Susana Moreira Marques: “A escrita é o lugar de onde observo o mundo.”
Há 76 anos, Maria Lamas foi à procura da mulher portuguesa. "Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro", de Susana Moreira Marques, resgata a importância da obra de Lamas e tece uma genealogia. Da mais pessoal à coletiva. Nestas páginas descobrimos também a nossa raiz.

Em janeiro de 2024 a Fundação Calouste Gulbenkian inaugura uma exposição sobre Maria Lamas. Nela poderão ver-se fotografias e objetos pessoais da jornalista, escritora, ativista e feminista que, entre 1947 e 1949, correu Portugal para documentar como viviam as mulheres portuguesas de então. Desta viagem resultou o livro: As Mulheres do Meu País, relançado agora pelo jornal Público em fascículos.
Em 2016 Marta Pessoa quis fazer um filme tendo o livro de Maria Lamas como premissa e convidou Susana Moreira Marques para a acompanhar na viagem. Há sete anos, "este livro estava muito esquecido", lembra Susana. O filme Um nome para o que sou estreou-se em 2022. Curiosamente, nesse ano, uma ilustradora inspirou-se nas fotografias de Maria Lamas. Além de ter escrito o argumento para o documentário, Susana sentiu que o que tinha para dizer não se esgotava ali. E assim nasce Lenços pretos, chapéus de palha e brincos de ouro. Um livro que levanta sobretudo questões sobre a condição da mulher. Ontem e hoje.
Como empreendeste esta viagem?
Comecei a trabalhar esta ideia em 2016. O livro tem sempre subjacente a ideia de tempo. A ideia de o tempo aparecer como uma continuidade de qualquer coisa que veio antes de mim. E de existir também como uma oferta para os que vierem depois. Nunca sabemos se as coisas serão intemporais ou não. Essa é uma questão que se coloca, quando falo sobre o trabalho da Maria Lamas. Faço uma espécie de espelho, mas que não é um espelho exato entre eu e ela. Vejo as diferenças entre o que era possível escrever no tempo dela e o que é possível escrever no meu tempo. Quando digo possível não estão em causa só questões políticas. A Maria Lamas escrevia em ditadura e eu escrevo em liberdade, e isso é importantíssimo. Mas também o que pensamos que é uma narrativa que nos representa coletivamente. Se calhar, uma narrativa que nos representa coletivamente agora é uma narrativa bastante mais individual do que seria no tempo da Maria Lamas.

Naquele tempo as mulheres viviam mais em comunidade…
Sim. E, sobretudo, porque hoje a narrativa de cada pessoa é importante. Adquire uma força que não tinha. Nesta espécie de espelho olho-me na Maria Lamas e vejo as diferenças. Olho-me no sentido de ser a mulher, jornalista e escritora que vai à procura. A ideia de trabalhar a partir de As Mulheres do Meu País parte de um desafio que a Marta Pessoa me colocou para trabalharmos juntas num documentário. Não conhecia o trabalho da Maria Lamas. Eu, jornalista, mulher, escritora, que me interesso porque estas questões, não sabia da existência deste livro. Foi um processo longo, também pelas condicionantes de ser mulher. Engravidei, tive uma filha e houve a pandemia. Estreámos o filme Um Nome para o que Sou em 2022. Escrevi um texto para o filme. Um texto e não um argumento convencional. Assumimos desde o início que teria um tom mais literário. Não é um texto de voz-off de documentário tradicional.
Quase todos os apontamentos dão a ideia de que viajaste sozinha…
Para a pesquisa do filme viajei com a Marta. Mas esta é uma viagem compósita de muitas viagens que fiz ao meu país. No fundo a viagem do livro acaba por ser mais mental do que a do filme. Na viagem mental entram muitos dos sítios por onde passei noutros momentos da vida, muitos deles a viajar sozinha. Alguns encontros que tive acabaram por vir parar a este livro.
Então esse trabalho solitário está presente ao longo de todo o livro…
Sim essa viagem compósita de que falava. Da minha relação com o meu país. De atravessá-lo e pensar sobre ele. Há ainda uma viagem mental em que se dá a descoberta da minha própria história. Do que descubro sobre a minha avó materna. A partir desta ideia de descoberta pessoal, há ainda o legado que deixarei às minhas filhas.

A Maria Lamas vai ao encontro das irmãs portuguesas. Tu vais resgatar um passado que não está devidamente documentado?
O meu livro não é autobiográfico tout court. O tema não é a minha família. Mas vou ao encontro de mim própria. De me entender melhor enquanto mulher. No fundo queria tornar visível essa relação entre a minha avó, ou uma avó de alguém concreto, com todas as mulheres anónimas. Como se qualquer uma delas pudesse ser a minha avó. É dizer que o trabalho que a Maria Lamas deixou, que parece um trabalho tão político, tem um efeito de ação na vida das pessoas. Mas esse efeito talvez seja o mais político de todos. Partindo daquela ideia que o pessoal é político.
Surpreendeu-te a reação da tua filha?
Não. Sabia que ela teria dificuldade em reconhecer as mulheres que ela conhece nas imagens. Mesmo que se tenha cruzado com elas. As coisas já mudaram tanto. Ainda bem que ela não reconhece e até ficou incrédula. Disse-me: as crianças trabalhavam com esta idade? O que era importante para mim era o gesto de lhe mostrar. De lhe dizer: isto era assim e não é muito distante. Era a vidas das minhas avós.
Quando falas das tuas avós estás a falar de mulheres nascidas em que anos?
A avó materna, de que falo no livro, nasceu em 1926, e a paterna em 1929. Eram mais ou menos da mesma geração. Em 1949, quando a Maria Lamas está a acabar a viagem, a minha avó está casada há um ano e tem a minha mãe na barriga. Claro que as minhas avós não tiveram infância, e isso foi muito importante para mim quando estava a escrever o livro. A minha família mantém presente "de onde vimos". E o meu trabalho vai buscar muito aí. É um gesto dessa história que me foi veiculada com silêncios, mas também orgulho de saber o tanto que fizeram com tão pouco. E, claro, de ser merecedora dessa história.
"Partir tendo um livro como guia. Não tanto para saber para onde vamos, mas para saber de onde vimos", escreves. Encontraste esse lugar?
Acho que sim. Todos os meus trabalhos têm sido isso de perceber de onde venho. Fazem parte de um gesto de entender melhor o mundo antes de ter nascido. Se não entender melhor o mundo antes de ter nascido, nunca vou saber quem sou, assim como se não conhecer o meu país até ter nascido, não o conheço. Nós, quando viajamos, vamos numa certa direção porque queremos saber qual a direção anterior. De onde a gente realmente vem.
Falas de escritores que repetem viagens de outros escritores seus antecessores. Até para confirmarem se aquelas pessoas realmente lá estiveram…
Acho importante essa ideia de se repetirem as viagens. Quando falo disso, da repetição das viagens, até digo que se calhar não procuramos aventura, nem conhecimento. Nem sequer inspiração, procuramos uma genealogia. Há três tipos de genealogia neste livro. A minha, direta e de sangue. A da mulher que sou. De ter crescido com a cultura que vem das mulheres daquele tempo num sentido coletivo. E, por fim, a genealogia da escritora em que traço uma relação entre a minha escrita e as de outras escritoras. Essa relação de continuidade, que está tão bem estabelecida na literatura escrita por homens, está por fazer em relação às mulheres. Se não tens a ideia das mulheres que escreveram antes de ti, como te consegues posicionar com segurança como escritora?

Falas também num direito de continuar a ser invisível. Como explicas, no século XXI, este perpetuar de um voto de silêncio das mulheres?
Estou a lançar questões, não a dar respostas. O que estou a dizer é que as mulheres no tempo da Maria Lamas eram totalmente invisíveis e nós estamos a invisibilizá-las ao não contar as suas histórias.
Encontraste os "Lenços Pretos, chapéus de palha e brincos de ouro"?
Nas cidades não, mas se vais ao interior do país continuas a encontrar mulheres vestidas de preto. Idosas. Fazem o luto desde que os maridos morreram. São muito menos do que durante a minha infância. A minha bisavó era dessas, chamava-se Susana. Há um momento do livro em que falo de umas mulheres que encontro na apanha da castanha. São mulheres novas, que não tendo o lenço na cabeça não têm uma vida assim tão diferente da das mulheres da Maria Lamas.
Falas também das viúvas de vivo, queres explicar?
Quando os maridos emigravam, as mulheres ficavam sozinhas na terra. Essa expressão teve origem no Minho, apesar de acontecer em outras regiões. Quando estes homens partiam as mulheres ficavam a viver no maior recato. Vestiam-se de preto como se o marido tivesse morrido, algumas dormiam no chão. Há viúvas de vivo de 60 e tal anos que tiveram esta experiência. Não imaginava tantas mulheres que tivessem vivido este tipo de experiência.
Parece que entre a altura em que Maria Lamas escreveu o livro e o 25 de Abril o tempo cristalizou…
Sim, completamente. Se calhar houve uma pequena evolução com as vagas de emigração. Mas a verdade é que para efeito da vida e dos direitos das mulheres ficou absolutamente cristalizado durante a ditadura. Até à revolução, as mulheres eram propriedade dos maridos. Não tinham sequer direitos básicos.
Até que ponto esta viagem te modificou enquanto mulher?
Não sei se modificou. Sei que me tornou mais consciente dessa minha história. Do lugar que ocupo nessa grande cronologia de mulheres. E que me ajuda a aprofundar, sistematizar mais as minhas ideias. Não num sentido científico, mas mais emocional.
Escutar é uma das poucas artes para as quais as mulheres são amplamente treinadas. Ainda há uma herança desse passado de submissão?
Tem a ver com a educação que as mulheres têm. Com a herança do silêncio. Quem está calado é quem escuta. Escuta as necessidades do outro. A mulher é educada para tratar dos problemas dos outros. Por outro lado, a mulher está ligada à palavra. É através delas que se mantem a tradição oral. As canções, as histórias e as lendas. De certa forma são as guardiãs disso. Tinham menos escolaridade que os homens, mas tinham o poder da palavra. Há uma atenção quase literária à palavra. Davam sentido à vida através das cantigas, ladainhas e provérbios.

Definiste-te uma narradora à janela. Que janela é esta?
Agora apetecia-me responder que a janela também são os livros. A escrita é o lugar de onde observo o mundo. De uma maneira mais prosaica há esta ideia entre o interior e o exterior, que é muito importante na vida das mulheres. Até que ponto sou uma mulher que fica metaforicamente à janela. A janela aparece aqui como uma metáfora da fronteira entre o interior e o exterior. Que é mais difícil de cruzar para uma mulher do que para um homem.
Desenvolves o teu trabalho na Não Ficção e também mostras muitas escritoras que escrevem Não Ficção nos cursos de escrita criativa. Há alguma razão especial para isso?
Não tenho uma agenda. Mas há de facto uma série de escritoras muito interessantes a fazer Não Ficção literária. Há tantas questões da vida das mulheres que estiveram arredadas da história da literatura e do espaço que hoje talvez haja da nossa parte uma necessidade de encontrar a nossa própria forma. Talvez as mulheres precisem de ser mais experimentais e de fazer coisas mais ousadas. De encontrar novas formas de dizer coisas que nunca foram ditas.

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