O que se passa com o meu corpo?

Encontrar sinificado para sintomas pouco comuns é um exercício de descoberta pessoal que a ciência só parcialmente explica. Siri Hustved e Naomi Wolf foram mais longe, em busca de respostas.

O que se passa com o meu corpo?
25 de março de 2013 às 14:10 Máxima

Duas mulheres famosas, uma romancista e outra ativista, entenderam ter uma palavra a dizer sobre o que se passava no estranho mundo dos seus corpos, aos quais “aconteciam coisas”. Dessas, que as ciências médicas diagnosticam e tratam, e de outras, menos óbvias. É humano: o sintoma tem sempre razão. Descobri-la é outra história. A ser bem contada, pode acabar nas páginas de um livro.

DADOS BIOGRÁFICOS

Siri Hustved

. 57 anos, ascendência norueguesa

. Doutorada em Literatura Inglesa, nos Estados Unidos

. Romancista e ensaísta

. Traduzida em 29 línguas, recebeu vários prémios

. Casada com o escritor Paul Auster, a viver em Nova Iorque

. Insight: "Ser doente depende do temperamento, história pessoal e cultura em que vivemos"

Naomi Wolf

. 50 anos, ascendência americana e romena

. Formou-se em Artes e Literatura Inglesa, nos Estados Unidos

. Autora, jornalista e defensora da liderança e libertação sexual das mulheres

. Foi consultora de Al Gore e Bill Clinton nas suas campanhas presidenciais

. Vive com o produtor de cinema Avram Ludwig

. Insight: "As mulheres americanas têm sido tão controladas por ideais e estereótipos como por limitações materiais"

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Siri Hustved

. 57 anos, ascendência norueguesa

. Doutorada em Literatura Inglesa, nos Estados Unidos

. Romancista e ensaísta

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. Traduzida em 29 línguas, recebeu vários prémios

. Casada com o escritor Paul Auster, a viver em Nova Iorque

. Insight: "Ser doente depende do temperamento, história pessoal e cultura em que vivemos"

Naomi Wolf

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. 50 anos, ascendência americana e romena

. Formou-se em Artes e Literatura Inglesa, nos Estados Unidos

. Autora, jornalista e defensora da liderança e libertação sexual das mulheres

. Foi consultora de Al Gore e Bill Clinton nas suas campanhas presidenciais

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. Vive com o produtor de cinema Avram Ludwig

“Em maio de 2006, sob um céu azul e sem nuvens, ali estava eu [Minnesota, EUA] para discursar sobre o meu pai, que morrera dois anos antes. Assim que abri a boca, comecei a tremer violentamente. Tremi nesse dia e tremi outra vez, noutros dias. Eu sou a mulher que treme.” Assim termina o ensaio The Shaking Woman or A History of My Nerves (2010), da autoria da escritora americana Siri Hustved, companheira do também escritor Paul Auster. A experiência, aos 51 anos, abalou-a profundamente. Tudo correra bem na elegia fúnebre: “Quando chegou a hora, li o que tinha preparado, numa voz forte, sem lágrimas.” Agora, diante de uma plateia de convidados, foi incapaz de controlar o seu corpo a tremer, da zona do pescoço para baixo.

Durante dois anos, Siri dedicou-se, com afinco, à procura da explicação para o “estranho” que habitava nela, qual “duplo”, que podia manifestar-se à revelia da sua vontade, do seu Eu. Procurou ajuda na medicina convencional e complementou a sua investigação com episódios biográficos marcantes.

A sensação de “ser outra” não era nova. Em criança, Siri tinha, com frequência, episódios de enxaqueca, ataques febris e perturbações sensoriais. Em adulta, foi-lhe diagnosticada neuropatia periférica.A escritorai convivia relativamente bem com tudo isto. Até entrar em cena “A Mulher que treme”.

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A hipótese de luto tardio estava fora de questão. Freud poderia diagnosticar histeria (hoje, perturbação de conversão). O psiquiatra equacionou uma desordem de pânico. O neurologista quis despistar a possibilidade de epilepsia. As ressonâncias magnéticas não acusaram nada. A solução para manter os malditos “ataques” sob controlo era tomar medicamentos betabloqueantes. A certa altura, a autora confessa: “Fui seguida por uma psicanalista e uma neurologista e nenhuma me disse quem era a mulher que treme.”

Siri foi à procura dela. Frequentou até um grupo de neuropsicanálise e conheceu as pesquisas sobre neurónios-espelho, responsáveis pela empatia. Aí estaria, a seu ver, a chave do enigma.

Na última semana de vida do pai, Siri pensava nele, antes de dormir, quando foi invadida pela sensação física de alguém com enfisema pulmonar. “Como ele, senti a proximidade da morte.” O pai autorizara que ela usasse memórias suas no livro As Tristezas de um Americano (2008). O envolvimento emocional intenso com a escrita paterna pode ter estado na origem do “ataque”. Quando ela se preparava para dar voz às palavras, deu-lhes corpo. “A história da mulher que treme é a narrativa de algo que se repete e vai ganhando múltiplos sentidos, consoante a perspetiva.” Podemos não controlar o que nos acontece, mas faz toda a diferença ligar pontas soltas do “Eu” nessa história e contá-la a um “Tu”.

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Um dia, a mente deixa de responder ao que se passa no corpo e tudo parece perdido. Ou ganho, depois de passar pela experiência, com uma visão renovada. Para a ativista política Naomi Wolf, autora do best-seller O Mito da Beleza, nos anos 90, o “click” deu-se aos 46 anos. “Enquanto fazia amor, e logo a seguir, deixei de sentir-me física e emocionalmente conectada. Em vez disso, sentia uma dormência interna.” Este foi o ponto de partida para o seu novo livro, Vagina: A Cultural History. Ao jornal britânico The Sunday Times, Naomi afirmou que o seu problema foi uma oportunidade para ganhar uma nova consciência sexual, com a ajuda clínica, mas não só.

A jornada começou no gabinete de ginecologia. Os testes ditaram o diagnóstico: doença degenerativa na lombar, pela compressão vertebral nos pontos L6 e S1. A lesão, originada por uma queda, duas décadas antes, nunca tinha dado dores, até bloquear parte do nervo pélvico (que envia impulsos ao cérebro, activando a química do prazer e do amor). Daí a dormência e falta de euforia pós-sexo. Na consulta com o especialista Jeffrey Cole, Naomi ficou a conhecer algo novo: “Cada mulher tem um nervo pélvico diferente; algumas ramificações centram-se mais na vagina, outras no clítoris ou no períneo, o que explica as diferenças individuais da resposta sexual feminina.”

Sem estar à espera, Naomi encontrou a resposta para o clássico drama da insatisfação feminina. Se as diferenças nas terminações nervosas pélvicas são puramente físicas, deixa de haver discussão sobre orgasmos de primeira e de segunda. Isto é algo que devem gostar de saber as 30 por cento de mulheres ocidentais que referem não ter prazer com o sexo.

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O prazer de fazer amor e o sentimento de êxtase 2-em-1 voltaram. Depois do alinhamento das vértebras, Naomi recuperou, em alguns meses, a sensibilidade que julgava perdida. Durante esse tempo, quis aprofundar o assunto e frequentou os cursos de Mike Lousada, um terapeuta de sexo tântrico. “Os tântricos abordam a sexualidade feminina com respeito, como se fosse sagrada”, revelou à imprensa. Na sua obra, disserta sobre o potencial do órgão sexual feminino, uma porta de entrada para o autoconhecimento e a comunhão mística.

As críticas não se fizeram esperar. Numa edição do The Guardian, por exemplo, ironizava-se com a mulher em crise da meia-idade que descobre a química do cérebro e usa a ciência a gosto, para legitimar questões de ego.

Naomi Wolf, a mulher que personificou o movimento feminista de terceira geração, nunca escondeu as suas posições acerca do corpo, da vida privada e das questões de consciência social, por mais controversas que fossem. O gigante Apple também não escondeu que, em pleno século XXI, censura palavras como a que titula o livro. Na sinopse pode ler-se: “V****a. Um trabalho surpreendente que muda radicalmente a forma como pensamos acerca da v****a.” Ironicamente, o texto termina com a autora a interrogar “porque é que, mesmo num mundo cada vez mais sexualizado, a v****a é vista como uma ameaça, ou se pensa nela como algo ligeiramente vergonhoso”.

Nas redes sociais, alguns dos comentários destacaram o paradoxo: se é de um termo médico que estamos a falar, como querem, afinal, que lhe chamemos?

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Fotografia: Rene & Radka/Madame Figaro e Getty Images

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3 de 4 / Autora, jornalista e defensora da liderança e libertação sexual das mulheres
4 de 4 / O sintoma tem sempre razão. Encontrar uma explicação e decifrar a doença é outra história.
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