Mães e filhas da liberdade. Sete personalidades femininas refletem sobre Portugal antes e depois do 25 de Abril
O que significa ser livre? No mês em que se assinalam os 50 anos do 25 de Abril quisemos saber junto de algumas mulheres com papeis de peso na sociedade portuguesa de que forma é que se honra a liberdade.

Desde as primeiras horas da Revolução que as mulheres ocuparam o espaço público e reivindicaram os seus direitos. Até então tinham muito poucos. A começar pela desigualdade jurídica. A historiadora Irene Pimentel lembra que, com o nascimento da Comissão de Moradoras, as mulheres foram as primeiras a deixar os bairros de lata e a habitar casa vazias, levando a respetiva prole. Os maridos, esses, só foram a seguir. Prestes a cumprir 24 anos, na véspera do 25 de Abril Irene estava em atividade política clandestina. "Andei até às três ou quatro da manhã a colar vinhetas contra a guerra colonial nas paredes de vários prédios de Lisboa". Como de costume, deram-lhe boleia para casa. Passou pela Rua Sampaio e Pina onde ficava o Rádio Clube Português que aquela hora já teria sido ocupado. "Parecia uma noite normal". Mas não, era a "madrugada esperada" por Sophia de Mello Breyner. Naquela noite Irene adormeceu sem ter conhecimento de que já não corria o risco de ser presa. No dia seguinte, quando soube do golpe de estado, refugiou-se numa casa segura. Às seis da tarde Marcello Caetano rendeu-se e a sua vida passou a ser outra. Depois de ter assistido na televisão à proclamação da Junta de Salvação Nacional, seguiu para a baixa lisboeta e esteve a discutir política na rua até ao primeiro de maio.


Dois dias antes, fazê-lo não era possível. Mas "a maior parte das pessoas não tem esta consciência", admite Isabel do Carmo, escritora, médica, professora e ativista antifascista que participou ativamente na Revolução de Abril. No seu livro Três Ditaduras Na Europa Ocidental – escrito com Kostis Kornetis e Sofia Rodriguez – conta também como se vivia em Portugal até abril de 1974. Em 1960, 40% das mulheres portuguesas eram analfabetas. "Não havia métodos de contraceção. As mulheres engravidavam quando calhava. Era uma vida muito sacrificada. A vontade da mulher não valia nada, ao ponto de o marido ter direito absoluto de lhe vender os bens." Isabel do Carmo fala com apreensão do livro Identidade e Família. "Acho assustador que se publique um manifesto deste género numa altura em que há tanta desinformação na internet e nas redes sociais, e em que as pessoas acreditam em tudo o que leem".

A propósito deste manifesto, a rapper Capicua escreveu no Jornal de Notícias uma crónica sobre a Família Tradicional. O título é desde logo um logro, porque a cronista, nascida Ana Fernandes, satiriza sobre uma "vintena de beatos grisalhos que fez um tratado pela família tradicional e o grande pai da austeridade, disciplinador do povo, foi apresentá-lo." Fala dos intervenientes do livro e de Pedro Passos Coelho, o antigo primeiro-ministro português.


Escritora e antiga ministra da cultura, Isabel Alçada é mais otimista. "Sinceramente não acho que estejamos a viver um retrocesso. A nossa sociedade está maioritariamente virada para a igualdade de género." A revisão da constituição portuguesa em abril de 1976 e, subsequentemente, a revisão do Código Civil, foi um passo gigante na luta dos direitos das mulheres. O novo código promove "a igualdade entre homens e mulheres". Mas será que esta é efetiva? Passados 50 anos de avanços e recuos ainda lhe faz confusão "como é que as pessoas não reconhecem que ainda há tanta desigualdade entre homens e mulheres. Basta olhar para os vencimentos. Temos uma lei para trabalho igual, salário igual. Mas, em média, as mulheres ganham muito menos a fazer exatamente o mesmo. As cotas fazem muita falta."


Aos 40 anos, a pianista Joana Gama não é casada, não tem filhos, nem tem emprego estável. Antes do 25 de Abril era pouco provável que tivesse direito a ter esta vida tão imprevisível. Confessa que os resultados das últimas eleições fizeram-na repensar na sua postura em termos políticos. Educada pelos princípios da igreja católica, Joana, neste momento, não está certa se a liberdade é um direito adquirido. Por outro lado, apresenta-se como uma artista que nunca deixou de fazer nada por ser mulher. "Senti sempre a liberdade de poder escolher". Em 2018 a pianista desafiou-se para passar 14 horas ao piano a tocar a peça Vexations, de Satie, e não passou por vexame.

Lançado no fim de março, Metade-Metade é o mais recente disco de Aldina Duarte. Um disco escrito por Capicua que se trata também de "uma declaração de amor à poesia e à liberdade". "Majestade", a quinta faixa do disco, é um tema que diz respeito aos pobres e à forma como viviam antes do 25 de Abril. O título Majestade é uma ironia, explica Aldina. "Não há paternalismos, porque o paternalismo posiciona o pobre no lugar de vítima. Há que saber distinguir a consciência social da consciência política." Isso era coisa que não abundaria em Chelas, no bairro onde Aldina Duarte vivia em 1974. Mesmo assim, a fadista lembra que aquele 25 de Abril "foi a primeira grande festa da minha vida. Vi toda a gente na rua. Pessoas que nunca tinha visto a rir ou a cantar. Com a revolução acreditei que a vida ia mudar para os pobres. Foi o dia mais incrível da minha vida. É a única revolução do mundo cujo símbolo é uma flor. Num curto espaço de tempo a mudança de vida para os pobres foi radical."


Sandra Batista, música dos Sitiados, A Naifa e Señoritas, viveu três anos em ditadura e 50 em liberdade. Ativista por convicção, sugere "que algo se passou de muito grave na democracia portuguesa para termos que a debater novamente." Até às últimas eleições via a liberdade e todas as conquistas de Abril enraizadas na sociedade, mas quando se volta a querer penalizar o aborto e há um conjunto de homens a querer decidir sobre o corpo da mulher, ficamos com a certeza de que há muito trabalho por fazer. Tendo como premissa que "a cultura é o que nos distingue dos animais, porque nos humaniza", Capicua lembra que, às vezes, as pessoas só se conseguem pôr no lugar do outro através de um filme sobre o holocausto, a escravatura ou a emigração, ou quando leem um livro que os transporta para aquela situação. "É a partir dessa identificação emocional que se deixam cair algumas resistências", considera.


A música também cumpre o papel de nos aproximar uns dos outros. Consumidora de Zeca Afonso, Sérgio Godinho e José Mário Branco desde pequena, a rapper refere que o seu percurso como cidadã, o associativismo, a militância política a trouxeram até aqui. "Há muitas coisas na minha vida que me levam a ser esta Mafaldinha, que questiona, que pergunta, que intervém". Alude à contestatária criança criada pelo ilustrador argentino Quino. Ser rapper por si só pode não honrar Abril, "mas ser a rapper que sou e fazer tudo aquilo que faço, fazer música, ser cronista, falar sobre feminismo, lutar contra a extrema-direita e outras tantas causas do meu trabalho, como por exemplo a ecologia", isso sim fazem dela uma filha de Abril. Traz consigo também uma dívida de gratidão para com todas e todos aqueles que lutaram pela democracia. "São eles que permitem que eu faça o que faço sem ser perseguida, torturada ou ter de ir para o exílio. Ou sem ser julgada, como foram as Três Marias" (Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno).
Outra forma de considerar Abril é reforçar a memória de um passado que não pode ser apagado. Isabel do Carmo recorda que a saúde das mulheres era precária. "Na região do Algarve havia um único obstetra para uma população empobrecida. A mortalidade feminina era altíssima. Assim como a mortalidade infantil." As infeções ocorriam sobretudo por falta de higiene, acidentes e falta de alimento. E não havia Serviço Nacional de Saúde. Atualmente, a taxa de mortalidade infantil em Portugal é das mais baixas da Europa. É preciso não esquecer como viviam a maior parte das famílias e o destino que era dado às mulheres. "As famílias pobres tinham muitos filhos e o destino das filhas era irem servir para o Porto ou para Lisboa. Eram criadas para todo o serviço, sem horário, sem folgas. Quando digo para todo o serviço, muitas delas eram abusadas pelos filhos dos patrões." Mas não era só nas classes baixas que havia subordinação. A violência doméstica era transversal a todas as classes sociais. Por isso, uma das revindicações fundamentais da revolução foi o direito ao divórcio, como sugere Irene Pimentel. Em 1975 "Francisco Salgado Zenha, ministro da Justiça do primeiro Governo provisório, foi a Roma negociar com o Vaticano esta cláusula". É importante vincar que a superioridade do homem estava consagrada no código civil. O homem era o chefe de família e a mulher devia-lhe obediência. Para a historiadora, honrar Abril "é continuar a lutar pelas liberdades conquistadas. Perceber que o que se conquistou demorou muito tempo a conseguir-se, e alargar a democracia em vez de limitá-la." Quando vai às escolas não se cansa de falar da condição da mulher no Estado Novo. "Aviso sempre os miúdos que se pode dar um revés. Que a democracia pode desaparecer".
Autora de livros como os da colecção "Uma Aventura…", Isabel Alçada tinha 24 anos e uma filha quando se deu o 25 de Abril. "Vivi aquele período com muita alegria. Como frequentei o liceu francês, tinha professores que eram oposicionistas ao regime e uma ótima biblioteca escolar. Comecei por ler em francês. Lia romances onde havia debate partidário. Em Portugal não havia. A mim chocava-me que as pessoas não pudessem discutir pontos de vista." Hoje, a escola é uma das promotoras da igualdade de género, diz.
Estranhamente, nos últimos dias um liceu de Lisboa – O Pedro Nunes – anunciou que vai proibir os alunos de usar calções e decotes excessivos. Modas à parte, a ex-governante considera que é bom que as mulheres reflitam sobre o facto de serem iguais. "Termos esta convicção profunda que não há, nem pode haver, desigualdade imposta." Avançando que "é fantástica esta liberdade que se instituiu no nosso país em que podemos conversar com pessoas que ainda não chegaram a uma reflexão sobre a temática com uma base de informação sólida, mas cuja verdade está centrada em preconceitos".
Para Sandra Batista, descer a Avenida da Liberdade é um ato carregado de simbolismo. É como "repisar a altura em que éramos submissos e não tínhamos voz". Aldina Duarte, a quem Capicua apelida de "punk por estar ligada a uma espécie de ética marginal", desce a avenida há anos e acaba sempre numa jantarada com amigos.
Na casa de Capicua a data da revolução nas últimas décadas tem sido muito festejada. "O meu pai contava-me a história da revolução, de forma bastante emocionada, como uma grande transformação. Os meus avós falavam-nos mais do Portugal de antigamente. Um país fechado, miserável, beato e com medo, onde as pessoas andavam sempre a olhar para os outros com desconfiança. Com uma série de concertos agendados para estes dias, a compositora do Porto vai descer a avenida. Irene Pimentel e Joana Gama também descerão. Honrar Abril é sobretudo não esquecer. E para não esquecer é conveniente que se leia o livro de Isabel do Carmo e que se espalhe a palavra. Honrar Abril é perceber que "o estatuto da mulher dona de casa não tem pernas para andar. Nas famílias atuais, se não são os homens e as mulheres a trabalhar fora de casa, não há sustento." É bom não esquecer que, assim que o código civil – reformado por mulheres juristas como Leonor Beleza, Isabel Magalhães Colaço ou Helena Guimarães – entrou em vigor, a vida da mulher pôde modificar-se. É bom que não se esqueça que a pílula anticoncecional, o direito ao divórcio, o simples acto de discutir política no café, acontece hoje porque houve "uma Revolução dos Cravos que deu a palavra a um país calado".
Para Isabel do Carmo não são só as pessoas que escrevem, cantam ou falam em público que devem exaltar a liberdade. Todos nós devemos fazê-lo, em casa, na rua ou na escola. À pergunta porque é que há mulheres que viviam em condições miseráveis que fazem um elogio aberto ao antigamente? "Têm apenas saudades da sua juventude".
