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Quatro escritoras, quatro mundos

Recordamos este artigo de abril de 2017 em que desafiámos quatro escritoras a deixarem a câmara fotográfica entrar para captá-las no local onde se sentam a trabalhar. Entre elas, Leonor Xavier, que morreu hoje, a 13 de dezembro de 2021.

Foto: Gonçalo F. Santos
13 de dezembro de 2021 às 14:53 Carolina Carvalho

Leonor Xavier

"Toda a minha vida está lá. Está lá tudo, os meus papéis, as minhas anotações, as minhas fotografias, os meus quadros, as minhas cruzes e Cristos crucificados, as fita-colas, as tesouras, canetas, borrachas… Quando estou a escrever textos, escrevo no computador, quando às vezes anoto coisas posso escrever à mão. Por exemplo, neste meu livro Peregrinação, na epígrafe eu estava a ver um filme do João Botelho, Um Adeus Português, e corri a escrever num papel a frase que ficou a epígrafe do meu livro. Nunca tive de me isolar para escrever nem acho que escrever seja uma doença, é uma disciplina só. É uma coisa de tarimba, faço ali como posso fazer em outro lugar, mas em princípio faço ali! Eu vim do Brasil em 1987… Ali escrevi pelo menos meia dúzia de livros. Ali foi o quarto de uma das minhas filhas, ela saiu há 20 anos, por isso há 20 anos que eu escrevo ali. É mais resguardado e perto da cozinha e das coisas domésticas, que eu também gosto de fazer."

Peregrinação, Testemunhos que nos Unem (Oficina do Livro)

"O Peregrinação não é um livro confessional, religioso. Eu queria tentar fazer um livro que fosse mais ou menos coincidir com o centenário de Fátima. Sou católica e, por acaso, até já fui quatro vezes a pé a Fátima. Penso que a palavra e o conceito ‘peregrinação’ são muito portugueses, fazem muito parte da nossa identidade, porque há o Fernão Mendes Pinto, há a Peregrinação Interior do António Alçada Baptista… Eu fiz um livro que se chama Portugal – Tempo de Paixão que era a propósito dos 25 anos do PREC em que eu perguntava às pessoas o que foi o PREC na vida delas, o ano de 1975. Nessa época foram 100 pessoas, 50 homens e 50 mulheres. Um dia acordei e lembrei-me de fazer essa mesma estrutura. Então falei com 70 pessoas  um número biblicamente e evangelicamente simbólico, 35 homens e 35 mulheres, todos figuras públicas e perguntei-lhes o que era para eles a palavra, a ideia, o conceito de peregrinação. Então o livro é isso. É muito variado, respondem, naturalmente, crentes e não crentes, de várias áreas de atividades. Como ando no mundo e nesta vida já há muitos anos, fui fazendo."

Foto: Gonçalo F. Santos

Anabela Mota Ribeiro

"O lugar onde escrevo talvez se chame silêncio. Explico. Preciso de muito pouco para trabalhar. Não preciso de uma mesa ou secretária, não preciso do estímulo que vem do diálogo com outros. Posso trabalhar horas com o computador no colo, em parte incerta da casa, a sós comigo. Como se a casa fosse um casulo. Trabalho há muitos anos em casa, raramente me desloco aos jornais e revistas com os quais colaboro. Conheço bem os cantos da minha casa. A casa física e a casa principal que é a minha cabeça. E para me poder concentrar, preciso de silêncio. Tenho dificuldade em sintonizar-me com aquilo que tenho em mão se houver ruídos, conversas, interrupções. De uma forma poética, poderia dizer que para ouvir a minha voz interna preciso de não ouvir nenhuma voz que vem do mundo. E nessa voz interna aparecem as vozes do mundo, bem entendido, porque uma coisa traz outra, uma ideia convoca outra, o pensamento engendra pensamento. A melhor altura para trabalhar nestas condições é a madrugada. Tenho a sorte de acordar depressa e, dois cafés depois, estou pronta. É desse reduto que avanço para o cá fora, de mim para os outros. Este livro começou a ser escrito às cinco da manhã."

A Flor Amarela (Quetzal)

"A Flor Amarela tem na sua génese a minha dissertação de mestrado, que fiz na Universidade Nova, com a orientação de João Constâncio e Abel Barros Baptista. Li de um ponto de vista filosófico um autor que admiro muito, Machado de Assis, e o seu estranho romance Memórias Póstumas de Brás Cubas. Como está expresso no título, é um texto póstumo, escrito por uma ‘pessoa’ chamada Brás Cubas. Parte da singularidade deste romance está aqui: ser escrito por um ‘defunto autor’, que, do post-mortem, nos lega este relato da sua vida. E nós, leitor, tomamos como boa esta ideia impossível! O meu ensaio tem como âncoras a melancolia e o ímpeto na vida de Brás Cubas, uma personagem que se parece com cada um de nós, na sua tentativa de compreensão do enigma da vida, na demanda pelo sentido, na preocupação com a posteridade; ou seja, com a memória que legamos, com o modo como os nossos filhos e obras dirão o nosso nome.

Foto: Gonçalo F. Santos

Dulce Garcia 

"Gosto muito de estar em casa. Trabalho muitas horas fora, o jornalismo é uma profissão altamente desgastante – e com o passar do tempo percebi que preciso de me recolher no meu espaço. A este recanto chamo ‘a minha Nova Iorque dos pobrezinhos’. Tem uma vista fantástica sobre Lisboa, da Avenida da Liberdade quase até ao Rato, que coloca todas as coisas em perspetiva. Não me dá apenas uma imagem da cidade, como me recorda que tudo pode ser minimizado, só depende da escala em que colocamos as coisas. E, para mim, as coisas mais importantes são as que estão dentro de nós, a realidade exterior não é assim tão determinante. Gosto muito deste espaço porque também tem uma luz fantástica, a célebre luz de Lisboa. Tenho dois filhos, ele tem dezassete e ela treze, e, durante muito tempo, quando estava em casa, escondia-me aqui deles. Consigo escrever no meio de alguma confusão, mas não em ambiente familiar. Em casa escrevo quando eles não estão ou então faço-o fora de casa."

Quando Perdes Tudo Não Tens Pressa de Ir a Lado Nenhum (Guerra & Paz) 

"É o meu primeiro romance. Começa com uma notícia que li no El Mundo, de uma alemã que vivia há dois ou três anos no aeroporto das Canárias à espera de um homem que ninguém sabia exatamente o que lhe seria – namorado, marido, amante. Li a notícia e, como faço com frequência, tirei uma fotocópia, guardei e fiquei com a história na cabeça. Sempre quis escrever um romance. Fiz várias tentativas e o ano passado decidi que tinha chegado a altura. É a história de uma mulher que está num aeroporto à espera de um homem. Contempla um triângulo amoroso, portanto aborda as relações modernas, o conflito do fim do amor e a tormenta que isso provoca. Estas duas pessoas conhecem-se num tempo errado – ambas são casadas –, mas depois desse encontro não conseguem escapar à inevitabilidade da paixão e tentam recomeçar uma vida. Só que a partir de uma certa idade, depois de as pessoas já terem estabelecido fundações e compromissos, é muito difícil começar de novo porque elas acabam por arrastar muita mágoa, a dor por terem feito sofrer outros. É complicado recomeçar. Mas é possível." 

Foto: Gonçalo F. Santos

Isabel Stilwell 

"Normalmente é o sítio onde eu escrevo. Preciso de luz e gosto de olhar para fora da janela e ver árvores e um horizonte longo e gosto muito de ter as coisas de que eu gosto à minha volta. No caso deste livro que escrevi agora, à medida que fui escrevendo fui lendo às minhas netas, que tinham cinco/seis anos na altura, bocadinhos do próprio livro ou de documentos que eu estava a ler e elas faziam desenhos e eu punha-os à volta da secretária, porque eram cenas concretas sobre as quais queria escrever e depois olhava para os desenhos e para as coisas à volta. Isso inspira-me. No fundo é um espaço que não é só para escrever, porque tem a televisão e uma mesa e, portanto, ou as crianças ou os mais velhos entram. Não me faz confusão nenhuma o barulho, faz-me confusão quando me pedem para ir almoçar ou fazer o almoço a meio de uma coisa muito importante que estou a escrever, mas a confusão não. Tem de ser um espaço que dê para estar mais gente. Prefiro muito mais escrever à noite, gosto imenso de escrever também quando já está toda a gente na cama e ninguém me vai interromper. É uma mistura."

Isabel de Aragão, Entre o Céu e o Inferno (Manuscrito) 

"O livro novo é muito emocionante! É a história da Isabel de Aragão, que os portugueses imortalizaram como rainha santa, mesmo antes de a Igreja a ter canonizado e eu parti para ela a saber o que todos nós sabemos, mas estava bastante determinada a descobrir quem era a mulher antes. Entretanto, sabemos muito sobre ela (muito mais do que eu esperava, porque estamos a falar do século XIII). A D. Isabel virá para Portugal com 12 anos, casa com o rei D. Dinis que descobri ser um rei fascinante. Traz a sua melhor amiga e dama chamada Vataça Lascaris que era uma princesa bizantina grega, mas mantém sempre uma ligação com uma correspondência intensa com o irmão, o Jaime. Além do que sabemos, que gastou a fortuna pessoal dela a ajudar os pobres, teve um papel muito importante na conciliação destas guerras que se iam fazendo. Ela só tem um rapaz e uma rapariga e depois a filha dela com oito anos vai para Castela para ser rainha e faz-se um triângulo de espionagem que é: Portugal, a corte de Castela e a corte de Aragão. É verdade que ela é que mandou construir o Convento de Santa Clara, mas ela só vai para o convento depois do marido ter morrido, juntos são reis durante 43 anos. É uma pessoa que acredita que pode servir a Deus, mas sem se obrigar a nenhuma ordem religiosa."

Foto: Gonçalo F. Santos

Fotografia de Gonçalo F. Santos.

Styling: Diana Bastos e Catarina Chimeno. Cabelos e maquilhagem: Joana Moreira e Elodie Fiuza.

*Originalmente publicado na edição de abril de 2017 da Máxima (nº343)

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