"Sempre quis ter uma vida normal. Entrar às 9h e sair às 5h"
Discreta e de pés assentes na terra tornou-se um dos maiores exemplos do universo da representação nacional. Está-lhe no sangue, mas não só: é matéria de que é feita. A Máxima manteve uma conversa com Joana Solnado, a atriz que diz só ser atriz porque não lhe é possível ser outra coisa.

Não queria ser atriz. A família tinha um teatro onde passava muito do seu tempo. Gostava de ficar no backstage a assistir a tudo o que por lá se passava. Certo dia, aconteceu estar à hora certa no sítio certo. Era o ensaio geral e uma atriz não apareceu. Não era tarde nem era cedo: a neta de Raul Solnado que, por passar tanto tempo nos bastidores do palco sabia as falas de cor, acabava por substituir a atriz ausente e, inevitavelmente, tornava-se também ela atriz. Tinha apenas 14 anos.
Estreou-se na representação no dia a seguir ao tal ensaio geral, sem qualquer tipo de preparação. Não foi assomada pelos nervos?

Nada. Foi como se estivesse no lugar mais confortável do mundo – tenho nervos hoje, naquela altura não tinha.
E esse acabou por ser o primeiro dia do resto da sua vida… de atriz…
Continuei a fazer teatro por hobby até aos 18 anos. Depois parei para estudar Medicina. E quando parei fiquei tristíssima, não parecia a mesma pessoa. Então percebi o quanto precisava daquilo. Eu era muito blasée em relação aos artistas… Pensava ‘ai está bem, são todos super culturais, super intelectuais, super de esquerda’… Tinha isso em casa. Não havia ninguém na minha família que não fosse artista. Por isso sempre quis ter uma vida ‘normal’, de entrar às 9h e sair às 5h. Porque era o que não tinha. Os artistas trabalham quando os outros estão a descansar e vice-versa. Tinha a sensação que o meu mundo estava todo ao contrário e não queria isso para mim.

Em 2011 acabou mesmo por parar e tirou um período sabático. O que a levou a fazê-lo?
Esgotamento a todos os níveis: físico, emocional, criativo… Nada fazia sentido. Estava a trabalhar 12 horas numa novela, saía da novela e ia para a peça de teatro, saía da peça às duas e acordava às sete para ir para o estúdio… E, de repente, a arte deixou de ser arte e passou a ser um ofício penoso. Não tinha controlo no que estava a fazer, já só fazia o que conseguia, e fazer o que se consegue quando se consegue fazer muito mais é triste. E houve um momento – que foi o dia em que acabou a peça e dois dias depois a novela – em que parei com tudo. Dois dias depois estava a apanhar um avião rumo ao sudoeste asiático, sozinha. Durante dez meses. Com uma mochila de quatro quilos às costas e cinco mudas de roupa. Ah! E quando parti disse a mim mesma ‘não quero mais ser atriz!’ [risos]…
E o que trouxe desse tempo todo fora?

Foi incrível… Primeiro porque ninguém me conhecia de lado nenhum; eu era apenas uma pessoa ‘normal’ e sentia que as pessoas gostavam de mim pelo que eu era, pela minha essência. E isso foi muito bom para a minha autoestima. Fiz amizades incríveis que mantenho até hoje. E só vim para Portugal porque a minha melhor amiga ia casar e eu era madrinha. Acabei por conhecer o meu marido [o chef Nuno Queiroz Ribeiro] no casamento: eu era madrinha e ele era padrinho [risos].
Era o momento certo para voltar, portanto…
Sim… Voltei, conheci o Nuno e poucos meses depois fiquei grávida da [filha] Flor.

E como é que foi regressar, entretanto, ao mundo ‘real’?
Voltei com uma sensação de gratidão enorme. A mesma pessoa, mas bem. Tranquila. Grata pelo que era, pelo que tinha, pela oportunidade de ter ido e por saber o que queria fazer. Voltei com a certeza de que não quero nunca deixar de viajar. Não posso estar aqui sem ter o plano de ir. E fiz, na altura, um blogue só para a minha família que se chamava Viajo Porque Preciso Mas Volto Porque Te Amo, que é o meu lema de vida: preciso de ir, mas também preciso de voltar. Volto sempre maior, mais plena. O facto de ser atriz e ter os olhos todos postos em cima de mim, faz com que o meu ‘eu’ esteja sempre a adaptar-se às expectativas dos outros e daquilo que esperam de mim… E isso, durante muito tempo, acaba por fazer com que o ‘eu’ se molde a uma coisa que se calhar não era o que originalmente seria. E viajar dá-me essa liberdade de voltar à energia original e, então, continuar o caminho da representação.
E quando voltou foi logo fazer televisão?

Quando voltei não queria sequer ser atriz e fui fazer voluntariado. Mas depois resolvi dar uma última oportunidade e fui a Bruxelas tirar um curso, ver se havia ainda um bichinho ou se mudava definitivamente de ramo. Voltei de lá e disse a mim mesma: ‘Não há outra coisa que eu possa fazer, é impossível!’ Portanto, eu só sou atriz porque é impossível ser outra coisa. Se pudesse, eu era outra coisa. Mas não tem dado.
Entre teatro, televisão e cinema, o que é que mais gosta de fazer?
Gosto de fazer os três. São técnicas completamente diferentes, meios de comunicação distintos e trabalham-se coisas diferentes em cada um deles. Eu nunca fiz uma longa-metragem, só curtas, e é, aliás, uma das coisas que adorava fazer… Sempre que tive convites estava com outro trabalho, portanto a primeira vez que fizer um filme vai ser ‘uau!’. Mas as curtas que tenho feito gosto por um motivo, o teatro e a televisão por outros. Complementa-se tudo! Não acredito na [teoria da] atriz de teatro, atriz de cinema… Ator é ator. É completo. Tem a voz, tem o corpo, tem a dança, tem tudo! E isso é que me fascina no ator, porque é um bicho!

É uma atriz discreta. Como é que alguém que não se expõe de forma gratuita sobrevive no atual meio? Sente que se se ‘vendesse mais’, iria (ainda) mais longe?
Eu só criei a minha conta de Instagram há um ano e meio [risos]. Comecei a achar graça mostrar às pessoas quem eu era sem o filtro das personagens. Ser eu. E isso é uma coisa que gosto nas redes sociais. Perdemos os intermediários, como a imprensa. Posso ter a minha voz, ser quem eu quero ser, comunicar o que quero comunicar e mostrar às pessoas quem sou da forma que quero. E essa liberdade eu gosto muito. Não sou refém de onde tenho de estar, porque não consigo, não faz parte da minha natureza. Mas uso as redes para poder deixar de ser a personagem e passar a ser a Joana.
Mas parece que hoje em dia uma atriz não se mede apenas pelo seu talento. Tem de ter contas de Instagram que, por sua vez, têm de ser alimentadas ou... desaparece?
Se já perdi ou ganhei trabalho por causa disso [redes sociais]? Deixo para os outros pensarem. Se vou ocupar a minha cabeça com isso não consigo criar nada. E começo a ser um produto que não é o que eu sou. Não sou um produto vendável a nível de marketing. Se calhar não fiz tantas campanhas de publicidade como muitas colegas minhas, mas esse não é de todo o meu objetivo. Aliás, eu fiz muito menos televisão daquela que as pessoas acham que fiz. Eu descanso muito. A última novela que fiz tem seis anos, só agora estou a fazer outra… Eu espaço muito a televisão, mas também a exposição, para poder ter esta sensação de que quando faço é mesmo a 100%. Só porque sou muito organizada com as minhas contas, nunca precisei de ir trabalhar a correr… O que acho é que, muitas vezes, a questão de ter de aparecer está muito ligada ao precisar de trabalhar. Mas acho que são mais figuras públicas do que atores [a quem isso acontece]. Um ator é uma figura pública por consequência do seu trabalho; a figura pública é ‘pública’ e depois pode ser uma data de coisas: ator, modelo, etc. Eu entendo a procura em querer ser-se figura pública, porque isso abre um leque enorme de profissões.
Aos 34 anos é mãe e desempenha um papel principal numa telenovela em hora premium. Como é que equilibra a vida pessoal com a profissional?
O tempo livre que tenho é todo para a minha família e amigos. Tenho sido muito sistemática… Quando estou a trabalhar organizo bem a minha semana e não vou ao sabor do vento. Quando não estou a trabalhar tiro largos meses para viajar em família… E isso depois dá-me oxigénio para voltar.
Há alguma personagem que a tenha marcado por algum motivo?
Em televisão tenho uma personagem que foi muito importante para mim chamada Mariana. Foi gravada nos Açores e [a novela] chamava-se Ilha dos Amores. Tratava-se de uma menina-bicho que morava no meio da natureza e que não conseguia lidar com a sociedade. E acho que isso acontece com muita gente que continua na sociedade forçando-se a… E ela [personagem] tinha uma coragem imensa, andava sempre descalça, não fazia nada que fosse socialmente correto, era tudo ao contrário [risos]. Recebi imensas cartas de pessoas que se diziam inspiradas pela personagem e fiquei super contente por este lado artístico influenciar pessoalmente o público.
E como foi a preparação para vestir esse papel?
Fui sozinha para São Miguel durante uma semana, escrever, ouvir música, andar de carro…. Perdi-me imensas vezes, chorei de pânico, aquilo de noite pode ser assustador! As árvores são imensas e enormes… Não havia rede. Enfim, toda a experiência de estar ali sozinha levou-me também a outro lugar. Morei lá dez meses, para gravar, e era inspirador!
Uma atriz que a inspire bastante? Nacional e/ou internacional?
Nacional, há várias. Temos atores maravilhosos em Portugal. Mas vou escolher uma que para mim é das atrizes mais incríveis que já vi em cima de um palco… Chama-se Carla Galvão, tem a minha idade [34 anos] e faz teatro. Ela transmite uma dimensão do mundo muito maior que aquilo que o quotidiano… Olho para ela e vejo o universo inteiro. Internacional… Eu amo a Judi Dench! E eu tinha uma paixão pela Marília Pêra, também. São atrizes que me dão mais do que as personagens me estão a dar.
Gostava de fazer alguma coisa lá fora? Há esse sonho?
Hollywood? Jamais… Um filme francês, austríaco, nórdico… sim, gostaria. América não é muito a minha praia. Prefiro a América Latina, nesse aspeto. Há filmes peruanos absolutamente incríveis.
Para onde acha que caminha a televisão portuguesa?
Não acho que caminhe para onde deveria… Mas as coisas são o que são. Para onde deveria caminhar? O público precisa de vidas reais, verdadeiras e de [conhecer a] dificuldade do ser humano. Parece que é tudo lindo e cor-de-rosa e não é. Quando pomos pessoas que admiramos e produtos que as pessoas veem a mostrar que a vida humana é frágil e que podemos estar tristes ou contentes e que isso é ok, estamos a ensinar as pessoas a viver. Esse deveria ser o caminho. Para onde caminha… Para onde o público quiser. Se nós, público, escolhermos melhor, o produto vai atrás. Não somos nós que vamos atrás do produto, mas o produto que vai atrás do público. Logo, se o público escolher melhor, vão-se fazer coisas melhores. Acho que deveria caminhar para aí, mas não caminha. Vai para o futebol e novelas, e irá resumir-se a isso.
