Viver é agora ou nunca
Atlético e eclético, Vincent Cassel salta de um papel para outro, de um filme de autor francês para uma superprodução de Hollywood.

Atlético e eclético, Vincent Cassel salta de um papel para outro, de um filme de autor francês para uma superprodução de Hollywood. Por ocasião do lançamento de A Bela e o Monstro, em Paris, falou da fama e do amor mas, sobretudo, da importância de não perder tempo.
Sentado na beira de um sofá, numa suite de um grande hotel parisiense, Vincent Cassel, de uma elegância discreta, parece um leão enjaulado. Atento e cortês, fala depressa, pronto para encetar a fuga. Mas não o fará: está a promover A Bela e o Monstro, remake do filme de Jean Cocteau assinado por Christophe Gans (ainda sem data de estreia nacional). O Monstro é ele, evidentemente, e a Bela é Léa Seydoux. Aos 47 anos, os traços estão burilados, os olhos azuis são de aço temperado e o sorriso continua mordaz. Não há a mínima suspeita de gordura neste hiperativo que gosta de surf, de capoeira e de correr na praia do Rio de Janeiro. Grande viajante, descobriu o Brasil há 25 anos e assentou arraiais na cidade carioca, mantendo um pouso no bairro parisiense de Ménilmontant. Burguês-boémio, amante da mestiçagem, está à vontade em qualquer ambiente. A sua originalidade reside na capacidade de franquear fronteiras e géneros. Navega entre os projetos atípicos dos seus amigos Jan Kounen e Gaspar Noé, os êxitos de bilheteira de Mathieu Kassovitz e Christophe Gans, o cinema de autor de Jacques Audiard, David Cronenberg e Darren Aronofsky e as superproduções em que contracena com nomes como George Clooney, Matt Damon e Brad Pitt. Os realizadores estrangeiros reclamam este bad boy imprevisível que traça a sua rota sem se instalar em Hollywood. O cinema francês pisca o olho àquele que não para de baralhar as pistas. Onde o pai, Jean-Pierre Cassel, escolheu o charme, Vincent preferiu o afrontamento. Em 2009, porém, dedicou-lhe o seu César, conquistado a pulso pela sua magistral interpretação de Mesrine (no filme de Jean-François Richet). Durante 18 anos conjugou amor e glamour junto de Monica Bellucci. Vivendo cada um na sua casa, tiveram duas filhas, Deva (em 2004) e Léonie (em 2010), antes de anunciarem a separação amigável em agosto último. Sempre entre dois projetos e dois voos, este “parioca” (parisiense do Rio) parece ter encontrado o seu equilíbrio no movimento.
Após Pacto dos Lobos, em 2001, este é o seu segundo filme com Christophe Gans. É importante para si reencontrar os realizadores da sua geração, com os quais começou a sua carreira?
O que é importante é trabalhar com realizadores que têm um universo forte e um estilo inovador. Estou encantado por trabalhar com Christophe Gans porque nos entendemos bem. Tentámos levar a cabo outros projetos, como Bob Morane, Fantômas ou O Cavaleiro Sueco. E depois, de repente, toda a gente quis fazer A Bela e o Monstro, e Léa Seydoux, a minha coprotagonista no filme, impôs-se como uma evidência.
É difícil encontrar projetos de filmes franceses que sejam populares, exigentes e inteligentes?
Seja onde for, não há 150 filmes para rodar por ano – e felizmente, porque tenho outros interesses para além do cinema! Tenho a sorte de poder escolher aqui e acolá. Portanto, desenvencilho-me para trabalhar como desejo.
O que origina esse desejo?
Nada de especial. Não tenho um estilo ou um género preferido. É a aventura que me seduz. O lado bom desta profissão vem do facto de nunca sabermos o que vai acontecer. E o lado angustiante… é que nem sequer sabemos se se vai passar alguma coisa.
Como vê a relação entre a Bela e o Monstro?
É um conto de fadas, mas fala também da guerra dos sexos, dessa relação quase impossível entre o homem e a mulher. A vaidade e a necessidade de afirmação levam o protagonista a faltar à sua palavra e ele perde a mulher que ama. Transformado num monstro, erra só, atormentado pelo remorso e pelo sentimento de culpa. Quando a Bela aparece, tenta dominá-la, comprá-la com vestidos e joias e aprisioná-la. Mas quando deixar por fim transparecer a sua vulnerabilidade, reencontra o amor e tem uma segunda oportunidade. É uma história sobre a redenção.
É um pouco o antipríncipe encantado, não?
Mas por trás de cada príncipe encantado está um monstro, não nos iludamos. O Monstro remete para a fraqueza do macho… sempre disposto a pôr em perigo o que lhe é mais caro para se sentir vibrar. É próprio do homem procurar constantemente a aventura e a excitação para não se sentir estéril. As mulheres têm a sorte de poder criar no sentido próprio da palavra. Nós temos de recorrer a expedientes para tentarmos dar um sentido à nossa vida.
Está consciente da sua parte animalesca?
Sim, cada vez mais. Se tirarmos tudo o que tem a ver com os códigos do decoro, todos somos governados por pulsões animais. Pergunto-me se não seria mais sensato aceitá-las do que tentar dominá-las, como a sociedade requer. No fim da vida, vão-se desvanecendo progressivamente... e, mesmo assim, nem sempre.
Já se sentiu feio, tal como o Monstro?
Claro. De resto, segundo os cânones da beleza, não sou bonito. O importante é aceitarmo-nos e havermo-nos com o que temos e o que não temos. Ser bonito e não saber o que fazer com a beleza é tão problemático como ser feio. E a beleza paga-se bem cara. Vejo-o pela minha mulher (Monica Bellucci): as pessoas admiram a sua beleza, mas também têm vontade de a espezinhar e destruir por pura inveja. As mulheres muito bonitas têm dificuldade em conquistar respeito e, não raro, têm de se afundar para verem reconhecido o seu justo valor, o que é idiota e injusto.
A Bela acaba por domesticar o Monstro. Isto parece-lhe um fim de conto de fadas?
É um fim que tem em conta a realidade atual, em que toda a gente aspira a uma vida normal. Queremos ter tranquilidade, beber um copo com os amigos enquanto contemplamos as crianças a brincar livremente… Não sabemos o que se vai passar daqui a 20 anos, quando o Monstro começar a cansar-se do seu jardim…
Pensa que a vida a dois se inventa dia a dia?
Nem sabe a que ponto me coloco essa questão. Estou a viver um momento muito particular na minha vida… mas, de facto, penso que a ideia de casal, tal como a sociedade a concebe, é impossível. Há que reinventar a vida a dois. Ora, quando não temos modelos, é preciso ter ideias, e elas não caem do céu. Portanto, procuro, interrogo-me. Eu acredito no amor. Talvez seja um romântico, mas tento fazer coexistir o príncipe encantado e o monstro… É possível viver na ilusão durante algum tempo… Aliás, o mesmo se aplica à princesa. Mas, a dado momento, temos de nos comportar como pessoas crescidas, assumir as nossas responsabilidades e aceitar viver a dois. E, quando funciona, isso é mágico.
Durante 18 anos encarnou com Monica Bellucci um casal moderno, livre e independente. Essa imagem corresponde à realidade?
É a imagem que os media dão de nós através dos filmes, das entrevistas e do imaginário de cada um, mas não corresponde à realidade do nosso quotidiano. A nossa profissão assemelha-se à prestidigitação. Jogamos com símbolos, avançamos, expomo-nos um pouco, depois protegemo-nos. Em suma, fazemos o que podemos! O meu pai dizia muitas vezes: “Nunca sabemos o que se passa por detrás da porta fechada de um quarto.” E tinha razão. Porque é que as pessoas se entendem ou deixam de se entender, isso só lhes diz respeito a elas.
Irrita-o que se fale do seu casamento?
Quando os jornalistas me pedem abertamente contas na televisão, eu respondo-lhes: “Meta-se na sua vida! Por acaso eu pergunto-lhe com quem dorme?” Vivemos na era da bisbilhotice. Quando nos ocupamos dos assuntos sentimentais do Presidente da República, atingimos o cúmulo da vulgaridade. Mas o que é que se passa?! Até os jornalistas mais respeitáveis são obrigados a tratar de assuntos de sociedade para vender papel.
Tem consciência de que intimida, por vezes?
Sim, mas preciso de me proteger.
Tem projetos artísticos com Monica Bellucci?
Sim, temos vários, nomeadamente um filme no Brasil para onde levarei a família inteira. A Monica é uma das atrizes contemporâneas capazes de fazer qualquer papel. A sua imagem nunca é sombria nem triste. E, apesar de estarmos a viver um momento complicado, é simultaneamente um momento muito bonito.
Ser filho de Jean-Pierre Cassel encerra algo de mitológico. Foi difícil suceder-lhe?
Sempre me construí contra tudo – logo, também contra o meu pai, porque tinha de sair da sua esteira. Ora, ele foi um exemplo para mim, tanto do que devia fazer como do que não devia. E foi generoso pois, no momento em que comecei a desabrochar como homem e como ator, deixou-me o seu lugar. Nunca houve ciúmes entre nós. Apesar de nem sempre compreender as minhas escolhas, respeitava-as. Deixou-me evoluir livremente.
Recebeu um César pelo papel de Mesrine em 2009. Ficou satisfeito?Tenho a noção do valor que isso pode ter, embora não tenha mudado nada na minha vida. Mas tenho alguma desconfiança em relação ao establishment, e a cerimónia parece-me sempre muito política e consensual. Os votantes fazem parte de um microcosmos que não é representativo do gosto do público. A Academia já provou muitas vezes que é incapaz de recompensar talentos mais essenciais do que aqueles que reconhece, como acontece com Gaspar Noé (autor de Irréversible), cuja criatividade fascina os maiores cineastas do mundo inteiro.
Tem necessidade de correr riscos?
É a única coisa que me interessa. O cinema pode tornar-se ronronante rapidamente e, quando eu sinto tédio num plateau, isso vê-se no ecrã. Não procuro desafios, mas projetos que me deem vontade de me levantar de manhã e que me façam sonhar.
A experiência levou-o a conhecer as suas forças e as suas fraquezas?
Ainda não dei a volta toda! Mas acho que trabalho a partir do que sou, do que não sou, do que gostaria de ser e do que tenho medo de me tornar. Desde que ganhem impulso e que o meu imaginário se ative, as coisas tornam-se interessantes.
Tem a vida com que sonhou?
Em certa medida, sim… Em todo o caso, há uma coisa essencial que tenho sempre em mente: é que não há tempo a perder. Viver é agora ou nunca.
