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Maria Elisa: A cuidadora

Foi quando a mãe entrava na sala de operações que Maria Elisa decidiu escrever o livro Amar e Cuidar A Minha Viagem Pelo Mundo do Cancro. Um manual de sobrevivência para doentes, mas também uma ajuda preciosa a todos os que, de alguma forma, são afetados pela doença.

Maria Elisa: A cuidadora
Maria Elisa: A cuidadora
26 de fevereiro de 2013 às 07:12 Máxima

Apresentou vários programas de informação na RTP, lançou a revista Marie Claire, dirigiu o Serviço de Comunicação da Fundação Calouste Gulbenkian, foi conselheira de imprensa da Embaixada Portuguesa em Madrid, conselheira cultural da Embaixada Portuguesa em Londres e deputada na Assembleia da República. Maria Elisa é uma das jornalistas mais conhecidas do país. É nessa qualidade, sem nunca pôr de lado as suas qualidades enquanto entrevistadora e investigadora, que assenta a identidade de um livro com uma mais-valia singular: ter sido escrito por uma filha que assume, a tempo inteiro, a função de cuidar da mãe no momento em que esta inicia uma luta contra o cancro. Amar e Cuidar – A Minha Viagem Pelo Mundo do Cancro (Esfera dos Livros) dá conta desse percurso, mas vai mais longe. Combina habilmente histórias pessoais e informação médica, com a razão e a emoção que, inevitavelmente, fazem parte do processo.  

O seu livro tão depressa parece um livro técnico como evidencia um lado emocional. Qual era o seu objetivo quando decidiu escrevê-lo?

Parti da ideia de poder tornar útil a minha experiência pessoal, que estava a ser extremamente dolorosa. A ideia do livro nasceu do terror de perder a minha mãe no dia da operação, um medo completamente irracional mas que, naquele dia, me assaltou. Durante uma hora e tal escrevi ao correr da pena. Depois, comecei a perceber, por tudo o que andava a ler e pelas conversas que ia tendo pelos vários hospitais por onde fomos passando, com médicos, enfermeiros, voluntários e pessoas que passaram pelo mesmo problema, que poderia ter material para fazer um livro útil para doentes e cuidadores.

Porque o livro destina-se tanto a uns como a outros.

Exatamente. Como dizem todos os livros que li sobre a doença, o cancro é uma doença da família. O livro, para ser útil, tinha de chegar a todos os que estão envolvidos. Funciona, por isso, como manual de sobrevivência para doentes e cuidadores. Mas a presença das 16 histórias de vida que cruzam o livro também o torna útil a profissionais da medicina, permitindo que percebam o outro lado. Não é que não o conheçam, mas uma coisa escrita permite outro tipo de reflexão, diferente daquela que é feita no dia a dia, em que estão sempre debaixo de uma pressão terrível. Como são menos do que deveriam ser, acabam por ter de escolher entre dedicar mais tempo ao doente e à família ou ver mais doentes. Isto é um problema terrível para os médicos. Muitas vezes, são obrigados a romper uma conversa simplesmente porque não têm tempo.

Isso tem a ver com a importância da humanização que refere no livro. Por outro lado, também dá alguns exemplos (nomeadamente no caso da sua mãe) de médicos que mostram pouca sensibilidade na hora de dar as más notícias...

São casos, como digo no livro, mais raros. É curioso constatar, nos exemplos que dou, que as pessoas gostam de dizer o nome dos médicos que as trataram bem, mas nunca mencionam os que as trataram mal. Na maior parte dos casos dizem que não se lembram. Em Portugal ainda se faz a sacralização do médico. No caso da minha mãe, e perante a total incapacidade de um médico comunicar com uma senhora de 85 anos no momento mais frágil da sua vida, decidi que ela não seria consultada por ele. Fomos para o sistema privado. Tenho consciência de que a esmagadora maioria dos portugueses não pode tomar esta opção e a pessoa pode ter de conviver com a desumanidade do médico durante o tratamento.

O doente fica abandonado à sorte de encontrar um médico com quem empatize?

É verdade. Não sei o que aconteceria se um doente dissesse que queria ser visto por outro médico do mesmo serviço, mas creio que não deve ser possível. Quem não tiver a possibilidade de ir para o privado tem de ficar com quem lhe é atribuído. Mas a verdade é que a esmagadora maioria dos serviços de oncologia dos hospitais públicos são bons ou muito bons.

Como é que foi tendo conhecimento das histórias que conta no livro?  

Tive um cuidado: o de não contar casos de pessoas que conhecesse. Há apenas um ou dois que são de pessoas conhecidas e só os utilizei porque eram, de alguma forma, invulgares. Mas em cada hospital por onde fui passando, não apenas com a minha mãe mas no processo de investigação para o livro, procurei falar com médicos e enfermeiros de vários serviços, para abranger o maior número possível de vários tipos de cancro. Foi a eles que pedi esses casos.

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Ter conhecimento dessas histórias não tornou o processo ainda mais doloroso?

Sim, mas por outro lado fez com que, até certo ponto, deixasse de me preocupar só com a minha mãe e tivesse criado uma enorme empatia com essas pessoas. Hoje posso dizer que sou amiga de boa parte delas... Há doentes que me ligam para falar um bocadinho. Os casos mais difíceis não se devem necessariamente à doença. A maior parte dos cancros, hoje, se for diagnosticada a tempo, tem boas hipóteses de ser curada. Mas o cancro cruza-se com todos os problemas que a pessoa já tinha. E a crise veio agravar essas realidades. Há pessoas cujas histórias de vida são muito tristes e a doença só potenciou essa tristeza. O caso da Maria do Céu, que relato no livro, uma mulher que teve cancro da mama e foi abandonada pelo companheiro, é um exemplo disso. Os três casais que perderam as suas crianças. Ficam laços...

Até com as equipas médicas. O prolongar dessa relação é saudável?

No livro conto a história da Luísa, que continuava a visitar o serviço onde o marido morreu ao fim de um ano. Foram os médicos que a alertaram para isso, porque perceberam que ela não conseguiria fazer o processo de luto se continuasse ali. Como, aliás, me está a acontecer a mim... O livro, o seu lançamento e a sua divulgação estão a fazer-me adiar esse processo. Continuo sem entrar no quarto da minha mãe. Acho que o livro foi terapêutico enquanto o escrevi e enquanto a minha mãe esteve doente mas não contava que ela morresse um mês depois de o ter entregue à editora. Há pessoas que conseguem superar e outras que não conseguem. Pessoas destruídas aos 30 e tal anos e que dificilmente voltarão a ser como eram. A partir desse momento, já nada é importante, o prazer que podem tirar das coisas já não é o mesmo. Pessoalmente, não me conseguia descolar da partilha que fui fazendo e, por isso, tive vários momentos de paragem durante o processo de escrita. Nessas alturas concentrava-me nas leituras, acumulava informação.

A doença da sua mãe trouxe-lhe uma nova rotina?

A doença da minha mãe alterou completamente a minha vida. A minha vida social e profissional ficou profundamente condicionada. É importante lembrar que estava a fazer um programa de saúde enquanto escrevia o livro. O meu universo fechou-se neste tema. Não tinha, de facto, espaço para mais, porque queria estar com a minha mãe e sabia que ela estava sempre à minha espera.

Tornou-se na “cuidadora”. É curioso notar que usa sempre a variante masculina do termo mas depois conclui que, na maior parte dos casos, quem cuida são as mulheres...

Há sempre alguém que, quase por exclusão de hipóteses, se torna cuidador. Claro que, em muitos casos, haverá uma repartição de tarefas, até porque o cuidador pode ser alguém que trabalha.

Mas as condições da vida fazem com que seja quase óbvio que o cuidador seja determinada pessoa. Costuma ser uma mulher porque as mulheres são naturalmente cuidadoras mas também porque, culturalmente, sempre estiveram mais confinadas à casa e o cuidador atua mais no espaço da privacidade e da intimidade. Além disso, elas estão mais habituadas a sacrificarem-se pelas famílias... Mas também tive conhecimento de muitos homens que foram grandes cuidadores, sobretudo das suas mulheres ou dos filhos. Nestes casos, os cuidados são muito partilhados, sempre com um grande sacrifício da área profissional. Ainda há pouca compreensão das entidades patronais para estas situações. Quem é que hoje pode deixar o emprego para acompanhar um familiar a um tratamento de quimioterapia? Quase ninguém. Com a crise tudo fica mais difícil. Vamos ter cuidadores cada vez mais esgotados. Eu tive a sorte de ter ajuda, mas deixei de ter vida pessoal. As coisas têm consequências.

O sobrevivente não é só o doente que vence o cancro.

Não. As equipas de cuidados paliativos têm também por missão dar apoio aos familiares e amigos, depois do desaparecimento do doente. As pessoas levam muito tempo a readaptar-se. Muitos precisam de acompanhamento. A psico-oncologia, como subespecialidade médica, é muito necessária. Depois, ainda prevalece o discurso do fator tempo, de que só ele é capaz de sarar algumas feridas. Ainda hoje falei com uma mulher que perdeu a mãe há 13 anos, que me disse que o tempo não faz nada. Depende das pessoas. Umas precisam de falar e de lembrar a pessoa que partiu (é claramente o meu caso), outras preferem o silêncio. É preciso respeitar o período de luto, perguntando sempre ao outro se se pode ajudar de alguma forma. Nunca sabemos ao certo quanto tempo é que este processo vai durar, mas nunca se fica igual.

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