Violência doméstica e justiça: advogada explica a suspensão do processo em Machico
A libertação de um homem condenado por violência doméstica reacende perguntas difíceis: até que ponto o perdão é possível num crime que toca toda a sociedade? E que mensagem deixa para as vítimas?
O caso que sacudiu a Madeira começou na madrugada de 24 de agosto de 2025, quando um bombeiro de 35 anos, em Machico, foi filmado a agredir violentamente a companheira na presença do filho de nove anos, em casa da família. As imagens espalharam-se rapidamente pelas redes sociais e, à época, pareciam contar mais uma história de terror que chegava ao fim. Mas voltámos a vê-las ontem, repetidamente, agora acompanhadas das palavras: “em liberdade”. Como assim? Perante dúvidas que se multiplicavam em caixas de comentários, a Máxima contactou uma especialista.
Em Portugal, a violência doméstica não é um assunto privado nem uma questão conjugal. É um crime público, o que significa que o processo criminal não depende da vontade da vítima para avançar ou prosseguir. Mesmo quando existe perdão, o Ministério Público pode e deve intervir, investigar e acusar, sempre que tenha conhecimento dos factos. Trata-se de um princípio central do sistema penal: a proteção da vítima e a prevenção da violência são consideradas um interesse público superior.
Os números mais recentes revelam a dimensão do problema no país: nos primeiros meses de 2025, as forças de segurança registaram mais de 18 000 queixas por violência doméstica, com um elevado número de detenções efetuadas em resposta a essas ocorrências. Uma realidade que coloca em alerta tanto a sociedade como os operadores de justiça.
Como explica a advogada Mariana Ramos Rodrigues, com quem a Máxima falou, “o perdão da vítima não faz desaparecer o crime nem extingue o processo”. Continua: "A natureza da ação é pública, e por isso o titular da ação não é o ofendido, a vítima, mas o próprio Ministério Público. Assim ele pode seguir com a ação independentemente de perdão ou desistência da vítima em continuar o processo."
Ainda assim, esse perdão pode ser ponderado pelo tribunal antes da sentença. "Ele interrompe o processo", e é aí que surge a figura da pena suspensa. A suspensão da pena acontece quando o tribunal decide que a pena de prisão que poderia ser aplicada (pois só o seria no momento da sentença) não o será, desde que o arguido respeite determinadas condições impostas durante um período definido.
"Esse perdão não é dado a toda a gente. Há vários requisitos a seguir", frisa a advogada. “Para chegar a esta decisão, os juízes avaliam vários requisitos dispostos no código de processo penal: o crime deve ser punível com pena não superior a 5 anos de prisão; não exista condenação anterior por um crime da mesma natureza - por isso não falamos em antecedentes criminais mas reincidência -; deve haver concordância expressa do arguido e da vítima; as circunstâncias do caso devem justificar a medida”, explica a especialista, que acrescenta que o Ministério Público pode propor a possibilidade de suspensão mas fica ao critério do juiz aceitar ou não.
Importa também sublinhar um outro ponto: pena suspensa não é absolvição. Há condenação, há registo criminal e há responsabilidades legais associadas. Ainda assim, decisões judiciais que resultam em penas suspensas (sobretudo quando associadas ao perdão da vítima) levantam uma questão inevitável: que leitura fazem outras mulheres que vivem situações semelhantes? O debate em torno deste caso, amplamente discutido também na esfera pública, mostra que persiste a perceção de que o perdão pode enfraquecer a resposta da justiça, mesmo quando a lei prevê a intervenção autónoma do Estado.
Estatísticas oficiais mostram que a violência doméstica continua a ser uma realidade alarmante no país: nos primeiros nove meses de 2025, mais de 10 000 ocorrências criminais relacionadas com violência doméstica foram registadas pelas autoridades, incluindo pelo menos 13 mortes em contexto familiar. Quase metade da população portuguesa já foi vítima de algum tipo de violência ao longo da vida, mas são particularmente as mulheres as principais vítimas de violência sexual, na intimidade ou de assédio (de acordo com o relatório anual “Portugal, Balanço Social 2025”, elaborado pela universidade Nova SBE).
Depois da notícia de hoje, para muitas mulheres, pode instalar-se a sensação de que denunciar não compensa, de que a violência não é levada suficientemente a sério ou de que a justiça continua a ser um território instável para quem procura proteção. É por isso que várias vozes defendem que estas decisões devem ser acompanhadas de medidas eficazes de acompanhamento do agressor, vigilância judicial e proteção real da vítima, sob pena de se perpetuar um ciclo silencioso de impunidade.
Num processo que chocou a opinião pública, o bombeiro detido em Machico foi inicialmente colocado em prisão preventiva e proibido de contactar a mulher e o filho. Mais tarde, a prisão foi substituída por permanência na habitação com vigilância eletrónica e proibição de contacto com as vítimas - medidas cautelares que visam proteger quem esteve em risco. Depois do perdão da mulher e do pedido do arguido, o tribunal suspendeu o processo, mas com condições claras: ele tem de frequentar um programa de prevenção da violência doméstica e tratamento para alcoolismo. "Se não cumprir essas condições, o processo é reativado. Não se trata de um perdão nem de um direito automático do arguido”, explica a advogada. “É, antes, uma faculdade do Ministério Público, condicionada à validação judicial.”
Casos como este lembram-nos que compreender a lei é fundamental, mas insuficiente. A violência doméstica não é um desentendimento íntimo nem um episódio isolado. É uma violação de direitos humanos. Falar sobre estes temas de forma responsável, sem sensacionalismo, sem romantizar o perdão e sem deslocar a culpa para as vítimas, é um passo essencial para um debate público mais consciente.
Talvez a pergunta mais urgente não seja porque uma mulher perdoa, mas sim esta: o que está a ser feito para garantir que nenhuma mulher tenha de escolher entre o perdão e a sua própria segurança?
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Ana Margarida de Carvalho foi jornalista durante mais de 20 anos e sente, ao entrar pela Literatura dentro, com muito êxito, diga-se, que o olhar atento ao outro lhe vem do exercício desta profissão. Acaba de publicar o seu quarto romance, "A chuva que lança a areia do Saara".
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