a desenhar o mito que haveria de a rodear até ao fim. Não saía de casa sem impressionantes camadas de jóias, organizava reuniões a partir da cama e assoava-se aos seus lençóis de seda. Descrevia-se a si própria como uma espécie de cientista de Beleza, com direito a bata de médica e uma pose séria a condizer, e contava como trouxera da sua Polónia natal uma receita secreta para um creme. A verdade não era bem assim: Rubinstein chegou a Melbourne, Austrália, sem dinheiro e sem saber mais do que duas palavras de Inglês. Mas foi aqui que, em 1903, aos 31 anos, abriu a sua primeira boutique. É também Helena Rubinstein a primeira a especializar-se na ideia de criar linhas de estética, como conta Georges Vigarello no livro A História da Beleza (2005): "[Rubinstein] Inventa um creme para a pele, em finais do século XIX, o Valaze, que complementa com uma série de outros produtos explorados a seguir", primeiro em Londres, depois em Paris e, finalmente, nos Estados Unidos, onde sediou a empresa, em 1912. Nascia o conceito de linha de beleza que todas as marcas viriam a copiar e, tal como conta Georges Vigarello no mesmo livro, a ideia da "conservação do bronzeado durante o inverno e o recurso a banhos de luz", também eles resultado da imaginação de Rubinstein.
"Não existem mulheres feias, só existem mulheres preguiçosas", afirmou, várias vezes, ao jeito da diva em que se tinha transformado. Passou a ser conhecida simplesmente por Madame, casou-se com um imigrante judeu e mudou-se, já com dois filhos, para Londres, e, finalmente, para Nova Iorque, em plena I Guerra Mundial, acabando por se divorciar poucos anos mais tarde. É por esta altura que Arden e Rubinstein se cruzam e que as suas empresas (e personalidades) se tornam rivais. Enquanto Helena Rubinstein coleccionava obras de arte e amigos influentes, Elizabeth Arden comprava cavalos e quintas. Casaram-se várias vezes, mas nenhuma das duas teve sorte no amor.

O nome de Madam C.J. Walker, a mulher que criou os primeiros produtos específicos para o cabelo das afro-americanas, pode não levantar sobrancelhas tão imediatamente quanto os de Arden ou Lauder, mas além de lhes ser anterior, cruzou sem medos a estética com o activisimo pelos Direitos Humanos, no século XIX da pós-escravatura. Tudo começou com a perda de cabelo da própria Madam C.J. Walker, que nasceu Sarah Breedlove e foi a primeira mulher negra a tornar-se milionária por sua conta e risco. "Sei como fazer crescer cabelo, tal como sei plantar algodão. Construí a minha própria fábrica no meu próprio terreno", disse aos elementos, maioritariamente masculinos, do National Negro Business League que questionavam as suas competências para o negócio. Ninguém ousou contrariá-la.
Walker foi, também, a primeira de cinco irmãos a nascer livre numa plantação de algodão do Louisiana. Ficou órfã aos sete anos, casou, pela primeira vez, aos 14 e enviuvou aos 20. Quando começou a perder o cabelo, um problema comum na época, inventou uma fórmula que o ajudava a crescer. Disse, várias vezes, que a ideia lhe chegou num sonho. "Alguns dos ingredientes só cresciam em África, mas consegui encomendá-los, misturei tudo, apliquei-os a mim própria e em poucas semanas o meu cabelo começou a crescer mais rápido do que a cair", disse. Madam C.J. Walker fazia ainda questão de explicar que os seus produtos, que rapidamente acumularam a missão do crescimento com outras, como o brilho e a saúde, não eram apenas para alisar o cabelo, tornando-o mais parecido com a genética caucasiana – já no final do século XIX era uma questão polémica. Mas, claro, essa opção também existia, através de escovas quentes, por exemplo.
Foi ajudada pelo terceiro marido, Charles Joseph Walker, um comercial ligado aos jornais, com quem desenhou, ainda, um eficaz sistema de marketing. Este tanto passava por anúncios nas publicações para afro-americanos (incluindo as famosas imagens de antes e depois) como por equipas organizadas ao estilo de marcas como a Avon ou a Mary Kay, pensado para o mercado a que se dirigia e trabalhando níveis económicos diferentes. Ao longo das décadas seguintes, os seus produtos haveriam de chegar a todas as casas de famílias negras nos Estados Unidos. Walker, que também passou anos a viajar pelo país a dar conferências e palestas, doou vários milhares de dólares da sua fortuna para bolsas de estudo e campanhas pela igualdade racial e de género.

Depois de Estée Lauder, um dos últimos símbolos do poder feminino nas marcas de beleza, houve poucas mulheres com o mesmo sentido de missão em relação à cosmética, ninguém que comparasse os seus cremes a boiões de esperança ou que partilhasse do mesmo empenho para a investigação. Afinal, foram essas as razões que, ainda nos anos 20, levaram Lauder a cozinhar as ideias para o seu primeiro hidratante de rosto, na cozinha da casa do tio alquimista. "A procura da beleza é uma questão de honra." Este era um dos seus motes, tal como fazia questão de estar nas suas lojas, conhecer e tocar a pele nas suas clientes. Em 1946, a empresa de Estée Lauder nascia oficialmente e cresceu nos anos 50 com a introdução de um óleo para o banho apropriadamente chamado Youth-Dew e com marcas como a M.A.C e a Clinique. Em Fire and Ice, a biografia de Charles Revson (dono da Revlon), Andrew Tobias conta que "de todas as mulheres na vida dele, e mesmo não tendo trocado mais de duas palavras com Estée Lauder, ela foi a que teve mais impacto. Era a rival que queria derrubar". O problema era precisamente esse – Revson não conseguia.
Seria preciso esperar até meados dos anos 70 para encontrar uma mulher com a mesma ideia da cosmética feita para um mundo melhor. Anita Roddick abriu a primeira Body Shop, em Brighton, na Inglaterra, com as paredes pintadas de verde para disfarçar a humidade. Ao longo da década seguinte, as suas despretensiosas linhas de rosto e de corpo chegariam a quase todo o planeta, ao mesmo tempo que promoviam formas de o salvar. "Nunca achei que os produtos de beleza fizessem milagres, mas nada do que a Body Shop vende finge ser uma coisa que não é. Os hidratantes hidratam, os produtos para refrescar refrescam e os cleansers limpam. Fim de conversa", cita o The New York Times no respectivo obituário, em 2007. Roddick rejeitava as ideias clássicas de marketing, até porque a sua personalidade, algures entre o teimosia e a visão, fazia boa parte do trabalho. Foi ela uma das primeiras empresárias a antecipar o potencial do consumo sustentável e a trabalhá-lo de forma sincera. Em 2006, a Body Shop foi comprada pelo grupo L’Oréal, que agora a vende à brasileira Natura, outra marca que assenta na sustentabilidade para fazer negócio. Uma espécie de regresso às origens, portanto.
Também as marcas fundadas por Elizabeth Arden ou Helena Rubenstein mudaram de mãos, algumas vezes, embora continuem a ser símbolos das suas visões. O gigante L’Oréal comprou a Helena Rubinstein no final dos anos 80, sendo que a marca não está, neste momento, disponível em Portugal. A Elizabeth Arden, por sua vez, pertence à Revlon Inc., uma curiosidade interessante já que Arden se referia ao fundador do grupo, o já mencionado Charles Revson, como "That man"("Aquele homem"), razão que levou a Revlon a lançar um perfume com esse nome. Foi, aliás, o mesmo Revson que, anos mais tarde, contratou Richard Avedon para fotografar campanhas que apelassem ao mercado feminino de massas, imagens atravessadas por frases como "Gostaria que o próximo homem que conhecesse fosse um psiquiatra?" ou "Costuma corar quando se apercebe de que está a flirtar?". Um golpe de marketing que quase abalou as marcas de Arden e de Rubinstein. Quase um século mais tarde, podemos confirmar que um novo flirt até pode dar uma ajuda, mas nada nos deixa tão resplandecentes como os cremes daquelas mulheres absolutamente visionárias.
