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O género do não-género

Caitlyn Jenner deu uma nova visibilidade ao tema com a Vanity Fair mas, no que toca à passerelle, o mérito vai para Allessando Michele (Gucci) que, ao esbater as diferenças entre modelos masculinos e femininos, reacendeu a discussão dos géneros.

03 de novembro de 2015 às 08:00 Máxima
Apesar do cabelo comprido e dos anéis que lhe preenchem os dedos, Alessandro Michele, o italiano com ares de cigano que tomou as rédeas da italiana Gucci no início do ano, tem uma aparência bastante masculina. Chega a roçar o macho latino com sangue quente a correr-lhe nas veias. Talvez por isso, se esperasse dele uma coleção em que a sensualidade estivesse presente e com muita pele à vista, como ditam as regras do sex appeal. Tudo bem misturado com um pouco da genética Gucci, onde o sexyness esteve sempre presente. Só para termos uma ideia, a Vogue brasileira falou em coleções "arrasa quarteirão", quando descreveu a Gucci pré-Alessandro.
Era por aqui que se situavam as expectativas a 25 de fevereiro, dia em que o ex-braço direito de Frida Gianini deixava as catacumbas da casa estabelecida em Florença desde 1921, para se colocar sob os holofotes. Três coleções depois, a indústria confirmava que Michele tinha superado a prova, cumprindo assim a urgência da Gucci: reavivar uma marca com quase um século, conferindo-lhe personalidade e contemporaneidade. Assistiu-se, é certo, a "um pouco de Michele" nas coleções – joias vintage e detalhes renascentistas que demonstraram a paixão do designer por tudo o que é passado. "O futuro não me interessa – ainda não existe –, já o passado e o contemporâneo fascinam-me", revelou o criador à Harper’s Bazaar. A verdade é que, mais que as alusões ao passado, o fator que fez revirar cabeças, causar espanto e controversas opiniões ao melhor estilo "ou se ama ou se odeia", comme il faut na moda, foi outro. O que se viu no desfile de homem para a próxima primavera/verão foram modelos masculinos de saias impecavelmente conjugadas com camisas de laços à la corte de Luís XIV. Viram-se golas vitorianas e delicadas flores bordadas em looks totais, viu-se muito cor-de-rosa e ainda purpurinas que cobriam os slippers. "Estou a tentar provocar uma pequena revolução na casa – trazer uma nova linguagem à superfície, outra forma de comunicar beleza e sexualidade, que é já uma palavra antiga", referiu.
E, deste modo, confundindo uma plateia inteira que já não sabia bem se os modelos que desfilavam eram do sexo masculino ou feminino, Alessandro, o grande, rompeu com os estereótipos sobre as formas tradicionais do género, movimento que, em tempos, deu origem ao termo Gender Bender. "Algumas mulheres ainda são forçadas pelos homens a terem um determinado aspeto para serem aceites pelo público em geral. Acho isso terrível", explicou o designer. E acrescentou: "Trata-se de uma mulher que não se sabe se tem namorado ou namorada. Uma mulher com uma enorme liberdade de expressão."
Também recentemente, o designer americano Rick Owens, numa tentativa de desconstruir os valores tradicionais da virilidade e do vestuário masculino, apresentou, nas suas propostas para a temporada fria, túnicas que deixavam os pénis dos modelos à mostra, com uma nada subtil finalidade de quebrar as barreiras das formas aceitáveis de se cobrir e mostrar o corpo. Por assim dizer, o movimento do Gender Bender já andava, a bem ou a mal, a ser desbravado: "Eu não inventei nada", acrescentou Michele quando questionado acerca da sua primazia. E continuou: "Armani e Saint Laurent fizeram o mesmo. Por isso, quando vejo que a imprensa me está a dar os créditos, rio-me porque acho que essas pessoas conhecem mal a história da moda."
 
Nem feminino nem masculino: Gender Bender
A história, e nisto Alessandro Michele está pleno de razão, está cheia de fortes alusões à moda do não-género. Num passado mais recente com cerca de cinco anos, a guerra dos sexos eclodia no mundo da moda, quando um modelo masculino com trejeitos efeminados começava a tomar conta das passerelles ditas "delas". Falamos de Andrej Pejic, o modelo bósnio, alto, loiro, de rosto angelical e traços mais-delicados-é-impossível, que em 2011 entrava na lista das 100 mulheres mais sexy do mundo. Em 2014, Andrej passava a Andreja, tornando-se "oficialmente" mulher. Ainda por esta altura, Lea T, a modelo brasileira que Riccardo Tisci, diretor criativo da francesa Givenchy, apadrinhou, fazia a mudança de sexo e tornava-se uma das modelos mais requisitadas da praça. É importante referir que, no transgenerismo, a pessoa, por não se identificar com o género designado pelo nascimento, opta, se possível, pela mudança de sexo. Dentro deste grupo, podem estar incluídos os transexuais ou os travestis – de notar o prefixo "tra" de transformação, sempre presente na identificação do grupo. Já para os Gender Benders a mudança de sexo não tem necessariamente de acontecer, uma vez que os mesmos não se identificam com nenhum dos dois géneros, permanecendo num limbo conceptual "sem sexo".
Outro termo que vem à baila na questão dos géneros é a androginia. Os vários vocábulos confundem-se, já que no final de contas todos eles transmitem uma insatisfação relativa ao género imposto à nascença. Mas vejamos. A androginia, palavra muito usada no dicionário fashionista e que tanta tinta tem feito correr nas páginas das publicações de moda, normalmente acontece quando vemos na passerelle delas um smoking, um fato completo ou uns sapatos Oxford. (De notar que até aqui só as roupas manifestavam o movimento. Agora mais que as roupas, são os modelos. E isso pode fazer a diferença na discussão). Os defensores deste movimento, que não deixa de ser uma forma de ativismo social, identificam-se muitas vezes com o género que lhes é atribuído à nascença, mas desafiam as normas de comportamento impostas, através de atitudes andróginas – e aqui a roupa tem um papel fundamental – ou simplesmente assumindo papéis atípicos ao seu género. Exemplificando, podemos dizer que enquanto uma Andreja Pejic se insere antes na classe dos transgéneros, personalidades como a atriz Tilda Swinton, apontada inúmeras vezes como a rainha da androginia, ou a modelo britânica Stella Tenant, conhecida pelo seu corte de cabelo à rapaz e pelo abuso de calças, fazem ambas parte da classe dos que apenas não aceitam ter-de-ser ou agir de determinada forma, só porque têm entre as pernas um certo e determinado órgão. Desafiantes do género, portanto.
 
As mulheres já vestiam as calças
A moda, como o universo das artes em geral, está recheada de exemplos do movimento andrógino. Já em plena década de 20 do século passado a transgressão ganhava vida pelas mãos da única Coco Chanel. A criadora, que impôs o tailleur e a moda dos cabelos curtos, criava, numa época ainda sufocada pelo corpete, o primeiro par de calças largas inspirado nos marinheiros, que facilitava os movimentos e conferia conforto às, até então, aprisionadas mulheres. De relembrar que, poucos anos antes, rebentava uma I Guerra Mundial que levava os homens para longe, obrigando o sexo feminino a vestir, literalmente, as calças. Uma década depois, atrizes como Greta Garbo ou Marlene Dietrich – esta última acabando por se tornar um dos símbolos mais fortes da androginia – adotavam as calças compridas. Reza a história que Dietrich chegou a ser notificada por um chefe da polícia de Paris por circular nas margens do rio Sena com calças e paletó masculino. Mas se considerarmos a época (década de 1930), tal até é imaginável ou compreensível. O mesmo não se passa com o episódio que a francesa Michèle Alliot-Marie vivenciou largas décadas depois, em 1972. Segundo o jornal brasileiro O Globo, a política foi impedida de entrar na Câmara dos Deputados por estar vestida com calças. Na época, Michèle deu uma resposta que faria corar a própria Maria Antonieta: "Se são as minhas calças que incomodam, posso tirá-las o mais rápido possível." Recordemos ainda, nesta ode à androginia, Mick Jagger, vestido com as roupas da sua namorada na época, Marianne Faithfull. Ou Boy George, que no auge da sua carreira, em plena década de 1980, faz um statement que acabaria por ficar para a história como sendo uma das mais famosas citações do cantor: "I can do anything. In GQ i appeared as a man." Também no mundo do showbiz, mas já perto do século XXI, o livro The Spin Alternative Record Guide, lançado em 1995, e uma das maiores referências de publicações ligadas à música, descrevia a cantora Annie Lennox como sendo uma "Gender-fuck goddess".
 
Então porquê hoje?
A questão que se coloca é: se a moda sempre ultrapassou as fronteiras entre feminino/masculino (especialmente com a ajuda do mundo das artes, da música e das celebridades), porquê o histerismo desmedido de hoje?
Numa entrevista ao site brasileiro Fashion Forward (http://ffw.com.br), o consultor criativo e de tendências Jackson Araújo responde com o fenómeno do transculturalismo, que salienta a fluidez entre as fronteiras culturais e no qual não cabem mais definições pré-estabelecidas sobre papéis masculinos e/ou femininos. "A cultura de consumo contemporânea tem colocado em choque as relações tradicionais de género e classe social", explica. "Com isso, o mapa de mobilidade social está a ser redesenhado em escala global, garantindo novos valores para os espaços públicos, imagem corporal e classe social, desafiando categorias identitárias anteriormente existentes. Basta pensar na nova classe média e no fácil acesso ao consumo das marcas." No passado mês de março, a gigantesca inglesa Selfridge leva a cabo nas suas lojas um revolucionário projeto denominado de Agender. Como o próprio nome indica – sem género ou não-género, já que o prefixo "a" em inglês significa "non" –, esta iniciativa permite ao consumidor experienciar uma inovadora forma de compra, em que a divisão das peças em secções masculinas e femininas deixa de existir. Cerca de um ano antes dos armazéns mais famosos do mundo mostrarem a sua visão avant-garde, também a nova-iorquina Barneys dava um pulo na tendência ao colocar, no seu catálogo do verão 2014, 17 modelos transgéneros.
Quem (ainda) traz "the sexy back"

Apesar do murmúrio em torno do movimento gender neutral, um grupo de designers que inclui Oliver Rousteing (na Balmain), Anthony Vaccarello, Peter Dundas (ex-Pucci, atual Roberto Cavalli) e David Koma (Mugler) continua a garantir o poder da sedução através das roupas, com peças que valorizam formas e deixam pele à mostra. O propósito não é menos do que causar o efeito "cheguei!".

O pico do movimento de géneros aconteceu, também este ano, quando o pai da controversa família Jenner/Kardashian mudou de sexo apresentando ao mundo uma Caitlyn Jenner que não demorou a saltar para a capa da conceituada Vanity Fair, qual Vénus de Botticelli. "Call me Caitlyn" poderá muito bem vir a ser a citação da época.
De volta às passerelles e além da Gucci de Alessandro Michele, outros designers já haviam colocado homens de saia nas suas propostas. Falamos de Junya Watanabe, famoso pela forte componente conceptual, como aliás a escola japonesa já nos vai habituando, ou de J.W. Anderson, um dos nomes mais sonantes quando o debate recai nas fronteiras entre o feminino e o masculino. Importante é também referir o trabalho do britânico Gareth Pugh, que se encontra no topo dos criadores com tendências agenders. Não é por acaso que uma das maiores fãs de Pugh é a cantora Lady Gaga, amante assumida do estilo andrógino, que já surgiu inúmeras vezes vestida com a etiqueta Gareth Pugh.
Posto isto, se o homem do momento continua a ser Alessandro Michele num universo onde a andoginia já tem sido bem explorada, como vimos, das duas uma: quis de facto romper com o passado da casa italiana, mostrando o inesperado e causando alarido (de uma forma ou de outra a Gucci sempre foi uma label "certinha"). Ou, como afirmou cética a comentadora social Bidisha numa entrevista ao The Guardian acerca da tendência dos géneros: "Eles (a moda) farão o que quer que seja, desde que se transforme em buzz cultural – que, por sua vez, se tornará em vendas e dinheiro." O que a moda nos diz, remata, "é que podemos ser transexuais, andróginos, velhos, novos, gordos ou magros, e ainda assim devemos ser tão bonitos quanto todos os outros modelos. As suas carteiras vivem de mãos dadas com o status quo". Com a sugestão de Bidisha, fica a pergunta: é, afinal, a sociedade que influencia a moda ou é a moda que nos domina?
Marlijn Hoek
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