Léa Seydoux - 'Eu sonhava com um papel diabólico'
A Palma de Ouro em Cannes confirma o seu estatuto de nova estrela do cinema francês. Em A Vida de Adèle, o filme-choque da rentrée, Léa Seydoux ousa tudo e despe-se para representar o louco amor por uma rapariga, Adèle Exarchopoulos.

Ela é a Scarlett Johansson francesa. Para melhor. Léa Seydoux adora o cinema e o cinema ama esta jovem que não é como as outras, de tez transparente e curvas acentuadas. Em oito anos de carreira, esta bulímica das películas rodou vinte e oito filmes. A sua presença magnética e a sua melancolia amuada suscitaram de imediato a curiosidade dos autores franceses. Catherine Breillat, Bertrand Bonello, Benoît Jacquot, Rebecca Zlotowski (Grand Central) ou Christophe Honoré revelaram ao público o talento camaleónico desta jovem sobredotada que parece capaz de representar qualquer papel… com uma preferência pelas personagens um pouco desequilibradas. E uma reivindicada recusa da facilidade.
Hollywood sucumbe também ao encanto desta jovem moderna, inflexível e de uma beleza tão caracteristicamente francesa: Quentin Tarantino ofereceu-lhe um pequeno papel em Inglourious Basterds, Ridley Scott fez dela princesa em Robin dos Bosques, Woody Allen escolheu-a para Meia-noite em Paris e Wes Anderson acabou recentemente de a filmar em The Grand Budapest Hotel.
Aos 28 anos, Léa Seydoux soube tornar-se indispensável. Além de ficar famosa por mérito próprio, é neta do dono da Pathé e sobrinha-neta do presidente da Gaumont, com as ironias a que isso deu origem no passado: “Asseguro-vos que nunca tive nenhuma cunha! Aquilo que sou só a mim o devo.” Concordamos. A Palma de Ouro que recebeu em Cannes no passado mês de maio (melhor do que um prémio de interpretação!), entregue por um Steven Spielberg admirativo, acabou por calar as más-línguas.
Cabelo curto com madeixas azuis, nua (muito), oferece-nos, em A Vida de Adèle, de Abdellatif Kechiche, um desempenho notável, físico e diabólico no papel de uma pintora lésbica loucamente apaixonada por uma liceal (Adèle Exarchopoulos, também ela um fenómeno). No Festival de Cannes, este filme surpreendente, magnífica love story, destacou-se enormemente: depois da sua projeção nada mais parecia existir. A rodagem foi penosa e as tensões entre o realizador e as atrizes deixaram marcas. Com uma sinceridade pontuada de silêncios e longe dos discursos balizados, a inatingível Léa conta-nos em que é que este papel a mudou e libertou profundamente.
Já se recompôs da loucura de Cannes?
A Palma de Ouro já foi há cinco meses. No entanto, ainda me custa a acreditar no que aconteceu. Descobri A Vida de Adèle ao mesmo tempo que a imprensa. O entusiasmo incrível à volta do filme levou tudo à frente e arrebatou-nos. Eu sentia-me fora de pé, com uma sensação de vertigem simultaneamente inebriante e opressora. E, no fim, um grande orgulho, uma alegria imensa…
A sua parceira, Adèle Exarchopoulos, fala de si como de uma irmã mais velha.
A rodagem de A Vida de Adèle foi difícil e penosa. Porque durou seis longos meses, e porque Abdellatif, o realizador, nos desafiava incessantemente a ultrapassarmos os nossos limites. Embora tenhamos passado todas estas semanas juntas, literalmente uma em cima da outra, Adèle e eu nunca discutimos. Nem uma única vez. Aliámo-nos logo para enfrentar as adversidades. Isso salvou-nos.
Abdellatif Kechiche tem fama de ser um cineasta muito duro com os seus atores…
Eu sabia o que me esperava. Mas o meu desejo de trabalhar com ele era tão forte que me sentia com a força de um bulldozer. Abdellatif é um grande cineasta, e eu quero participar em grandes filmes. Ele e eu temos em comum o mesmo conhecimento instintivo da nossa profissão. Eu nunca me inspirei em qualquer atriz. Sinto que não venho de lado nenhum e que criei a minha forma própria de representar.
Aceitar este filme teve a ver com a sua vontade de se testar enquanto atriz?
Se eu escolhi tornar-me atriz foi para viver intensamente. Com esta vontade louca de desafiar a vida. É por isso que tenho sempre esta necessidade de me pôr à prova em frente de uma câmara, de correr riscos, de me ultrapassar. Eu saí mudada do filme A Vida de Adèle. Com o sentimento de ter transposto uma barreira na minha vida de atriz mas também de mulher. Porque tive de me confrontar comigo mesma: com as minhas angústias, as minhas alegrias, a minha relação com o corpo.
As cenas de amor são muito ousadas. Até mesmo eróticas …
Eu sonhava ter um papel diabólico. Tenho idade para isso e não me incomoda aparecer nua: o cinema torna as imperfeições bonitas. Adèle troçava ainda mais do que eu dos olhares das outras pessoas e isso acabou por me libertar. Adorei desempenhar o papel de uma mulher que seduz outra mulher, sentir-me quase na pele de um homem. Acho que o prazer não tem sexo. Aliás, eu e a Adèle rapidamente deixámos de ter a impressão de sermos nós, até mesmo de sermos raparigas… De repente, tudo parecia quase natural. Permanecia apenas aquela incrível história de amor.
Já experimentou uma paixão assim?
Sim, já amei de forma incondicional. E acredito no amor à primeira vista, já me aconteceu. Adoro ser levada por grandes sentimentos.
Participar num filme sobre a homossexualidade é para si um ato militante?
Fico contente por A Vida de Adèle ter sido projetada em Cannes em plena polémica sobre o casamento para todos. Este filme é uma forma de tomar posição, de dizer que esta história de amor é o reflexo do que se passa na nossa sociedade. É uma obra geracional. Revolucionária até! Nunca ninguém tinha ousado filmar desta maneira antes de Abdellatif. Acho que A Vida de Adèle vai mudar e fazer avançar o cinema. Talvez vá finalmente ser normal filmar homens que amam homens ou mulheres que amam mulheres. E hoje em dia há uma tremenda necessidade disso.
A Léa mantém uma grande parte de mistério. É para se proteger?
É porque não sei muito bem quem sou… E isto é sem dúvida o que me permite entrar em personagens tão diferentes. Em cada filme que faço descubro um pouco mais de mim. Atraem-me imenso as personagens marginais e desequilibradas: encontro-me nelas.
Em quê?
Sou cheia de contradições. Tenho a sensação de escapar à norma. Estou-me nas tintas para o que pensam de mim, só conta a ideia que faço de mim mesma. O que, muitas vezes, faz de mim a minha pior inimiga porque faço juízos bastante severos a meu respeito.
A Palma de Ouro reconfortou-a no amor que tem por esta profissão?
Ser atriz sempre foi para mim muito claro. Eu não sabia se teria uma grande presença na tela, mas estava convencida de que podia ser boa em frente de uma câmara e que o meu lugar era aí. Passei por maus momentos, cometi erros, duvido sempre de mim… mas sei que fui feita para isto.
Depois de A Vida de Adèle, vamos vê-la em A Bela e o Monstro, de Christophe Gans, um filme de grande orçamento cheio de efeitos especiais.
Foram também umas filmagens muito intensas. Neste caso, era preciso desafiar a técnica. Este filme corresponde a um sonho de menina: os contos de fadas tiveram muita importância quando eu era criança, alimentaram-me muito. Interessam-me todas as formas de cinema: diverte-me rodar blockbusters americanos porque é o que Hollywood faz de melhor. E alguma leveza às vezes também faz bem.
Desde que começou que faz filmes a um ritmo infernal. É hiperativa?
Eu gosto de estar em cena, não tenho a impressão de estar a trabalhar. Depois da tournée promocional de A Vida de Adèle nos Estados Unidos, vou voltar a encontrar-me com Bertrand Bonello para encarnar Loulou de la Falaise no filme dele sobre Yves Saint Laurent. Mas neste momento sinto um pouco falta de tempo para mim. É preciso saber abrandar para armazenar novos desejos.
A Palma de Ouro mudou a opinião que este meio tem de si?
É uma recompensa que impressiona. A mim, em primeiro lugar, e às outras pessoas. Só espero que isso não vá influenciar a relação com os realizadores, que o interesse por mim continue sincero.
Como é que se imagina daqui a dez anos?
Não faço projeções. Vivo e represento um dia de cada vez. Espero manter-me fiel ao que sou. Não tenho qualquer vontade de forçar o desejo das pessoas. Se os cineastas já não me quiserem, farei outra coisa. Tenho uma família a que sou muito chegada, amigos que adoro. Preferirei sempre a vida ao cinema.
