Maria de Medeiros - Exótica e multicultural
Maria de Saint-Maurice Esteves de Medeiros Victorino de Almeida. Um nome longo, pleno de significado. Mulher de obra feita. Uma artista multifacetada. Em Galinha com Ameixa enfrenta o desafio de ser não amada. Oportunidade para falar da vida, do amor e da arte.

Maria é talvez a nossa maior atriz. Ainda que trabalhe mais em França, onde vive, e em outros países da Europa. “Bem que gostava de trabalhar mais em Portugal”, haverá de lamentar-se na nossa entrevista. Isto apesar de nunca ter voltado as costas ao seu país. Aliás, visita-nos com regularidade. Ultimamente para gravar mais um disco, em que conta com a participação do The Legendary Tigerman, retribuindo a parceria que teve com Paulo Furtado em Femina. E também num anunciado regresso em outubro, para apresentar o seu novo filme na Festa do Cinema Francês.
'As minhas filhas são um pouco inclementes comigo'Falemos, então, de Galinha com Ameixas. Para ganhar inspiração, poderíamos até apreciar o petisco gastronómico, o tal frango frito com bacon, devidamente regado com um molho de ameixa preta batido com vinho branco. Quem sabe até se não motiva as leitoras a preparar o manjar e a degustá-lo antes deste filme da iraniana Marjane Satrapi. Uma vez mais, inspirado numa novela gráfica da sua autoria e que passou para o ecrã, sempre em parceria com Vincent Parnnaud. Tal como o notável Persépolis (2007), a sua estreia com uma animação a preto e branco reproduzindo a novela gráfica inicial. Agora temos um luxo barroco colorido. Inevitavelmente pintado a partir de uma memória onírica do Irão de Marjane e devidamente filtrada por uma percepção artística do mundo. Maria aceitou o desafio de ser uma mulher incompreendida nesta melancólica, mágica mas também divertida história de amor, desamor e perda. Sobretudo porque é um violino que se interpõe entre esta mulher e o marido, interpretado com sentimento pelo francês Mathieu Almaric.
Um filme exótico a merecer um local equivalente para a entrevista com Maria. Quis o acaso que, após uma entrevista internacional, em Veneza, nos encontrássemos semanas depois em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, após a apresentação do filme no festival de cinema local. Agora em tom mais confessional. E em português. O cenário foi o Chameleon Bar no ultra luxuoso Fairmont Hotel, quartel-general do evento, com vista para a imponente mesquita Sheik Zayed, o grande impulsionador da formação dos EAU. Sem galinha com ameixa, mas com um luxuriante prato de sushi.
Antes de mais, apetece perguntar, como pessoa multicultural e viajada que é, o que está a achar deste lugar? Já tinha estado no Médio Oriente?
Na verdade, estou fascinada. Nunca tinha vindo ao Médio Oriente, conhecia apenas o Magrebe. Mas aqui é outra coisa. Esta presença do mar, do deserto e esta arquitetura futurista... Adoro cidades assim, misturadas. Faz-me até lembrar Brasília. Gosto muito.
E este povo, não será ainda mal compreendido pelos ocidentais? E esta cultura, esta religião? Ainda que os Emirados sejam particulares...
Na verdade, para mim é ainda um pouco difícil fazer um comentário ou um julgamento porque só cá estou há dois dias. Mas sinto que são pessoas muito acolhedoras.
Com foi desfilar ontem pela passadeira vermelha? Afinal de contas, nada a que não esteja habituada.
(risos) Sim, é verdade. Mas gostei muito da plateia ao ar livre e a receção do público foi muito acolhedora. Também gostei da declaração do embaixador português aqui em Abu Dhabi.
E o que disse?
Levantou-se, disse que era o embaixador português e fez uma homenagem muito comovedora ao meu pai. Como o filme trata de um músico, mencionou como era complicado conviver com um génio. E referiu que pensou no meu pai. Comoveu-me porque também tinha pensado muito nele durante a filmagem.
É interessante porque a sua personagem tem um papel ingrato, ao experimentar um lado mais negativo do amor...
Sim, aquele que não é retribuído...
Como atriz sentiu que foi um desafio mais exigente?
Sim, é o tipo de papel que uma atriz hesita em aceitar, não é? Para mim foi um desafio, mas sobretudo uma dádiva. Aceitei porque era a oportunidade de trabalhar com a Marjane, que tem uma obra de grande sofisticação. Ela própria surpreendeu-se com as interpretações dos atores.
Conseguiu ver algo do seu pai na personagem do violinista Nasser Ali?
É evidente que não é a mesma coisa. Mas é verdade que os grandes músicos vivem sempre rodeados da sua arte e isso pode não ser muito agradável para algumas pessoas da família, como as crianças. Mas considero que foi um privilégio crescer ao lado do meu pai. E acordar todas as manhãs com o meu pai a estudar Chopin ou Beethoven.
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Marcou-a, de certa forma, essa vivência com um artista. Não só pela arte, mas também pelas viagens...
A minha vida foi sempre cheia de viagens. Desde o tempo que cresci em Viena. Regressei a Portugal com 9,10 anos (a seguir ao 24 de abril).
Do que se lembra desse período?
Lembro-me, quando era miúda, de viajar com os meus pais por toda a Europa, nas nossas férias. A minha mãe dominava várias línguas e trocava rapidamente de uma para outra sempre que atravessava a fronteira. Acho que sonhei em fazer a mesma coisa.
Entretanto, estudou em Paris...
Sim, frequentei sempre uma escola francesa. E quando se estuda numa escola francesa é natural que acabemos por estudar em Paris. O que é engraçado é que estive na mesma escola que a Marjane, em Viena. Digamos que somos ambas vienenses (risos). Ela é iraniana e eu sou portuguesa, mas, curiosamente, quando vi Persepolis reconheci o liceu onde tinha andado. Mas estive lá mais nova do que ela.
Como foi que se conheceram?
Já conhecia o trabalho dela e admirava-a muito. Também gosto do Vincent [Paronnaud]. São ao mesmo tempo muito gráficos, divertidos, um pouco punks. Mas funcionam às mil maravilhas. Não sei como conseguem... Complementam-se um ao outro. Felizmente, fui júri em Cannes quando passou lá o filme dela [Persépolis]. Quando a conheci houve uma simpatia imediata. E mútua. Isso sempre ajuda.
Votou nela?
Sim, todos votámos nela (risos). Ficámos maravilhados pelo filme.
Quando me propôs este trabalho, não podia recusar. Fiquei entusiasmada ao estudar a personagem, porque é triste, feia, grita com o marido, bate nas crianças... Quis defendê-la, compreendê-la. Por que o marido nunca olha para ela. Por que fica tão zangada.
Como realizadora exigente que é estaria disposta a uma experiência dessas?
Partilhar a realização? Acho que deve ser difícil encontrar a pessoa certa com quem ter essa experiência...
Quem sabe, por exemplo, com a Inês...?
A minha irmã?! Não creio. Apesar de existirem várias duplas de irmãos realizadores, todos eles começaram desde cedo a fazer cinema juntos. O que não foi o nosso caso.
Acha que este foi um desafio maior por se tratar de uma personagem sem amor? Isso dá-lhe mais força enquanto atriz para a trabalhar?
Sim, é muito interessante para uma atriz defender uma personagem assim, um patinho feio. Ela chama-se Iran e isso é também uma declaração de amor pelo país e pela vida. No fundo, é também um conto filosófico.
A Maria também teve um período rebelde na sua vida?
Ainda estou a vivê-lo (risos). Espero nunca sair dele. No fundo, tento ter uma distância para me rir das coisas.
Esse lado rebelde é mais do seu pai ou da sua mãe?
(risos) Acho que de ambos. Como sabe, a minha mãe foi uma jornalista política. Graças a ela realizei Capitães de Abril (2000), um filme muito político, mas também o documentário sobre realizadores e críticos de cinema (J’Aime, Moi Non Plus: Artistes et Critiques, 2004). Tive a experiencia de estar em Cannes com vários chapéus, como atriz, como júri e até como jornalista. E reparei que como jornalista foi o mais divertido... (risos)
Não me diga. Olhe que dá muito trabalho...
Sim, mas como atriz mais ainda. Nunca dá para ver filme nenhum, ao passo que vocês não fazem outra coisa (risos).
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Fazemos, sim. Fazemos entrevistas, andamos a correr atrás de estrelas de cinema... (risos)
Por exemplo, lembro-me de ir a Veneza e era tudo muito mais calmo, mas Cannes é um stress! Mas como jornalista, diverti-me imenso. Talvez por ter ido apenas uma vez.
Já agora, diga-me, como é que faz a gestão do tempo lá em casa? Não é que viva exclusivamente para a profissão, mas...
Sim, é um pouco complicado. As minha filhas são um pouco inclementes comigo. Já perceberam que a minha vida é viajar.
Não protestam?
Protestam um bocadinho (risos) Mas sempre que posso, levo-as comigo. De resto são crianças bastante sociáveis, não têm medo do desconhecido. Isso é muito importante.
Já nota nelas aquele lado inevitável de uma faceta artística?
Sim, de momento são muito artistas, mas tudo pode acontecer...
A Maria também é cantora. Está a trabalhar em material novo?
Sim, estou agora a gravar um disco novo. É diferente porque comecei a compor e a escrever a letra.
Em francês?
Em muitas línguas. A minha cabeça está agora organizada desta forma. Acabei de gravar duas canções com o The Legendary Tigerman. Já tinha participado no álbum dele, no Femina, e agora foi a vez dele gravar para mim.
Vai ser um álbum com várias colaborações?
Terá várias colaborações de músicos, mas a cantar será apenas o Paulo Furtado.
E de novos filmes, por estrear em Portugal, o que temos?
Tenho o Ni a Vendre Ni a Louer, do Pascal Rabaté. É uma verdadeira pérola, pois trata-se de um filme sem diálogo. Um pouco a lembrar o Jacques Tati. Fiquei muito contente por ver que o público em Lisboa – na Festa do Cinema Francês, em outubro passado -, adorou. Estava uma sala a abarrotar e as pessoas adoraram. E tenho ainda o HH, Hitler à Hollywood, de um realizador belga, bastante original [Frédéric Sojcher]. É um falso documentário em que os atores fazem de si próprios. Sou a Maria de Medeiros a fazer um documentário sobre a Micheline Presle, que também faz dela própria. Mas afinal é tudo ficção, a começar pelas nossas próprias personagens. É muito divertido. É um filme sobre a história do cinema, com algumas informações muito interessantes sobre o cinema europeu versus cinema americano.
Por onde passa o seu futuro?
Vou filmar em novembro outro filme francês. Um realizador de origem tunisina. Estou também a trabalhar num documentário para o Brasil.
E Portugal?
Bem que eu gostava de trabalhar mais com Portugal. Adorei fazer o Viagem a Portugal com o Sérgio Treffaut. Mantenho que é um dos melhores filmes que fiz na minha carreira.
